• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 MAPAS TEÓRICOS OU TECENDO REFLEXÕES EM TORNO DO

2.2. O BUDISMO TIBETANO

2.2.2. A tradição madhyamika

Madhyamika, literalmente “caminho do meio”, é uma escola filosófica do budismo mahayana baseada no ensino da “vacuidade”, ou seja, na noção de ausência de Self como entidade independente e substancial; na idéia de interdependência entre sujeito e objeto e; na expressão da compaixão. O surgimento dessa escola remonta a alguns anos após o parinirvana (morte) do Buda e se relaciona com as instruções dadas pelo próprio Gautama para a difusão do budismo.

Após atingir a iluminação, o Buda Shakyamuni convocou os seis ascetas da floresta que o haviam abandonado para transmitir-lhe seus ensinamentos. Feito isso, o iluminado solicita aos seus primeiros discípulos que viajem por todo o país e divulguem o que ouviram, o que o próprio Buda também fez enquanto estava vivo. Dessas viagens, começaram a se destacar alguns lugares da Índia, tais como Kapilavatsu, Kosala e Sravasti, aonde os arhats73 se instalavam e ali faziam mais alunos que caminhariam espalhando a doutrina do Buda. Dentre todos os locais, merece destaque Nalanda, cidade onde mais tarde seria fundada uma das primeiras universidades monásticas da história do budismo e principal centro de ensino da época74.

Na mesma época, cerca de quatrocentos anos após a morte do Buda, nascia no Sul da Índia aquele que mais tarde ficaria conhecido como Nagarjuna. Uma profecia dizia que o garoto não viveria mais do que sete anos, apesar de ser dotado de qualidades especiais. Por isso, ele foi levado para locais de peregrinação por todo o país e no caminho encontrou a Universidade de Nalanda, onde foi convidado a entrar e praticar junto aos monges daquele

73 Alunos qualificados.

74 Nosso intuito, neste momento, não é apresentar as idéias básicas do budismo, tais como “as quatro nobres

verdades”, “nobre caminho de oito passos”, “os doze elos da originação interdependente”, tendo em vista já haver extensa literatura na área (CHAGDUD RIMPOCHÉ, 2003, PADMA SANTEM, 2006; DENKÔ MESA, 2007), e não fazer parte do objetivo deste trabalho. Nossa meta é destacar as idéias da tradição madhiamyka de Nagarjuna.

lugar sagrado. Identificando-se completamente com os ensinamentos budistas, aquele menino conseguiu protelar seu encontro com Yama, o senhor da morte.

O aparecimento de Nagarjuna foi de grande benefício para os ensinamentos do Buda. O constante ataque aos ensinamentos acabou por enfraquecer muito a tradição budista e diminuir sua credibilidade entre as pessoas comuns. Como havia peregrinado por grande parte da Índia, Nagarjuna aprendera diversas artes e ciências, as quais ele assimilou e introduziu dentro do plano de ensino da Universidade. Funde assim elementos de lógica, ciência e lingüística à prática espiritual, tornando Nalanda e seus monges conhecidos como Mahasamghikas, Grande Assembléia, mais tarde chamados de madhyamika ou madhyamika- prasamghika, Assembléia do Caminho do Meio. Assim, surge a tradição madhyamika do budismo mahayana, a qual segundo Hayward e Varela (1995, p. 153) tem entre seus princípios fundamentais “a não-dualidade do sujeito e do objeto, do espírito e do mundo.”

Os ensinamentos da tradição madhyamika eram bastante diretos: passavam pela busca da relação entre a verdade relativa e a verdade absoluta por meio do ensinamento da vacuidade ou ausência de self substancial.

