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A teoria do narcisismo em Freud e sua relação com o delírio

2 METÁFORA DELIRANTE: UMA FORMULAÇÃO LACANIANA

2.2 As contribuições de Freud à clínica das psicoses

2.2.3 A teoria do narcisismo em Freud e sua relação com o delírio

Logo no início de seu artigo sobre o narcisismo, Freud sustenta que o motivo que o levou a ocupar-se de um narcisismo primário surgiu a partir do momento em que tentou incluir as psicoses em sua teoria da libido. Apesar de desacreditar nos efeitos possíveis da psicanálise em relação aos parafrênicos72, considerou importante precisar o mecanismo que levaria tal tipo clínico a um afastamento do mundo externo e viu na análise das parafrenias o principal meio de acesso a suas investigações sobre o narcisismo.

Segundo Freud, o afastamento da realidade não é exclusivo das psicoses. Trata-se de um mecanismo também presente na histeria e na neurose obsessiva, mas que difere do mecanismo operado nas psicoses pelo seguinte aspecto: tanto na histeria quanto na neurose obsessiva, a libido retirada do mundo externo é substituída pela fantasia.

Com o parafrênico a situação é diferente. Ele parece realmente ter retirado sua libido de pessoas e coisas do mundo externo, sem substituí-las por outras na fantasia. Quando realmente as substitui, o processo parece ser secundário e constituir parte de uma tentativa de recuperação, destinada a conduzir a libido de volta aos objetos (FREUD,1914/1996: 82). Mas, se na psicose o mecanismo de substituição pela fantasia não opera, o que acontece, então, com a libido que foi afastada dos objetos externos? Freud trata essa questão a partir da megalomania, que seria o resultado dessa retirada das catexias objetais. Assim, a libido afastada dos objetos é dirigida para o eu, dando margem ao que ele denomina

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Freud opta por chamar de “parafrenia” aquilo que Kraepelin chamou de “demência precoce” e Bleuler, de “esquizofrenia”. Parece ser um termo mais apropriado, já que ele se refere aqui a sujeitos que encontram uma saída por meio de uma sistematização do delírio. No entanto, Freud não mantém essa distinção durante todo o trabalho, de forma que os termos paranóia e esquizofrenia também aparecem sem uma preocupação em distingui-los.

“narcisismo”. No entanto, o que Freud constata é que a megalomania não constitui em si uma novidade. Trata-se de uma manifestação mais clara de uma condição que já existiu num momento prévio. Disso Freud extrai a seguinte conseqüência: a construção delirante, como uma tentativa de restabelecimento, é um processo secundário, que se sobrepõe a um narcisismo primário.

Mas pressupor um narcisismo primário colocou Freud diante de outra questão: Qual a relação entre o auto-erotismo, que ele descreveu como um estado inicial da libido, e o narcisismo primário? Trata-se de uma questão fundamental, que conduziu Freud ao cerne de toda uma problemática relativa à constituição do eu. Falar em constituição do eu implica dizer que o eu não existe desde o começo e que, portanto, precisa ser desenvolvido. Ou seja,

[...] uma unidade comparável ao eu não pode existir no indivíduo desde o começo; o eu tem de ser desenvolvido. As pulsões auto-eróticas, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo (FREUD, 1914/ 1996: 84).

Segundo Lacan, esse é o elemento mais precioso desse texto, e é daí que se deve extrair uma série de conseqüências. Se os pós-freudianos não perceberam o alcance de tal constatação73, Lacan, ao contrário, serviu-se muito bem dessa hipótese e soube retirar daí as bases para sua formulação do estádio do espelho.

Freud descreve o aparelho mental como “um dispositivo destinado a dominar as excitações que de outra forma seriam sentidas como aflitivas ou teriam efeitos patogênicos”. (FREUD, 1914/1996: 92). Sua hipótese é de que a elaboração mental auxilia no escoamento dessas excitações, que, por serem incapazes de uma descarga direta, necessitam de um processo de elaboração, que pode ser efetuado tanto a partir de objetos reais quanto de objetos imaginários. Se na neurose a libido liberada pela frustração recebe seu tratamento por meio da fantasia, de modo a não se retirar para o eu, já que se liga a objetos na fantasia, nas

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Lacan tece duras críticas aos pós-freudianos, por deixarem escapar algo tão importante do texto de Freud. A esse respeito, ver: LACAN, “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, p: 548-549.

parafrenias esse tratamento é dado pela megalomania. A megalomania seria, então, o correspondente da fantasia, de forma a possibilitar o domínio psíquico da libido que não pôde ser descarregada. Portanto, se “a megalomania permite uma semelhante elaboração interna da libido que voltou ao eu, talvez apenas quando a megalomania falhe, o represamento da libido no eu se torne patogênico e inicie o processo de recuperação que nos dá a impressão de ser uma doença” (FREUD, 1914/1996: 93).

Mas se a construção delirante é um processo secundário, o cerne da questão está justamente na retirada da libido dos objetos externos. Mas o que isso quer dizer? “Em que plano essa retirada se exerce?” (LACAN, 1956/2002: 107). Trata-se de um dos pontos que Lacan se propõe a elaborar, a partir de sua análise do delírio de Schreber.

[...] o estudo do delírio de Schreber tem o interesse eminente de nos permitir discernir de maneira desenvolvida a dialética imaginária. Se ele se distingue manifestamente de tudo o que podemos pressupor de uma relação instintiva, natural, é em virtude de uma estrutura genérica que marcamos na origem, e que é a do estádio do espelho. Essa estrutura faz antecipadamente do mundo imaginário do homem, alguma coisa de decomposto. Nós o encontramos aqui em seu estado desenvolvido, e é um dos interesses da análise do delírio como tal” (LACAN, 1956/2002: 105).