• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III A REFORMA AGRÁRIA NO MUNICÍPIO DE TABULEIRO DO NORTE (CE) E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO

Mapa 1 – Localização do PA Diamantina

3.3 A trajetória do camponês assentado do PA Diamantina

O campesinato brasileiro é caracterizado por diversas formas diante da multiplicidade de situações e fatores históricos que marcaram a construção do espaço agrário deste país. São várias as denominações e autodenominações (CARVALHO, 2005). Aqui será tratada uma denominação especifica, qual seja: o camponês assentado. A importância de reconhecer esse sujeito social, não apenas como assentado, mas como camponês assentado, está ancorada nas

140Entrevista realizada no dia 26 de junho de 2011, sede do STTR, município de Limoeiro do Norte, Ceará. 141Entrevista realizada no dia 14 de junho de 2011, PA Diamantina, Tabuleiro do Norte, Ceará.

155 reflexões do referido autor, quando afirma que “a categoria assentado foi mais utilizada pelas instituições governamentais que pelos agricultores [...]. Ao ser caracterizados como assentados, prevalece a ação do Estado que prefere considerar-lhes como beneficiários, ou seja, como objeto e não como sujeitos” (CARVALHO, 2005, p. 154).

Assim, mesmo quando cita-se apenas assentado ao longo deste texto, leia-se camponês assentado, numa perspectiva de romper o processo advertido acima, bem como pôr em relevo o seu caráter de classe ou como bem destacou Almeida (2006): apesar de alguns camponeses não lutarem e assim não terem cortado a cerca e/ou nem entenderem a luta a partir de um mesmo formato, essa distinção não anula sua identidade e sua consciência de classe, por conseguinte, seu habitus de classe camponesa em meio a diversidade da luta. “É, portanto, uma identidade tecida ao lado de uma gama de outras diferenças” (ALMEIDA, 2006, p. 352).

A trajetória de vida dos camponeses assentados até a chegada no PA Diamantina é marcada por relações sociais de produção onde predominou ou combinou-se pobreza, precarização, exploração, expulsão, expropriação e sujeição da renda da terra ao capital. Relações na maioria dos casos marcadas pela dominação/exploração do camponês pelo patrão (latifundiário capitalista rentista). A ampla maioria dos assentados entrevistados afirmaram ter experiência com a agricultura desde a infância, bem como também, confirmam que viviam das atividades agropecuárias no momento imediatamente anterior à vinda para o PA, seja na condição de diarista, arrendatário, membro de unidade de produção familiar camponesa, morador de condição, entre outros. Como afirma Martins (2003b, p. 52),

[...] os candidatos a assentamento e a clientela da reforma agrária constituem a massa residual de um conjunto grande de descartes sociais e de alternativas de vida não realizadas, da desagregação de velhas relações de trabalho, de destinos não cumpridos, histórias pessoais truncadas por bloqueios de diferentes tipos oriundos de diferentes causas.

Os termos clientes e candidatos utilizados pelo autor acima se pode aplicar ao caso do PA Diamantina, onde não houve luta. Entretanto, o ponto central que merece atenção nos seus escritos é quando realça que o assentado faz parte de uma massa descartada pelo sistema e que chegam aos assentamentos com histórias de vida diversas e quase sempre marcadas pela precarização e privação, que ao se depararem com a realidade extremamente perversa e degradante nos PA’s dão continuidade a via cruzes, chegando a gerar conflitos profundos e desorganização nas comunidades, atingindo o ápice quando os assentados são obrigados a deixar a terra. Nesse sentindo o próprio Martins (2003b, p. 35) adverte:

156

Essa característica diversificada da clientela do programa de reforma agrária, que faz dela uma categoria residual de vários setores da economia, pode ser um dos fatores de referência do modo como vive a sua experiência. E referência, também, das tensões e conflitos nos assentamentos, dos problemas de abandono da terra e repasse de lotes e outras formas de desorganização social.