O ensinamento da vacuidade ou sunyata apresentou-se como uma possibilidade entre os extremos do substancialismo e da não-existência ou niilismo. Para Nagarjuna, a verdade absoluta não está sujeita aos efeitos da impermanência e não pode ser descrita ou concebida com palavras e conceitos. Ela se manifesta mediante a experiência da verdade relativa na forma de samsara – o mundo tal como nós o percebemos empiricamente e a noção de eu a que nos prendemos, nos movimentando segundo tais especulações. Assim, acabamos nos aprisionando a um self, a um si-mesmo (svabhava, em páli), o qual na verdade não existe como entidade substancial e independente. Nagarjuna refutou, dessa forma, as noções de identidade e de si mesmo demonstrando sua inconsistência lógica e provando que o aprisionamento a tais noções era o principal entrave à iluminação.

O ensinamento de Nagarjuna sobre a vacuidade baseava-se, dessa forma, no conceito de originação interdependente: o ser surge inseparável dos outros e da situação em que surge. O vazio de Nagarjuna, longe de se tratar de “não-existência”, referia-se a ausência de surgimento independente, de existência inerente.

Quando há isto, aquilo surge, como o baixo quando há o alto. Quando isso é produzido, também aquilo, como a luz de uma chama. Quando há “alto”, deve haver “baixo”, eles não existem por sua própria natureza, do mesmo modo que sem uma chama tampouco surge a luz. (NAGARJUNA, 1995, p. 21).

Assim, não se nega o valor da experiência empírica, mas diz-se que ela deve ser encarada para além dos conceitos relativos da verdade.

Na análise da consciência realizada por Nagarjuna, cada momento de experiência toma a forma de uma consciência particular que tem um objeto particular, por meio de relações particulares. Por exemplo, um momento de consciência da visão é composto por um observador (o sujeito) que vê (a relação) algo que é visto (o objeto); num dado momento de consciência da ira, aquele que está irado (o sujeito) experimenta (a relação) a ira (o objeto). (É aquilo que designamos protointencionalidade). As escolas mahayanas partiram do princípio de que havia propriedades materiais que eram tomadas como objetos por cinco dos sentidos – vista, ouvido, olfato, gosto e tato – e que havia pensamentos que eram tomados como objeto pela consciência da mente.

A tradição mahayana fala não apenas de um, mas de dois sentidos do ego-self: ego do self e ego dos fenômenos (dharmas). O ego do self seria a busca habitual de um self que temos vindo a discutir. Os mahayanas defendem que as tradições primitivas atacaram esse sentido do self, mas não desafiaram a confiança em um mundo que existe de forma independente, nem as relações momentâneas da mente com esse mundo. Nagarjuna critica a existência independente nos três termos – o sujeito, a relação e o objeto. “Não há nada que surja de forma não-dependente. Por essa razão, não há nada que não seja vazio” (VARELA, THOMPON, ROSCH, 2003, p. 228).

Podemos resumir os argumentos de Nagarjuna em:

1. Se os sujeitos e os seus objetos, as coisas e os seus atributos, as causas e os seus efeitos existem de forma independente como habitualmente pensamos, ou existem de forma absoluta e intrínseca como afirma a análise do elemento básico, então eles não devem depender de qualquer tipo de condição ou relação. Isso é basicamente um questionamento filosófico sobre os significados de independente, intrínseco e absoluto. Por definição, algo é independente, intrínseco ou absoluto somente se não depender de qualquer outra coisa – algo que transcenda suas relações.

2. Não podemos encontrar nada em nossa experiência que satisfaça esse critério de independência ou de permanência.

Co-surgimento dependente: nada pode ser encontrado independentemente de suas condições de surgimento, formação e decadência. As causas e seus efeitos, as coisas e seus atributos, e a própria mente do sujeito inquiridor e os efeitos, as coisas e seus atributos, são cada um igualmente co-dependentes do outro.

3. Conseqüentemente, nada pode ser encontrado que tenha uma existência última ou independente, pois tudo é co-dependentemente gerado.

