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A Teoria da Língua em Ato e as interações mediadas pelo computador

A partir da análise de um corpus do italiano falado, Cresti (2000) propõe o enunciado como categoria base para a análise da oralidade – definindo-o como a contraparte linguística de um ato29 e elegendo-o a unidade linguística de referência da língua falada. Todo falante percebe quando um enunciado termina, pois percebe que foi concluída uma intenção comunicativa.

Na língua falada, um enunciado é identificado a partir de duas características básicas: a entonação e a interpretabilidade pragmática.

Em relação à entonação, um mesmo conteúdo locutivo pode servir para ilocuções diversas se estiver entoado de maneira apropriada. Tomemos como exemplo o enunciado A porta está aberta. Proferido por um professor, em uma sala de aula, em que alguns alunos estão desinteressados, pode ser entendido como um pedido para que se retirem. Em outro contexto, por exemplo, quando alguém bate à porta e o dono diz A porta está aberta, este mesmo conteúdo locutivo será proferido e interpretado como um convite para que o visitante entre.

A outra característica relevante do enunciado é sua autonomia. O enunciado é autônomo no sentido de que possui interpretabilidade pragmática. A consequência dessa característica é que qualquer expressão como não, hum hum, caramba!, etc. pode se configurar como um enunciado, uma vez que pode ser interpretada pragmaticamente. Tomada isoladamente a expressão uma rosa não constitui enunciado. Proferida como resposta à pergunta O que você quer ganhar? o termo possui valor comunicativo, pois realiza uma ilocução, configurando-se, portanto, como um enunciado30.

Na constituição de um enunciado podemos considerar, segundo Cresti, no mínimo três unidades informacionais: o tópico (TOP), o comentário (COM) e o apêndice (AP), cada

29 Tal definição está embasada na Teoria dos Atos de Fala (Austin) e na hipótese de que é possível estabelecer uma equivalência entre unidade de domínio do agir humano (ato) e unidade linguística (enunciado). Desse modo, há uma relação de interdependência entre enunciado (unidade de linguagem) e ilocução (ato de fala) uma vez que cada enunciado proferido corresponde a uma intenção comunicativa.

30 Cresti (2005) estabelece um distinção entre enunciado e frase. Enquanto o enunciado é identificado pela entonação e pela interpretabilidade pragmática, a frase caracteriza-se pela completude semântica e sintática. Tal completude é fundada sobre uma predicação, em particular, constituída por uma forma verbal finita.

unidade identificada a partir de três critérios: funcional, distributivo e entonativo31. O tópico é a unidade de informação que desempenha a função de campo de aplicação da força ilocucionária. Os apêndices constituem a integração textual de uma unidade informativa de tópico ou de comentário e não possuem um foco entonativo. Por sua vez, “o comentário32 é a expressão que serve para cumprir uma ilocução, por isso é a unidade necessária para constituir um enunciado” (CRESTI, 2000, p. 81).

Além dessas unidades há, ainda, os Incisos (INX), os Introdutores Locutivos (INT) e os Auxílios Dialógicos (AUX).

Empregando o software WinPitc de Ph. Martin, Raso et al. (2007) analisam o enunciado João me ligou ontem e esclarecem que esse mesmo conteúdo locutivo proferido com diferentes perfis entonacionais veicula diferentes estruturas informacionais33.

1) Como resposta à pergunta Recebeu alguma notícia dos amigos que estão na praia? O enunciado João me ligou ontem//34. (FIG. 8) é executado em uma única unidade tonal, correspondente, portanto, a uma unidade informacional de comentário, necessária e suficiente para veicular a força ilocucionária. A figura 8 ilustra esse perfil entonacional.

Figura 8: Perfil entonacional

31 O corpus desta investigação não permite que o critério entonativo seja empregado.

32 Cresti esclarece que comentário é diferente de (i) predicado, uma vez que comentário não é descrito em termos de relações estruturais (semântica e sintática) da locução.; (ii) rema ou propósito: pois não é explicado em termos de construção textual da locução ou de representação psicológica; (iii) modo, porque não é descrito em termos de expressão da modalidade da locução; (iv) novo, pois não refere-se a novidade semântica da locução; (v) foco, porque não é descrito em termos de relevância semântica ou de contraste contextual da locução. (CRESTI, 2000, p.81)

33 Os exemplos e a s análises foram retirados, na íntegra, de Raso et al. (2007)

34 A dupla barra (//) sinaliza o perfil terminal, ou seja, a fronteira de enunciado; a barra simples (/) sinaliza o perfil não terminal, ou seja, a fronteira de unidade tonal e informacional.

