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CAPÍTULO 2 MAPAS TEÓRICOS OU TECENDO REFLEXÕES EM TORNO DO

2.1. A FENOMENOLOGIA

2.1.1. Uma declaração inicial do que é a fenomenologia

2.1.1.3. O entre-deux de Merleau-Ponty e alguns conceitos básicos

Enquanto Hussserl buscava um agrupamento completo do mundo por meio da redução fenomenológica, Maurice Merleau-Ponty sustentava que não poderia haver nenhuma negação do mundo e, portanto, nenhum agrupamento completo. Heidegger buscava entender o ser, Merleau-Ponty concentrava-se na primazia da percepção. Enquanto Sartre via uma dicotomia radical entre a consciência e o mundo, Merleau-Ponty entendia a percepção como sendo sempre uma parte do mundo. Para Merleau-Ponty a percepção está no mundo e vem do mundo. Como a reflexão ocorre no fluxo temporal do mundo, a única maneira de vê-la com alguma exatidão é aceitar essa base terrena no estudo filosófico. Para ele, as raízes da mente estariam no corpo e no mundo, e sustentava que a percepção não é apenas o efeito de coisas externas sobre nós, pois não existe interioridade ou exterioridade pura.

Merleau-Ponty tentou projetar um programa filosófico que o capacitasse para a construção de uma nova base para a pesquisa da imaginação, cultura, ética e política. Infelizmente, sua morte prematura, em 1961, impediu-o de realizar esse objetivo, e temos apenas uma idéia do que seus planos poderiam ter produzido. Sokolowski (2004) diz que

Ponty usava os conceitos fundamentais da fenomenologia, mas interpretava-os à sua própria maneira.

Para Merleau-ponty, não podemos escapar da nossa “faticidade”, de nossa existência terrena. Devemos reconhecer que a própria consciência humana é um projeto do mundo, um mundo que ela não tem nem aceita, mas que sem o qual não pode existir. A consciência está perpetuamente direcionada para o mundo das coisas, das idéias, dos eventos, das pessoas, ou da experiência. A percepção não é uma síntese puramente intelectual; ao contrário, ela é experimentada pelo corpo e no mundo, em nível pré-reflexivo. A reflexão ocorre após a percepção e ajuda a “ escreve -la” ou escreve -la, pois uma percepção que não é seguida de um pensamento logo se perde. A reflexão envolve a linguagem e isso nos afasta ainda mais da imediação. Como Merleau-ponty afirma, usar a linguagem, nomear uma coisa ou escreve-la em linguagem é afastar-se das características individuais e singulares daquela coisa, e vê-la como representativa de uma essência ou categoria é ir do concreto ao categórico, em que as palavras estabelecem o significado.

Para Merleau-Ponty, a percepção é primordial. Ele acreditava que a filosofia anterior havia errado ao ver nossa principal relação com o mundo como aquela de um pensador com um objeto de pensamento. Pensar, pensamento e objetos de pensamento não são concretos, mas abstratos. A percepção ocorre em um mundo concreto e temporal de fluxos, e o que pensamos depois a seu respeito pode não servir para percepções futuras similares. Em outras palavras, a percepção é imediata e pré-reflexiva, sendo que “cada percepção ocorre em um horizonte particular [...] Experimentamos uma percepção e seu horizonte ‘em ação’, em vez de ‘apresentando-os’ ou explicitamente ‘conhecendo-os’ ”.

O significado dessa compreensão, a qual insere uma nota de ceticismo na filosofia de Merleau-Ponty, é que não podemos ver nossas percepções como abstrações ou teoremas puros e unificados, pois nenhum cogito cartesiano carrega a verdade, nem é a verdade imanente à percepção. Isso ocorre de forma secundária e, certamente, pode ser obtido na reflexão, mas, é abstrato, categórico e secundário. Em outras palavras, a verdade abstrata não é auto-evidente na percepção, mas a percepção tem, em si, o potencial de chegar à verdade de modo mais apropriado, à medida que é sentida ou experimentada, em vez de quando é filtrada por dogmatismos filosóficos e suposições do passado.