Varela, Thompson e Rosch (2003, p. 228) apontam que Nagarjuna defende a existência de duas verdades: a) verdade relativa (samvrti), que literalmente significa coberto ou escondido, é o mundo fenomenal tal como ele aparece – com cadeiras, pessoas, espécies e a coerência de tudo isso ao longo do tempo, e b) verdade absoluta (paramartha) que é o vazio desse mesmo mundo fenomenal. O termo para verdade relativa, Kundzop, capta a relação entre as duas sob a forma de uma imagem: Kundzop significa algo todo enfeitado, pronto ou vestido – ou seja, a verdade relativa é sunyata (verdade absoluta), revestida pelas cores brilhantes do mundo dos fenômenos.

A distinção entre as duas verdades refere-se à descrição da experiência do praticante que experiencia sua mente, seus objetos e suas relações como tendo origem co-dependente e, dessa forma, sendo vazios de qualquer existência real, independente ou permanente. Para explicar melhor essas duas verdades, pode-se citar o exemplo do corpo humano: o que é o corpo? É possível apontar a cabeça, o tronco, os membros etc., mas não o “corpo” em si; é possível analisar cada uma destas partes, até chegarmos às partículas da matéria, mas sem encontrar qualquer coisa que, sozinha, possa ser chamado de “corpo”. Afirmar que o corpo “existe” por si mesmo seria contraditório, mas afirmar que ele “não-existe” também é contraditório. Dizer “que o corpo existe e não-existe” ou que “não-existe nem não-existe” seria apenas uma argumentação absurda” (MESA, 2007, p. 28).

Com pouco tempo os ensinamentos de Nagarjuna se espalharam por toda a Índia e impregnaram todo o campo de ensino das principais universidades da época, formando grandes mestres e fazendo reviver a antiga tradição mahayana. Serviram, com isso, para ajudar a difundir os ensinamentos por toda a Ásia, quando a Índia foi invadida por diversos povos de diferentes regiões. Apesar de ter nascido e se desenvolvido na Índia, mais tarde e até os dias atuais, o budismo é praticado em pontos isolados do país.

Na filosofia madhyamika de Nagarjuna, o método da atenção foi considerado fundamental. Atenção significa que a mente está presente na experiência incorporada de cada dia, não se manifestando dissociada do corpo; técnicas de atenção75 são projetadas para levar a mente de volta de suas teorias e preocupações, da atitude abstrata, para a situação da própria experiência da pessoa. As descrições e os comentários sobre a mente que surgiram a partir

dessa tradição nunca se divorciaram da pragmática da vida: eles tinham como intenção formar um indivíduo para lidar com sua própria mente em situações pessoais e interpessoais. O que tem paralelos sugestivos com o projeto fenomenológico de Merleau-Ponty de incorporar o homem no mundo.

A análise dos manuais mais divulgados de meditação, como os de Davich (2002) e Goleman (1997), permite-nos vislumbrar alguns dos diferentes significados atribuídos à palavra “meditação”: (1) um estado de concentração no qual a consciência enfoca um objeto apenas; (2) um estado de relaxamento que é psicológica e medicamente benéfico; (3) um estado dissociado no qual o fenômeno do transe pode ocorrer; (4) um estado místico no qual realidades superiores e objetos religiosos são experimentados. Todos esses são estados alterados de consciência: a pessoa que medita está fazendo algo para se afastar de seu estado habitual de realidade-mundano, não-concentrado, não-relaxado, não-dissociado. A filosofia budista da mente da atenção/consciência pretende promover exatamente o oposto disso. Seu objetivo é levar a pessoa a tornar-se atenta, experienciar o que a mente está fazendo enquanto ela o faz, estar junto com a própria mente na sua dimensão cotidiana, inteiramente encarnada no corpo. Assim, a primeira grande descoberta da meditação atenta tende a ser não um insight abrangente sobre a natureza da mente, mas uma percepção aguda de como os seres humanos são normalmente desvinculados de suas próprias experiências, funcionando de forma a dissociar mente e corpo.

