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3.2 CULTURA DA VIDA

3.2.2 Sacralidade da vida

A vida humana é presente e dom de Deus, o ser humano é a obra especial da criação, pois é concebido à imagem e semelhança de Deus. A vida humana é sagrada porque comporta a ação criadora de Deus258. Não é fruto de um mero acaso, e por isso possui um caráter de dignidade inviolável. A vida humana é também projeto que tem um desígnio e encontra futuro no próprio Jesus Cristo que a dignifica e, assim, todos são chamados a um só e mesmo fim, que é o próprio Deus259.

A vida humana é sagrada por que Deus a sacraliza, ou seja, a santidade da vida está em relação a Deus, a quem pertence a vida. Fica clara, ao se tratar sobre formas de intervenções à vida, como o aborto ou eutanásia, mas também na forma

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260 MESTERS, C. Deus, onde estás, p.117.

261 WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo, p.18.

262 NIETZSCHE, F. Ecce homo, p. 25.

263 GIBELLINI, R. La teologia del siglo XX, p. 133.

264 MOLTMANN, J. Sobre la alegria la libertad y el juego, p. 89.

de relação com o próximo, a dificuldade da compreensão da sacralidade da vida. Essa dificuldade decorre da rejeição da autoridade da religião como norma moral, mas, sobretudo, da irrelevância de Deus para a sociedade moderna. A sociedade das liberdades, já não mais depende da fé em Deus, e também não condiciona suas decisões de acordo com a vontade divina, mas condiciona Deus à sua vontade. Para o teólogo Carlos Mesters, na sociedade burguesa moderna “Deus é colocado de lado como algo que não interessa como ópio, como contrário ao progresso, como motivo de alienação, como algo que não deve existir mais para ele: Deus morreu. Viva o homem”260.

Após o triunfo das revoluções burguesas, o mundo ocidental configurou sua forma de pensamento alicerçando seus valores no capital ou naquilo a que serve ao capital. A razão, conhecimento científico, a técnica, “encorajadas por considerações econômicas”261, segundo Max Weber, modelaram a sociedade moderna e atribuíram novos significados à vida humana. A liberdade tornou-se o mais cobiçado valor da sociedade, assim como o seu mais alto e nobre fundamento, possibilitando ao ser humano, a sua autonomia perante tudo o que lhe aprisionava, sendo que a própria ideia de Deus tornou-se incompatível perante a razão moderna, segundo Nietzsche, uma “resposta grosseira (...) uma grosseira proibição: não deveis pensar”262. Eis a morte de Deus. O mundo moderno se emancipa da tutela do Cristianismo e da Igreja263, e àqueles que fazem parte da sociedade burguesa “exigem autonomia no uso de sua razão e sua vontade”264.

O racionalismo confere um novo ponto de vista e a chave para leitura da realidade passa a ser o próprio ser humano. A perspectiva filosófica é centrada no ser humano, que surgue como um ser livre, questionador e crítico. Deus representa a religião e o atraso, culpa e pecado, sofrimento e privação. A vida seria melhor sem Deus e as dificuldades enfrentadas pela humanidade seriam resolvidas por meio de um humanismo altruístico. Ao analisar a sociedade científica, Don Dadeus Grings afirma:

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265 GRINGS, D. A descoberta científica de Deus, p. 17.

266 MOLTMANN, J. Que es a teologia hoy, p. 17.

267 BAUMAN, Z. A sociedade individualizada, p. 202

268 BAUMAN, Z. Globalização as consequências humanas, p. 89

Com o aprimoramento das ciências e da técnica, foi se criando, principalmente a partir do século XIX, a convicção de que todos os problemas humanos poderiam ser resolvidos nesta base. O progresso, entendido no sentido científico e técnico, abria uma esperança quase infinita. Os problemas, que ainda não tivessem solucionado, mais cedo ou

mais tarde, seriam resolvidos por novas descobertas científicas265.

Para Moltmann “o homem tornou-se consciente de seu poder, elevou-se à categoria de sujeito de sua história e assumiu a responsabilidade por seu futuro”266. Na realidade, as mudanças ocorridas na sociedade burguesa não deram fim às aflições humanas, em muitos aspectos aumentaram o sofrimento, pela escassez das condições mais básicas de sobrevivência por grande parte da população, mas principalmente, pela falta de sentido que a vida passa a ter. Quando o transcendente deixa de ter relevância, a vida humana não tem um fim último que lhe aufira sentido para a existência além da hedonista visão do prazer momentâneo. Tudo é aceitável pela liberdade, a vida anseia tudo, mas perde-se no labirinto das diversas possibilidades irrestritas. O preço da liberdade é pago na mesma proporção pela insegurança que gera267. Nada dura mais que o momento, não existe compromisso mais duradouro do que sua conveniência268. O tempo é o agora. Irresistível, sedutor e fugaz.

O mundo que perde a noção de Deus perde também a noção do sagrado. Quando se perde a noção do sagrado, desvirtua-se a própria concepção do que é a vida. À medida que a sociedade moderna vive de suas negações (nega a existência de Deus, a eternidade, o transcendente) não tem forças para ver na vida um sentido positivo e propositivo. Também nega a vida. A vida passa a estar, como tudo na sociedade de consumo, submetida à necessidade de satisfação, de prazer, e, assim sendo, também passa a ser absolutamente descartável.

O ser humano não pode viver sem Deus. Quando ele faz esta escolha comete novamente o pecado original e, desejando sua autossuficiência, encontra a morte (Gn 2:17). A sociedade pode restabelecer o reconhecimento pelo valor da vida, mas não sem antes voltar-se para o próprio Deus que sacraliza a vida. Deus é o dono da vida, do começo ao fim. A vida começa muito antes de nascer (Jr 1:5) e vai para

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269 Catecismo da Igreja Católica, n° 1703

270 MOLTMANN, J. Trindade e Reino de Deus, p. 70.

271 JOÃO PAULO II, Evangelium Vitae, n° 32.

272 MESTERS, C. Paraíso terrestre, p. 60.

muito além de morrer (1Jo 1:25). A promoção da vida humana passa pela promoção de uma fé verdadeira no Senhor da vida. Assim entender-se-á que a vida não é algo que aconteceu, ela está acontecendo e sua meta última é o próprio Deus.