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A TEXTURA ABERTA NO POSITIVISMO SOCIOLÓGICO

CAPITULO 2 A SUBLIMAÇÃO DA ARBITRARIEDADE PELA

2.4 A TEXTURA ABERTA NO POSITIVISMO SOCIOLÓGICO

Ao lado da Teoria Pura de Hans Kelsen, a obra do filósofo analítico inglês Herbert Hart intitulada The concepto f Law (HART, 1994) pode ser igualmente considerada uma das mais relevantes contribuições ao Direito no século XX.

De maneira original e contrária a Kelsen, a obra de Hart não tem nenhuma relação com a metodologia formalista que parecia ter se tornado um pré-requisito de cientificidade no Direito.

Sem identificar Direito com sanção, como fizera Kelsen, Hart atribui ao ordenamento uma função servidora, mais do que uma mera aplicação sistematizada da sanção. Nesse sentido, sua compreensão normativa opera um descentramento, na medida em que identifica nos ordenamentos complexos diversos tipos de normas, e não apenas aquelas dotadas de sanção (PALOMBELLA, 2005). Considera um reducionismo enxergar todas as normas como instrumentais às normas sancionadoras, posto que a sociedade não se organiza apenas por meio de normas que estipulam sanções em caso de seu descumprimento.

Essa visão mais abrangente torna-se possível porque o discurso de Hart é orientado pela percepção dos objetivos do Direito, e não por alguma intenção de definir um esquema universal e formal das normas jurídicas. Por isso, opõe-se a modelos unitários que remetem todas as normas jurídicas a uma única tipologia, posto que desse

modo se falsearia as diferentes funções sociais exercidas pelas normas jurídicas (PALOMBELLA, 2005, p. 250).

A admissão dessa pluralidade de normas liga-as diretamente à concepção que Hart tem da sociedade. Negando que o Direito seja um aparato sancionador que controle de fora o corpo social, vê o ordenamento jurídico como elemento interno de um grupo social, abordagem sociológica e empírica.

Há, portanto, uma duplicidade na tipologia normativa: as primárias, que prescrevem determinados comportamentos, e as secundárias, que atribuem poderes ou competências. São as últimas que, enquanto normas de reconhecimento, mudança e adjudicação, especificam como se fará a introdução, verificação e eliminação das normas primárias, reduzindo a complexidade do Direito. (HART, 1994).

A interpretação dessas normas, delimitação de seu conteúdo, não provém de uma fonte externa, mas são pressupostas pela comunidade que participa desse ordenamento (ponto de vista interno). Trata-se de uma espécie de jogo, no qual aqueles que participam do jogo conhecem as regras e comportam-se com expectativas de seu cumprimento, pois do contrário o regramento viria apenas da discricionariedade do árbitro.

Desse modo, o cumprimento das normas não está ligado apenas à ameaça de sanção. É justamente o ponto de vista interno que permite que os participantes sintam-se obrigados a determinada conduta. Aceitar a validade de uma norma é algo diferente de simplesmente considerar-se ameaçado e coagido. (HART, 1994).

Nesse sentido, a validade torna-se mais do que a aptidão coercitiva das normas sancionatórias. Não basta mostrar que determinadas normas geralmente são aplicadas pelos juízes e observadas pelos cidadãos. Para considerar a existência de um ordenamento e sua eficácia é preciso que este seja sustentado por uma pressão social geral, interna, que torne existente aquele ordenamento.

Entretanto, se as normas existem e dependem desse ponto de vista interno, seu conteúdo precisa ser unívoco e não pode depender totalmente da interpretação dos juízes. Hart admite um núcleo certo de significado das normas, intersubjetivamente conhecido e que impede que se caia em um realismo jurídico, no qual o Direito não é mais que a suposição do que decidirão os Tribunais. Entretanto, admite que há casos difíceis nos quais pode haver razoável incerteza (penumbra). (BILLIER, 2005).

Nos casos em que haja essa margem de penumbra, os juízes não irão apenas descobrir uma norma pré-existente, senão que deverão fazer algo como um meio termo entre a mera aplicação e a criação, que de certo modo favorece a tese realista de construção judicial do conteúdo normativo.

Entretanto, sofisticando essa idéia, Hart afirma que a univocidade do núcleo de conteúdo da norma é construída por termos classificatórios gerais de que se vale a comunidade lingüística e que são sempre relativos aos casos envolvidos, sendo tanto maior quanto mais familiar for o caso. Assim, nos casos em que se supõe tratar-se de interpretação literal, unívoca, o que há na verdade é uma certa comunhão acerca de determinada construção interpretativa como claramente apta a resolver aquela situação, de modo que não é necessária mais do que uma repetição dessa interpretação. Será sempre, contudo, interpretação, mesmo porque a compreensão da norma, em termos de padrões lingüísticos, se dará sempre frente a um caso concreto (PALOMBELLA, 1005).

Ciente da complexidade das relações sociais e do alcance múltiplo das normas em diversos contextos, a textura aberta acaba se sobressaindo na obra de Hart como uma irritação que o ordenamento precisa conviver, tornando essa indeterminação tarefa interpretativa para a qual não há como criar parâmetros metódicos. A discricionariedade, portanto, permanece presente e é até certo ponto justificada pela inevitável textura aberta das normas, mas acentuada em casos difíceis mas presente mesmo naqueles em que aparentemente há univocidade.

Nesse ponto, pode-se efetivamente constatar uma aproximação entre a visão de Hart e a de Kelsen, ou seja, no reconhecimento de uma discricionariedade intrínseca à aplicação judicial, que pode ser maior ou menor mas que é intransponível pela ciência jurídica.

Ademais, semelhante também é o pouco caso dado a essa questão. Tal como Kelsen, também Hart expõe sua teoria em termos gerais de política, de tipologia e escalonamento normativo, aceitação da sociedade e finalidades do direito, considerando a questão da relativa indeterminação do conteúdo das normas como um problema menor.

De certo modo, a teoria do ordenamento jurídico nesses dois autores é tão bem construída que a tradição jurídica não teve problema em considerar a questão da interpretação/aplicação do Direito como uma questão menor. Também nesse sentido, deve ficar claro que nenhum dos autores disse que um Juiz pode decidir como quiser determinada questão. Ambos estão conscientes do caráter criativo da interpretação, mas ambos crêem que o ordenamento jurídico constitui caminhos pelos quais os juízes seguirão na aplicação normativa.