Para o filósofo francês Merleau-Ponty, a identificação desse círculo abriu um espaço entre o homem e o mundo, entre o interno e o externo. Esse espaço não era um abismo ou divisor: ele englobava a distinção entre homem e mundo e, ainda, provia a continuidade entre

eles. Sua abertura revela-se como um caminho do meio, um entre-deux. Assim, no prefácio de sua Fenomenologia da Percepção, ele escreve:

Comecei a refletir, minha reflexão é sobre um irrefletido; ela não pode ignorar-se a si mesma como acontecimento, logo ela se manifesta como uma verdadeira criação, como uma mudança de estrutura da consciência, e cabe- lhe reconhecer aquém de suas próprias operações, o mundo que é dado ao sujeito, porque o sujeito é dado a si mesmo... A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 5-6).

Mais adiante, no final dessa mesma obra, ele acrescenta:

O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta.64

Esta visão de um sujeito “inseparável do mundo”, que, neste trabalho denominamos de sujeito incorporado, foi desenvolvida e integrada pelas tradições que sustentam o referencial teórico do curso, e defendem a tese de que a dualidade mente/corpo surgiu da ignorância sobre a natureza das relações do organismo humano com o ambiente; não havendo sustentação para a tese cartesiana que postula um corpo que é pura matéria extensa e nem se cogita uma mente que é mera substância pensante.

Este entre-deux “não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição, ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas” (Ibid., p. 6); portanto, não é um objeto físico, como se fosse um recipiente no qual estão postos todos os entes, inclusive o homem. Mas é o “campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas” (ibid., p. 6). Merleau-Ponty, ao falar em termos pessoais de pensamentos e reflexões, está se referindo ao sentido que o mundo faz para o sujeito. Entretanto, olhando de outra perspectiva, daquela do mundo como sendo o campo de todos os pensamentos e de todas as percepções explícitas, tem-se o núcleo da conexão homem/mundo.

A partir das idéias de Merleau-Ponty podemos destacar os principais temas do método fenomenológico: a volta às coisas mesmas, a redução fenomenológica e a intencionalidade.

2.1.1.3.1. O retorno às coisas mesmas

No prefácio de sua obra, Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty põe como tarefa primordial da fenomenologia a descrição das coisas e não sua mera explicação ou análise. Recusando tanto o subjetivismo, com o seu voltar-se para dentro de si ou para o interior da consciência, como também o objetivismo cientifico, ele destaca que a

Filosofia não é ciência, porque a ciência acredita poder sobrevoar seu objeto, tendo por adquirida a correlação do saber e do ser, ao passo que a Filosofia é o conjunto das questões onde aquele que questiona é ele próprio, posto em causa pela questão. (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 37).

Assim retorno às coisas mesmas “é um antes de tudo a desaprovação da ciência” (Idem, 1999, p.3) como representante de um saber que se impõe sem explicação, um desmentido que põe em xeque os pressupostos absolutistas defendidos principalmente pelas teorias empiristas e não da ciência em geral. Diferentemente do que afirma a ciência reducionista, Ponty destaca que

Eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu corpo ou meu ‘psiquismo’, eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar-me sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada (Idem, 1999, p. 3).

O retornar às coisas em si mesmas é voltar ao mundo-vivido, ao mundo da experiência, antes de termos acrescido nossas visões limitadas, é, segundo Merleau-Ponty,

[...] retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, com a geografia em relação à paisagem – principalmente nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho (Idem, 1999, p. 4).