O assentado Ariosvaldo Gonçalves da Silva, há 4 anos e 3 meses no PA Diamantina, ampara as afirmações do autor acima. Quando ao ser solicitado para falar da sua trajetória de vida antes da chegada ao PA, deixa evidente a precariedade vivenciada em tempos de morador de condição ou, conforme ele explicita, um tipo de escravidão:

Muito tempo nós tivemos sendo morador dos outros [...] dezoitos anos. Ai depois dos dezoito anos o rapaz [proprietário] faleceu aí a mulher lá foi e vendeu tudo, aí eu fui vim embora para cá pro assentamento [...]. É uma coisa muito precária, é uma coisa muito sofrida. A pessoa sempre trabalha, é quase um tipo de escravidão, tá entendendo? Ai foi questão deu vim pra cá, que nem o pessoal falava que o INCRA sempre ajudava, aí nesse período, durante esse período que estou aqui eu num tenho nada de ajuda do INCRA não [...]142.

Moradores de condição em latifúndios é fato histórico no espaço agrário brasileiro desde a colonização, sendo sujeitos sociais relevantes nas fazendas de gado e na cultura do algodão (ANDRADE, 2005). A reflexão deste autor sobre as relações sociais de trabalho entre estes e os senhores-de-engenho, fornece uma luz para compreender o contexto apresentado acima com relação a trajetória de vida do assentado do PA Diamantina. Para Andrade (2005), esses trabalhadores tinham permissão para fazer suas moradias e pequenos roçados e em troca eram obrigados a trabalharem nas fazendas a baixo preço ou mesmo gratuitamente, caracterizando uma forma de extrair a renda da terra em trabalho do camponês. “A insegurança era uma constante na vida dos moradores, uma vez que o proprietário, por qualquer motivo ou sem nenhum motivo, podia expulsá-los das terras que ocupavam. Isso se dava frequentemente devido a choques de interesses ou a problemas de família [...]” (Ibidem, p. 95). Nesse sentido, Moreira e Targino (1997), destacam o caráter interpessoal da relação entre morador e patrão, demonstrando as dificuldades enfrentadas pelo primeiro: “era um acordo desigual porque podia ser rompido a qualquer momento pelo proprietário da terra, enquanto que o rompimento por parte do trabalhador só podia ocorrer se ele não tivesse em débito com o patrão” (Ibidem, p. 45). Mitidiero Jr. (2008), afirma ter uma variedade de situações definidoras do morador de condição, bem como de denominações: cambãozeiros, eiteiros, catingueiros, foreiros, agregados, entre outros. Para Diniz (2008, p. 44), “as relações de trabalho que passaram a

157 predominar nos sertões do Ceará foram à de camponês/morador-de-condição e a de proprietário de terra”.

O arrendamento é outra relação social de produção presente na história dos camponeses assentados. Nesse sentido está o relato da assentada Isabel Cristina Costa Freitas: “a gente vivia na Sucupira, terra a gente não tinha. Se quisesse plantar era alugada a terra né, arrendado como se diz e tinha que ser muito pouco, terra arrendada pra muita gente, ai nós viemos”. O assentado Francisco das Chagas Pereira, nessa mesma perspectiva afirma que desde sua infância “trabalhava com [o] pai [...] morava no Rio Grande [RN], trabalhava nos terrenos dos outros arrendado. Ai eu sempre fui gostando daquele serviço, da agricultura [...] eu sempre com a esperança, [de] um dia eu arrumo um terreno para eu trabalhar pra mim”143.

As dificuldades explicitadas no primeiro depoimento, no tocante ao pagamento da renda da terra (aluguel) e mesmo assim, na incipiente disponibilidade de terras para a produção, é traduzida na esperança explicitada no segundo depoimento. Esperança de um dia “arrumar” um terreno com diz o camponês depoente, ou seja, ter acesso à posse da terra e livrar-se do pagamento da renda, da exploração, da obrigação imposta pelo fazendeiro rentista.