Fonte: RASO et al., 2007

2) Executado em duas unidades tonais, o enunciado João / me ligou ontem//. (FIG.9) apresentaria uma unidade de tópico e uma de comentário. Poderia ser executado como resposta à seguinte pergunta:

A: Você tem notícias do João? B: João / me ligou ontem

Figura 9: Perfil entonacional Fonte: RASO et al. (2007)

3) No terceiro exemplo, o enunciado JOÃO / me ligou ontem// seria pronunciado destacando-se o termo João e os autores empregam maiúsculas para indicar a proeminência entonacional. Ressaltam que, neste caso, também, há duas unidades entonacionais (FIG. 10) e, portanto, duas unidades informacionais; a primeira unidade configura-se como uma unidade de comentário e a segunda, como uma unidade de apêndice. Um possível contexto, apresentado por Raso et al. (2007), em que essa execução seria apropriada é o seguinte:

A: Quem te ligou ontem? B: João / me ligou ontem

Figura 10: Perfil entonacional Fonte: RASO et al. (2007)

Em síntese, embora apresentem o mesmo conteúdo locutivo, em cada caso João me ligou ontem realiza diferentes atos linguísticos. Em relação à estrutura entonacional também os três exemplos também diferem:

João me ligou ontem// configura-se como um enunciado simples, possuindo apenas comentário (Figura 8),

João / me ligou ontem//. Estrutura-se como um enunciado complexo possuindo tópico- comentário (Figura 9)

JOÃO / me ligou ontem// exemplifica um enunciado complexo com estrutura comentário-apêndice (/Figura 10).

3.6 Considerações finais

Antes de passarmos para o próximo capítulo, faz-se necessário ajustar a lupa, apresentar os pontos básicos que orientam esta pesquisa. Neste capítulo, apresentamos os estudos de Langacker (2000; 2004), de Sinha (2005), de Tomasello (2003) e de Cresti (2000; 2005; 2009), a fim de construirmos o quadro teórico que embasa esta investigação.

Partindo das seguintes premissas desenvolvidas ao longo do trabalho:

A referenciação pode ser compreendida como uma atividade cognitivo-interacional praticada por sujeitos sociais em eventos de interação;

A referenciação metalinguística pode ser compreendida como um fenômeno sócio- cognitivo, portanto, explicitada a partir dos processos cognitivos de perspectivação, focalização e gerenciamento de atenção;

Linguagem, cultura e cognição entendidos como fenômenos interdependentes;

Aspectos cognitivos como o gerenciamento de atenção, a focalização e a noção de perspectivação podem ser aplicados para a compreensão de fenômenos da linguagem.

A partir dessas considerações, o próximo capítulo tem por objetivo apresentar aspectos relevantes sobre a interação mediada por computador e apresentar um modelo para explicitar essa interação.

4 REDES E RELAÇÕES: ORALIDADE, ESCRITA E COMUNICAÇÃO MEDIADA PELO COMPUTADOR

4.1 Introdução

Myyyyy boyfriend q eu amuuu demaizzzzzzzzz...so pa lembra q c e tdd pa mim tah? E agora agnt casaa viu amr?? Casa e tem 3 filhus...hauha t amu d+....tao e sohhh...fuizzzzzzzzzzz

Deparar com o texto acima pode suscitar uma série de reações: podemos argumentar que se trata de um texto típico de adolescente; é possível ficarmos escandalizados, dizer que o internetês está corrompendo “a última flor do Lácio” e, ainda, podemos assumir uma postura investigativa com o intuito de responder a alguns questionamentos básicos: como as tecnologias influenciam na comunicação humana? Até que ponto a comunicação mediada pelo computador difere da interlocução face a face e da interação mediada pelo texto impresso? No que diz respeito à referenciação, a tecnologia influi em algum aspecto?

Crystal (2005) defende que a tecnologia da internet provocou uma verdadeira revolução na linguagem, não só em termos linguísticos, mas também em seus aspectos tecnológicos e sociais. Ressalta, ainda, que um meio de comunicação que tivesse o poder de afetar toda a sociedade não aparecia há dez mil anos e, por isso, não é possível descrever tal comunicação nos moldes tradicionais.

Neste sentido, o objetivo deste capítulo é refletir sobre oralidade e escrita como modalidades não dicotômicas de uso da língua e evidenciar que o computador possibilita o surgimento de uma escrita que se assemelha a um processo dinâmico, uma vez que incorpora a congregação de mútiplos recursos. Além disso, apresentaremos um modelo para exemplificar as interações mediadas pelo computador.