Questionando a idéia da supremacia da consciência como constitutiva do mundo, o autor destaca que o “real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos para anexar a si os fenômenos aberrantes, nem para rejeitar nossas imaginações mais verossímeis”65. Assim, retornar as coisas em si mesmas é perceber este mundo vivido como solo primeiro dos meus

sentidos, incluindo nossa abertura para o mundo e negando a idéia de que a verdade “habita apenas o ‘homem interior’, ou antes não há homem interior, o homem está no mundo e é no mundo que ele se conhece”66.

A redução fenomenológica, como possibilidade de esclarecimento da abertura ao mundo e aos outros, só será possível graças à retomada do mundo vivido segundo o retorno às coisas. Assim temos estes conceitos entrelaçados.

2.1.1.3.2. A redução fenomenológica e a redução eidética

A idéia de redução fenomenológica, compreendida como pôr entre parênteses, foi uma das questões mais polêmicas propostas pelos escritos iniciais de Husserl. Dada a sua ambigüidade e seu caráter enigmático, Merleau-Ponty (1999, p. 7) rejeitou esta idéia de redução por expressar a atitude de um idealismo transcendental, pois ela “era apresentada como o retorno a uma consciência transcendental diante da qual o mundo se desdobra em uma transparência absoluta”, de forma que a fratura entre consciência e experiência permaneciam.

Com a introdução da noção de intencionalidade, Husserl supera a visão da consciência como representação, reintroduzindo a consciência no mundo vivido. Para Merleau-Ponty essa forma de refletir marca radicalmente a virada do pensamento fenomenológico como uma busca de retorno ao mundo existencial, sendo um golpe nas idéias intelectualistas de construção do objeto por parte do sujeito, pois o mundo é preexistente à reflexão mas não separado de nós, conforme destacado por Varela, Thompson e Rosch (2003, p. 21):

[...] as mentes despertam em um mundo. Não projetamos nosso mundo. Nós simplesmente nos descobrimos com ele; nós despertamos tanto para nós mesmos quanto para o mundo que habitamos. Vimos a refletir sobre esse mundo à medida que crescemos e vivemos. Nós refletimos sobre um mundo que não é feito, mas encontrado, e é também nossa estrutura que nos possibilita refletir sobre esse mundo. Então, ao refletirmos, nós nos encontramos em um círculo: estamos em um mundo que parece que já existia antes da reflexão ter-se iniciado, mas esse mundo não é separado de nós.

Para Merleau-Ponty, a redução é antes de tudo desvelamento e surgimento do mundo vivido, do mundo da experiência, no qual a consciência está posta como abertura para si e para o mundo e não fechada em si mesmo, em uma interioridade que a separa do mundo. Segundo tal perspectiva, a redução trata do irrefletido posto pelo mundo, sendo esta reflexão

vista como “[...] projeto do mundo, destinada a um mundo que ele não abarca nem possui, mas em direção ao qual não cessa de se dirigir” (Merleau-Ponty, 1999, p. 15). Assim, a redução, quando nos põe em movimento de retorno as coisas mesmas, revela o mundo como tal e ao mesmo tempo nos desvela, pois o “mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”67.

Apesar das ambigüidades para falar-se de reduções fenomenológicas, pode-se dividir a redução em dois tipos: a primeira é a redução fenomenológica ou epoché e a segunda a redução eidética.

A redução fenomenológica ou transcendental, também conhecida como epoché, é uma palavra grega que significa “suspensão”, “cessação”, ou seja, a colocação entre parênteses de todo interesse “naturalmente” orientado. Époche consiste em deixar de lado todos os nossos pré-conceitos, numa suspensão provisória dos nossos julgamentos, para assim poder apreender as “coisas em si”. Quando afastamos, ou melhor, suspendemos os nossos valores e julgamentos, evitamos que as idéias pré-formadas influenciam no entendimento do fenômeno. A redução eidética é uma análise descritiva das vivências da consciência, da sua relação com o mundo. Essa redução busca descobrir e apreender as essências dos fenômenos.