A figura do diarista é bastante comum nos depoimentos colhidos. Vale salientar, que o PA Diamantina está encravado literalmente em meio ao agronegócio da fruticultura irrigada na Chapada do Apodi. As grandes empresas, nacionais e transnacionais, a exemplo da Frutacor144 e Del Monte Fresh Produce Brasil Ltda145, estão terroritorializadas no entorno do PA, oferecendo trabalho assalariado e/ou eventuais jornadas diárias em condições precárias, trabalhos insalubres na manipulação de agrotóxicos, atraindo uma leva de camponeses, entre eles os assentados em questão. Trabalha-se aqui com a concepção de trabalho acessório como elemento que caracteriza a produção da unidade camponesa, ou seja, o assalariamento de algum membro da família temporariamente é uma saída para os camponeses, num quadro de ausência de possibilidade de suprir suas necessidades apenas com o seu trabalho na unidade familiar camponesa (OLIVEIRA, 2001b).

143Entrevista realizada no dia 09 de março de 2014, PA Diamantina, município de Tabuleiro do Norte, Ceará. 144Empresa nacional onde o proprietário é acusado de envolvimento no assassinato da liderança camponesa José

Maria do Tomé. Disponível em: ˂http://www.brasildefato.com.br/node/28238˃. Acesso em 01 mai. 2014.

145 Iniciou sua produção em fins do século XIX na região da Califórnia (EUA). Atualmente, a matriz localiza-se

em Miami, sendo um libanês o sócio majoritário. Sua atuação, com produção e sede estratégica, atende todos os continentes, atingindo cerca de 58 países. Iniciou sua produção no Brasil em fins da década de 1980 no Rio Grande do Norte e, em 2000 e 2001, duas áreas no Ceará: em Quixeré (melão) e Limoeiro do Norte (abacaxi). A empresa tem contribuído para o desencadeamento de problemas diversos, dentre os quais a destruição de comunidades e o trabalho precarizado, com graves consequências para a sociedade e o ambiente (FREITAS, 2010, p. 124).

158 O assentado Benegildo Ferreira de Oliveira, há 1,5 anos no PA, destaca a trajetória de Sem Terra, a dificuldade de se trabalhar na terra dos outros e as obrigações a que são submetidos, bem como a relação de desconfiança entre o patrão e o trabalhador (diarista) até sua chegada ao assentamento.

É, a minha vida foi assim, só trabalhei em terras dos outros. Difícil né? Você vai trabalhar, diária né, uma coisa tipo obrigado. Tem aquele horário de pegar e de largar e tudo. É tudo naquele horariozinho. Muitos deles, proprietários, ficavam ali no pé direito né, num larga, parece que num confiava no trabalhador né [...] trabalhei parte no Rio Grande [RN] e também trabalhei parte no Ceará. [No] município de Ato Santo [CE] eu trabalhei um temporal ali, era agricultura também, diarista direto. Trabalhei em vários tipos de serviços, trabalhei de corte de lenha, de desmatamento, de plantação de cajueiro, essas coisas. Todo tempo, até um dia eu vim aqui passear aqui na casa do meu sobrinho ali, ai tinha essas terras aqui, sobrando aqui, ele me falou que era bom, ai me coloquei. Só que aqui as coisas também num é muito fácil não146.

Oliveira (2005), analisando os assentamentos rurais no Ceará, afirma que os camponeses utilizam-se da diária, do assalariamento, da proletarização como relações de trabalho transitórias, como forma de garantia da sua condição camponesa.

Raros são os casos em que o assentado do PA Diamantina tem origem urbana quando da decisão de vir para o mesmo. O depoimento de Francisco Arlindo Alves Fernandes, há 2 anos e meio no assentamento, explicita a experiência urbana na trajetória das famílias assentadas, mesmo sendo o único caso entre os entrevistados, em que vivia como proletário urbano no momento imediatamente anterior a vinda para o PA. Entretanto, ressalta-se aqui que o mesmo destacou sua infância e juventude ligadas ao campo até sua ida para a capital cearense Fortaleza.

