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2.2 HERMENÊUTICA TEOLÓGICA DA NATUREZA

2.2.1 A terra e o shabbat

Desde as primeiras narrativas bíblicas a terra expressa dois lugares diferentes: “céu e terra” e “terra, mar e ar”. A primeira expressão “céu e terra” aparece revelando a “dupla figura do mundo criado”.142 Para Moltmann, “céu” designa o “lado da criação que se abre para Deus”143 enquanto que “terra” expressa o sentido de mundo visível, singular. O céu é o “mundo que corresponde a Deus”144, já a terra é o “lugar que se opõe a Deus”.145 Assim, a interpretação é de a terra “testada na dor, se converta no mundo que corresponde a Deus”146, tal desejo é expresso na oração do Pai nosso: o anseio de que ocorra aqui na terra a vontade que reina no céu, ou seja, a vontade e soberania de Deus. A segunda expressão “terra, mar e ar”, expressa os “sinais vitais para os seres vivos que neles devem

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147 MOLTMANN, J. Ética da Esperança, p. 137.

148 MOLTMANN, J. O futuro da criação, p. 19.

149 MOLTMANN, J. Ética da Esperança, p. 138.

existir”.147 A terra ganha o status de fertilidade pela qual passa a brotar a vida dos demais seres. Atribui-se à terra a força capaz de produzir e evoluir a vida. Para o teólogo, a “terra é toda especial, ela não é um material tolo ou sem vida, mas é a criação de Deus que cria e preserva a vida”.148 Assim é o ser humano pertencente à mesma comunidade de vida que se origina da fecundidade da terra.

É com a terra e seus sobreviventes que Deus sela uma aliança, após a destruição pelo dilúvio. Essa aliança ecológica implica no reconhecimento e na observância dos direitos da terra, expressos na lei do shabbat israelita. Para Moltmann, o shabbat é o sagrado momento onde a criação descansa e glorifica a existência. Tal importância tem o shabbat, pois é a partir dele que surge a renovação das forças e o revigoramento necessário para a criação. É o momento onde a humanidade deve deixar de lado o impulso moderno e consumista de perceber a si mesmo e à natureza como instrumento da satisfação de suas necessidades materiais e permitir o devido descanso a si mesma e, principalmente, à natureza.

A observância do shabbat não é opcional, mas condição para o restabelecimento da vida e fertilidade. Assim como já se previa na agricultura antiga, a terra necessita de um descanso para a produção vindoura ser satisfatória. É uma relação de respeito e de harmonia com a terra geradora do alimento. Poderia se pensar numa relação com a terra, de modo que se compreendam as suas necessidades. Diferente é a relação de exploração da terra, onde a natureza é mero instrumento provedor para a satisfação humana. Assim como com a terra, é sábio perceber que o ser humano também necessita da pausa para seguir adiante. A consequência da não observância do shabbat é a própria extinção da vida na terra, pois “nesse ato de repousar e deixar-em-paz se encontra a força da regeneração”.149

Na tradição judaica ainda aparece o conceito de Shemitah que literalmente significa “deixar livre” ou “libertar” a terra no sétimo ano. Esse conceito origina-se em Êxodo 23:11 e proíbe a produção e colheita no sétimo ano, a fim de que o que a terra gerar seja ofertado a Deus e aos pobres. O titular da terra poderá se servir da colheita sem acumulação, apenas daquilo que necessitar e não deve negar a outros a colheita para suas necessidades. De forma alguma deve-se trabalhar para a produção, sendo permitida a colheita de frutos que a árvore gerar sem a

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150 MOLTMANN, J. Ética da Esperança, p. 140.

interferência humana e de culturas que não tenham um ciclo de plantio de ano, como no caso de verduras e hortaliças. Assim a terra tem o seu tempo de recuperação para os próximos anos sem o consequente esgotamento do solo pela insistência no cultivo. Também é possível a veneração e a compreensão de que a terra e o que ela produz destina-se a Deus essencialmente.

Moltmann aplica ainda o conceito de Sol da Justiça, que é uma concepção babilônica e egípcia de aplicação de justiça reformulada pela tradição de Israel. Enquanto no Egito essa justiça está relacionada com um julgamento individual de crimes contra a pessoa humana e seus antepassados, na Babilônia a justiça ganha uma dimensão universal, onde importa o terreno, o cósmico e o social. À justiça egípcia afere-se um caráter punitivo-vingativo diferentemente da justiça babilônica, onde a justiça é caracterizada pela proteção e favorecimento dos fracos e das vítimas, reequilibrando o universo. O sol da justiça Divino é a justiça por meio de Cristo, a justiça criativa, que “instala o direito para as vítimas e põe em ordem os criminosos”. É o juízo social e cósmico de Deus.

Julgar a terra é o desígnio da vinda de Deus, fazendo nascer o Sol da Justiça e derramando essa justiça divina que restaura e restitui a terra denegrida e maculada pela humanidade. Na vinda de Deus se restabelece o esplendor e a grandeza da terra, devolvendo a sua verdadeira riqueza.

A expectativa da vinda de Deus é abrangente e terrena. Deus vem com a sua justiça para a sua terra e para todas as suas criaturas, e isso inclui também os povos; não se aplica, porém, principalmente a eles, mas a terra em que vivem. Talvez, para Deus, com a terra não estejam em jogo os seres humanos, mas com os seres humanos esteja em jogo a sua amada terra.150

Segundo Moltmann, existe “uma relação especial de Deus com a terra” ao considerar o relato da criação onde Deus vê a sua criação e a considera muito boa e a ideia de que “todas as criaturas são formas do Espírito Criador de Deus”. A sabedoria de Deus está na criação, atribuindo à terra uma relação onde há regozijo e alegria. Tal indicação orienta para um futuro onde o próprio Deus ultime sua obra, tornando a criação a sua morada. Ao julgar a terra, “todos os relacionamentos

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151 MOLTMANN, J. O futuro da criação, p. 44.

152 MOLTMANN, J. Ética da Esperança, p. 147.

153 MOLTMANN, J. O futuro da criação, p. 15.

154 MOLTMANN, J. Ciência e sabedoria: um diálogo entre ciência natural e teologia, p. 59.

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MOLTMANN, J. Ciência e sabedoria: um diálogo entre ciência natural e teologia, p. 58.

conturbados na criação devem ser consertados para que, com isso, a Nova criação firme os seus pés sobre o chão seguro da justiça e possa permanecer eternamente”.151 A terra é preparada para se tornar a morada eterna de Deus a partir da glória do Cristo, que reconcilia o universo e antecipa a glória vindoura. Cristo é o sinal presente do futuro glorioso de Deus.