Uma descrição propriamente fenomenológica não se contentará em dizer de que maneira estão sendo dadas as respostas, mas de que outras maneiras elas poderiam ou deveriam ser dadas. De qualquer forma, porém, para ser provocante, uma descrição deve pôr em evidencia o sentido como sendo para o sujeito, diante do qual este último se sinta provocado à alternativa do engajamento consciente e livre ou da alienação, embora sabendo que sua correspondência não será necessariamente plena ou perfeita. (REZENDE, 1990, p. 25-26).

Para alcançarmos as essências e torná-las presentes para nós de acordo com a redução eidética, é necessário depurar o fenômeno de tudo que não seja essencial, chegando assim ao eidos, ou seja, àquilo que é invariável e separado de todas as contingências.

De forma geral podemos compreender os dois tipos de redução como uma busca de superação das dicotomias em “relação sujeito/objeto, relativos aos paradigmas do idealismo, do empirismo e do positivismo, sem negar, todavia, suas contribuições para o desenvolvimento da história do conhecimento da humanidade” (MOREIRA, 2004, p. 62).

2.1.1.3.3. A intencionalidade

Em Husserl, a intencionalidade é usada para se contrapor a um dos princípios básicos da psicologia clássica: o de que a consciência abriga imagens ou representações dos objetos que afetam nossos sentidos, nela se depositando como uma espécie de conteúdo. Contrapondo-se a esta idéia, Husserl afirma que todo o estado de consciência em geral é, em si mesmo, consciência de qualquer coisa, seja qual for a existência real desse objeto e qualquer que seja a abstenção que eu faça na atitude transcendental que é minha da posição desta existência e todos os atos da atitude natural, de forma que a “[...] palavra intencionalidade significa apenas [...] esta particularidade intrínseca e geral que a consciência tem de ser consciência de qualquer coisa, de trazer, na sua qualidade de cogito, o seu cogitatium em si próprio” (HUSSERL, 1989, p. 49).

Para Merleau-Ponty (1999, p. 15), a noção de intencionalidade posta na idéia de que “toda consciência é consciência de algo” não é nova, Kant quando realizou a sua Refutação do Idealismo, já havia demonstrado que “a percepção interior é impossível sem a percepção exterior, que o mundo, como conexão de fenômenos, está antecipado na consciência de minha unidade, é o meio para mim de me realizar como consciência”68. Todavia, o avanço da posição fenomenológica em relação a Kant é que “a unidade do mundo, antes de ser posta pelo conhecimento e em um ato expresso de identificação, é vivida como já feita ou já dada”69. De forma que temos o rompimento da lógica que punha o conhecimento como uma atividade primeira e absoluta.

Dentro da perspectiva de Merleau-Ponty, a intencionalidade não pode ser pensada dissociada da redução, nem de seu caráter de abertura para o mundo. “Trata-se de reconhecer a própria consciência como projeto do mundo, destinada a um mundo que ela não abarca nem possui, mas em direção ao qual ela não cessa de se dirigir”70. Assim a intencionalidade, resgata a idéia de que a consciência “não é uma substância, mas uma atividade constituída por atos (percepção, imaginação, volição, paixão, etc.) com os quais visa algo” (MOREIRA, 2004, p. 85).

É a intencionalidade um movimento dialético que nos repõe continuadamente no mundo, e na condição de seres do mundo estamos marcados pelo mundo da percepção como lugar das significações, sentido de todos os sentidos e o solo de todos os pensamentos. Assim,

68 Merleau-Ponty (1999, p. 15). 69 Merleau-Ponty, loc.cit. 70 Merleau-Ponty, loc. Cit.

a abertura para o mundo nos coloca em relação direta com os sentidos e não-sentidos, uma vez que para Merleau-Ponty a redução nunca é completa.

O estudo da fenomenologia e sua articulação com as tradições orientais tem sido objeto do grupo de estudo do NEIMFA. A seguir detalharemos a influência do budismo tibetano na composição da visão teórica da instituição investigada.

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