A relevância para a educação é quase auto-evidente. Além de incorporar nas práticas educativas uma noção complexa de experiência como suporte para as aprendizagens dos sujeitos, essa abordagem permite lidar com questões específicas, tais como: Como pode a mente tornar-se um meio para o conhecimento dela mesma? Isto poderia incrementar as habilidades de consciência metacognitiva? Como pode a veleidade, a não-presença da mente ser trabalhada? É possível educar a mente? E o que essa educação quer significar no atual contexto societário? Qual a relação dessa educação com as experiências de ensino e aprendizagem que são alvo dos sistemas educativos? Como um modelo integral, que não dissocia mente e corpo, poderia impactar a formação de sujeitos mais autônomos e engajados? Até mesmo a mais simples ou mais agradável experiência diária – caminhar, comer, conversar, dirigir, ler, esperar, pensar, fazer amor, planejar, relembrar, escrever, cochilar, emocionar-se, visitar lugares interessantes – passa rapidamente em uma névoa de comentários abstratos enquanto a mente descobre que a atitude abstrata que Merleau-Ponty atribui à ciência e à filosofia é, na realidade, a atitude da vida cotidiana quando não estamos atentos.

Essa atitude abstrata é o traje espacial, o acolchoamento feito de hábitos e pressuposições, a armadura com a qual uma pessoa habitualmente se distancia de sua experiência formativa como sujeito-que-aprende-no-mundo.

Isso significa que a dissociação mente/corpo, consciência/experiência, homem/mundo é o resultado do hábito, e esses hábitos podem ser quebrados. Nós podemos “aprender” a estar presentes nas atividades diárias. Esse “estar presente” nos traz para o cerne metodológico da interação entre a meditação da atenção/consciência (budismo), a abordagem transpessoal, a fenomenologia e a educação. O que se sugere no curso de Educadores Holísticos é uma mudança na natureza da reflexão do sujeito da educação, de uma atividade abstrata desincorporada para uma reflexão incorporada (atenta) aberta, ou seja, em que os dualismos possam ser superados.

O que essas formulações pretendem veicular, para o campo pedagógico, é que a reflexão sobre a aprendizagem do sujeito não é apenas sobre a experiência, mas ela própria é uma forma de experiência – e a forma reflexiva de experiência pode ser desempenhada com atenção/consciência. Quando a reflexão é feita dessa forma, ela pode interromper a cadeia de padrões de pensamentos habituais e pré-concepções, de forma a ser uma reflexão aberta – aberta a possibilidades diferentes daquelas contidas nas representações comuns que uma pessoa tem do espaço da vida.

Varela; Thompson e Rosch (2003) destacam que em nosso treinamento e prática de cientistas e filósofos ocidentais é claro que procedemos de maneira diferente. Perguntamos por exemplo “o que é a mente?”, “O que é o corpo?”, e prosseguimos refletindo teoricamente e investigando cientificamente. Esse procedimento dá origem a uma série de afirmações, experimentos e resultados sobre diversos aspectos das habilidades cognitivas. Mas no curso dessas investigações, com freqüência esquecemos exatamente de estar fazendo a pergunta e de como ela está sendo feita. Por não nos incluirmos na reflexão, fazemos apenas uma reflexão parcial, e nossa pergunta tornar-se desincorporada. Há um aprisionamento em pré- suposições que reflete a desincorporação do pensamento.

A tradição fenomenológica tem sido um dos poucos aparatos ocidentais a se contrapor a falta de reflexão com auto-inclusão, contudo tem apresentado dificuldade de propor um projeto que vá além da reflexão teórica sobre a experiência. A atenção/consciência não se

enquadra em nenhum desses casos – ela trabalha diretamente com nossa incorporação básica e assim a expressa76. Logo, a reflexão teórica não precisa ser desatenta e desincorporada.

Documentos relacionados