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CAPITULO 2 A SUBLIMAÇÃO DA ARBITRARIEDADE PELA

2.2 A IDÉIA MODERNA DE RACIONALIDADE

2.2.1 O discurso do Método

O século XVI foi marcado por profundas transformações na vida do homem ocidental, impulsionadas em boa parte pelas grandes navegações e as descobertas dali advindas, pelo Renascimento cultural e pela rejeição das idéias até então vigentes, construídas na Idade Média e agora postas em questão juntamente com a antes incontestada autoridade dos que a transmitiram.

Essa efervescência cultural gerou um clima de ceticismo, representado sobretudo pelo pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592), que modernizou a idéia de ceticismo e a levou a extremos, mostrando como os fatores culturais, sociais e psicológicos influenciam nas idéias que aparentemente são racionais. Por trás desse manto de certeza indubitável, pairam apenas opiniões incertas. Indo ainda mais longe, Montaigne dirá que o Homem nada sabe porque não é nada mais que incertezas. A única solução é, portanto, renunciar a qualquer verdade e certeza, posto que são inatingíveis. (OS PENSADORES, 1991).

Para responder a Montaigne, não parecia possível erguer respostas parciais sob a base dos velhos muros, que estavam todos ruindo sob o ataque geral da dúvida e ceticismo com relação à tradição legada pelo pensamento medieval e posta em descrédito. Era necessário, pois, reerguer o pensamento desde os primeiros princípios, encontrando um caminho seguro que livrasse o Homem dos preconceitos medievais e lhe garantisse meios seguros de conhecer o Mundo e de garantir que as proposições científicas não estejam ancoradas em bases errôneas e enganadoras.

A filosofia de Descartes surgiu pela sedução que a matemática despertou no filósofo, devido à certeza e evidência de suas razões. Ao contrário da fragilidade dos argumentos e dissensão típica das “humanidades”, a matemática estava assentada em concepções sólidas ligadas às suas demonstrações lógicas. Mas a filosofia de Descartes tinha pretensões bem maiores que a Matemática. Sua intenção era unificar todos os ramos do conhecimento segundo princípios lógicos irrefutáveis, levando o raciocínio lógico- matemático para as ciências humanas e para a Filosofia.

O ambiente de dúvida que pairava na época e que estava representado na filosofia cética de Montaigne não foi, portanto, evitado por Descartes, que utilizou a dúvida geral justamente para procurar saber se não havia efetivamente nenhum princípio seguro sob o qual edificar o conhecimento das coisas.

Ao pôr em dúvida toda a realidade e até a si mesmo, Descartes chegou à constatação de que ainda que duvidasse de tudo, não poderia duvidar de que estava duvidando, estava pensando. A própria atitude cética extremada continha, portanto, uma afirmação certa e inegável dentro de si, apta a servir como primeiro princípio, que é justamente a necessidade e existência do ser enquanto pensante, do cogito, descoberto por meio da dúvida geral e agora apto a erguer-se contra ela.

O modo de subir deste primeiro princípio (cogito ergo Sun) para o conhecimento das coisas mais complexas deveria ser, evidentemente, embasado no método matemático. Descartes sondou suas idéias e concluiu que as que se referiam a objetos físicos eram vagas e obscuras, enquanto que as utilizadas pela matemática (figura, número) tinham grande nitidez e estabilidade. Essas idéias claras e distintas são concebidas todas da mesma maneira, o que parece provar que elas independem das experiências dos sentidos, mas são inatas ao pensamento, satisfazendo com plenitude o ideal matemático cartesiano. (OS PENSADORES, 1991)

Embasado na idéia de que, em matéria de progressões aritméticas, tendo-se os dois ou três primeiros termos, é fácil encontrar o Demais, Descartes viria a ver toda a

realidade como um termo ignorado, mas que pode ser gradualmente descoberto desde que se parta de dois ou três princípios simples e se deduza a cadeia de razões que se seguem daqueles primeiros termos, por meio da generalização.

Dessa forma, buscando considerar certo só o conhecimento evidente, intuído com clareza e precisão, Descartes propõe alguns preceitos metodológicos complementares, oriundos obviamente da análise matemática, que são a divisão do problema em tantas parcelas quanto precisem ser resolvidas, a síntese, consistente em partir dos conhecimentos mais simples para os mais complexos e a enumeração, que propõe que se realize enumerações de modo a verificar que nada foi omitido.