Antes deu vim pra cá eu morava em Fortaleza. Trabalhava numa microempresa lá, trabalhei treze anos. Eu entrei como operário lá, sofri uma acidente há três anos. Inclusive, eu sou deficiente físico hoje. Minha responsabilidade começou a aumentar [...] eu era o cabeça na empresa né. Mas, aí não me valorizaram. Pra eles, assim, o salário era como se fosse o mesmo salário do operador, mas as minhas responsabilidades aumentou. Eu decidir vim embora pra cá. Vim aqui umas férias, meu irmão já tava residindo aqui com um sítio de banana no início que o senhor viu que era muito bom né. Um poço com muita água que era no começo. Aí eu vim embora, me animei. Eles falando que o INCRA ia dar assistência né pra gente. Eu fui, vim embora, larguei meu emprego lá e vim embora, pensando que, realmente, o INCRA ia dar né, assistência a gente. Mas, até hoje, já tá com dois anos e meio, eu vim prá e agora se a gente num cria um criarzinho, uma galinha, uma ovelha, uma vaca, alguma coisa pra ir sobrevivendo, da parte do INCRA né, praticamente, abandonou a gente. Só veio aqui uma vez, mas só promessa, só promessa. Disse que esse governo cortou todas as verbas dos assentamentos e aí a gente num sabe como vai ficar, né, agora147.

146Entrevista realizada no dia 09 de março de 2014, PA Diamantina, município de Tabuleiro do Norte, Ceará 147Entrevista realizada no dia 29 de outubro de 2013, PA Diamantina, município de Tabuleiro do Norte, Ceará

159 Os depoimentos neste item mostram que os assentados estão há 2, 3 até 4 anos na comunidade, ou melhor, chegaram ao PA ao longo dos dez anos de história do mesmo em períodos diferenciados. É a dinâmica de entra e sai de famílias. No entanto, é preciso abrir um parêntese para destacar que, durante a pesquisa, não foi constatado no PA Diamantina o processo de venda de lotes. Os camponeses assentados, frente a profunda precariedade não tem tido a oportunidade de reprodução básica, ou seja, de adquirir bens, formar culturas agrícolas e rebanhos e/ou construir estruturas físicas (silos, currais, apriscos, armazéns, etc.), que façam com que no momento da decisão de deixar a terra ocorra alguma negociação com aqueles que chegam. Dessa maneira, a maioria dos camponeses assentados no PA Diamantina estão atuando na lógica da perda/prejuízo, como destaca Almeida (2006). Portanto, ao deixar a comunidade simplesmente saem com a família e alguns poucos objetos pessoais ou no máximo um transporte em péssimo estado de conservação (motocicleta, uma carroça a tração animal ou mesmo um automóvel). Os que chegam, encontram os lotes e as moradias vazias, muitas vezes, com problemas no tocante a dívidas com a empresa fornecedora da energia elétrica, moradias em péssimas condições, lotes totalmente abandonados, e logo se instalam, inexistindo, desse modo, a necessidade e a figura do agregado. São, geralmente, indicados por um parente ou mesmo um conhecido que estimula a vinda de outros camponeses na esperança de, como eles dizem, “encher o assentamento, encher as casas e quem sabe o INCRA olhe por nós”. Ou mesmo, são assentados que já passaram pela comunidade e que desistiram anos ou meses atrás e que recebem uma nova chance da comunidade e retornam na esperança de, desta vez, conseguir permanecer na terra. Assim, os que chegam marcam um momento/motivo de alegria e ao passarem pelo crivo da assembleia e depois de cumprido o tempo de experiência exigido a documentação segue para o INCRA para a efetivação do cadastro.

Por fim, como pôde ser visto ao longo dos depoimentos, a trajetória dos camponeses assentadas do PA Diamantina é marcada em sua maioria, de um lado, pela condição de Sem Terra ou acesso precário a esta, pela ligação com campo ao longo da vida, pelas condições de exploração e subordinação do trabalho camponês ao capital, na figura do patrão que extrai a renda da terra nas diversas formas apresentadas. Do outro, pela esperança materializada na vinda para o assentamento, que aos poucos cede frente aos anos de extrema dificuldade na dura realidade vivenciada pelas famílias. Resta saber se a referida esperança e a capacidade de reenraizamento deste camponês assentado sobrevive ao modelo como está sendo implementado os assentamentos rurais. O próximo item, que tratará do contexto vivenciado pelas famílias no Assentamento Diamantina, será fundamental para contribuir na elucidação desta questão.

160