É importante ressaltar que Descartes sabe claramente que a matemática é capaz de dar esses resultados imutáveis por não se referir à realidade. É um conhecimento formulado de maneira lógica e que não depende dos acontecimentos factuais para ser considero válido, posto que é uma forma de leitura desses acontecimentos.

A convicção da certeza desse método partiu, Para Descartes, da clarividência de suas meditações, e embora sua pretensão fosse reunir todos os ramos do conhecimento neste novo método, assume ter sido algo que individualmente lhe apareceu como irrefutável. Por essa razão, insiste em que todos aqueles que quiserem seguir tal diretiva deverão fazer por si mesmas o caminho adequado e buscar os postulados racionais.

A partir do discurso cartesiano, a lógica e a demonstração matemática passaram a fazer parte da base do arcabouço das ciências, não apenas na forma de qualificar a veracidade de seus conteúdos, mas também na organização pedagógica. A expansão da metodologia lógica das ciências exatas às humanioras buscou exatamente os resultados esperados por Descartes, ou seja, a certeza do conhecimento, fundado em princípios imutáveis porque naturais, oriundos da razão humana.

É claro que essa empreitada não foi realizada da maneira como seus idealizadores esperavam. O próprio Descartes, por saber que precisaria de muito tempo para reerguer o

seu edifício racional do conhecimento, defendeu a eleição de uma moral provisória capaz de reger as condutas sociais enquanto não se construíam idéias mais certas. Assim, mesmo tão convicto do poder da dúvida e da necessidade da construção do conhecimento metodicamente embasado, Descartes assumiu a posição conservadora de defender as leis do Estado e os costumes tradicionais como moral provisória. (DESCARTES, 1991).

Voltando ao ponto metodológico, se essa nova concepção de ciência e de filosofia representou uma ruptura significativa com no pensamento ocidental, é porque foi construída de maneira a rechaçar expressamente, ponto a ponto, a concepção que até então imperava, qual seja a metafísica aristotélico-tomista.

Quando Descartes diz que o conhecimento não pode se basear no que é provável e mutável, mas deve ser o exato e, por isso, ser o mesmo em qualquer parte do mundo, independente de costumes e tradições, está atacando frontalmente a dialética e a retórica aristotélica. Como acentua Villey, a conhecida sentença aristotélica de que é absurdo exigir de um jurista conhecimentos exatos, como é absurdo exigir de um matemático conhecimento apenas verossímeis (VILLEY, 2005) é frontalmente refutada pela pretensão matemática da moral cartesiana. Lembre-se que Aristóteles uniu o conceito de persuasão com o de verossimilhança, construindo todo seu arcabouço sob a base de que não existem conhecimentos exatos em matéria de ética e política, mas sim conhecimentos prováveis, construídos persuasivamente de acordo com as paixões do auditório, para usar a expressão de Ch. Perelman.

Justamente nesse tipo de retórica encontram-se os dois elementos mais atacados por Descartes. A persuasão e a verossimilhança. Como já dito, Descartes acredita que o conhecimento de todos os saberes, na medida em que seja amparado em termos lógico- racionais, independe de persuasão e de qualquer lógica do provável, posto que todo ser dotado de razão poderá concordar com uma conclusão demonstrada matematicamente.

Ademais, sabe-se que para Aristóteles o conhecimento ético não é universal no sentido de válido da mesma forma em todo lugar, mas é inseparável das peculiaridades de

determinada polis, até porque é construído nas deliberações concretas e não em abstrações anteriores. Pela mesma razão, o melhor regime político vai variar de acordo com o lugar, pelo que não há como eleger abstratamente e de maneira determinista uma opção desse cunho (ARISTÓTELES, 2007).

Essa preocupação com peculiaridades, com sutilezas que não são passíveis de verificação exata, mas no máximo conjecturadas de forma aproximativa, respeitando as diferenças, só pode ser deliberada através de um raciocínio dialético, sempre provisório e sempre disposto a modificações intimamente ligadas ao caráter mutável do corpo social, da natureza entendida em sentido amplo. É exatamente essa práxis que será solapada de uma vez só por Descartes, ávido que estava em impor critérios matemáticos ao conhecimento.

Nesse novo panorama, notoriamente não há espaço para o que escapa da precisão e da univocidade matemática. O verossimilhante, o equânime, o mutável e o que pode ser de formas diferentes em situações diferentes não é compatível com a certeza exata, metódica e comprovável.