• Nenhum resultado encontrado

A transdisciplinariedade e seus pressupostos

1.3 A transdisciplinaridade e os seus fundamentos

1.3.2 A transdisciplinariedade e seus pressupostos

Japiassu87 designou de “patologia do saber” o processo de fragmentação do conhecimento. Haveria um esmigalhamento epistemológico, gerado pela especialização exagerada e sem limites, que dificulta a compreensão do conhecimento em sua totalidade. Segundo o autor, quanto mais se desenvolve disciplinas hermeticamente fechadas, mais se perde contato com a realidade humana.

É possível, aqui, fazer remissão aos ensinamentos de Morin, registrados nessa pesquisa. A ciência tradicional abraçou os princípios da ordem, separação, redução e da lógica indutivo-dedutivo-identitária. A consequência foi a construção, no plano científico, de um 83 Cf. NICOLESCU, 1999., p. 45; JAPIASSU, 1976, p. 72-73. 84 NICOLESCU, 1999, p. 45-46. 85 Ibid., p. 46. 86 NICOLESCU, 1999, p. 46. 87 JAPIASSU, 1976, passim.

saber compartimentalizado, de leis simples e imutáveis, cuja lógica impossibilitava conceber os elementos de indeterminação ou imprevisibilidade88.

Para compreender tal associação, faz-se necessário considerar-se os três pressupostos da transdisciplinaridade: (1) níveis de realidade; (2) lógica do terceiro incluído; e (3) complexidade89.

O primeiro pressuposto trabalha com a ideia segundo a qual existem níveis diferenciados de realidade. Os níveis de realidade corresponderiam a níveis de percepção, que abarcariam, além de uma construção social, uma dimensão quântica. Com base na física quântica, Nicolescu apresenta os estudos de Heisenberg para explicar “[...] que é impossível localizar um quantum num ponto preciso do espaço e num ponto específico do tempo”90,

fenômeno ao qual chamou de “indeterminismo”.

O “indeterminismo” quântico questiona o dogma filosófico que concebe apenas um nível de realidade. Num sistema, seria possível a coexistência dos níveis quântico e macrofísico, que, por sua vez, permitiria, além da releitura de conhecimentos antigos, apresentar uma nova faceta do conhecimento do presente e repensar o indivíduo, nas esferas social e individual. Em outras palavras, há inúmeros níveis de realidade, que se manifestam como um espaço de descontinuidade, de forma que todo conhecimento é complementar, não reduzido a uma realidade unidimensional91.

Vasconcellos92, ao tecer críticas acerca da objetividade científica, apresenta uma reflexão similar. Refuta a lógica cartesiana que isola os sujeitos dos objetos. Com base em Heisenberg, informa não ser possível existir uma observação objetiva das partículas atômicas. Isso porque os físicos perceberam que, o ato de observar uma partícula quântica, influenciava o que viam. Na física clássica, a velocidade pressupõe movimento e mudança de localização. Acontece que, ao medir a velocidade da partícula, não se pode aferir, ao mesmo tempo, sua localização e velocidade. Ao localizá-la, não se sabe sua velocidade; ao aferir sua velocidade, não se pode localizá-la. Ou seja, ou se mede sua localização, ou se mede sua velocidade. O “princípio de incerteza” de Heisenberg permitiria a introdução do relativismo do conhecimento. O conhecimento estaria relativizado às condições do observador. Dessa forma, não seria possível apenas um ponto de vista para contemplar o objeto como um todo. Haveria

88 Cf. LE MOIGNE; MORIN, 2000, p. 97. 89 NICOLESCU, 1999, p. 47. 90 Ibid., p.22-23. 91 Ibid., p. 23. 92 VASCONCELLOS, 2012, p. 132-133.

de complementar diferentes níveis de visão: a crença na existência da realidade (no realismo do universo) com o relativismo do conhecimento93.

A existência de um “nível quântico” de conhecimento, que difere do “nível macrofísico”, lançou nova luz à lógica da ciência tradicional. Não por acaso, a lógica do terceiro “incluído” tornou-se o segundo pressuposto da transdisciplinariedade. Para compreendê-la, todavia, faz-se necessário antever aqui a ideia que permeia a lógica clássica. Para a lógica aristotélica, não é possível a ideia de contradição, o que pode ser sintetizado nos seguintes axiomas: (1) “A” é “A” (princípio da identidade); (2) “A” não é “não-A” (princípio da não contradição); e (3) “A” é “A” ou “não-A” (princípio do terceiro excluído). A lógica clássica ou do terceiro excluído não permite que haja um terceiro elemento que seja, ao mesmo tempo, “A” e “não-A”94.

A lógica do terceiro incluído, por outro lado, ambiciona resolver os paradoxos ensejados pela mecânica quântica. Introduz vários valores de verdade no par binário (“A”, “não-A”). Os “níveis de realidade” permitem que haja uma compreensão do axioma “T” é “A” e “não-A”, alargando a concepção clássica. A nova lógica, além de respeitar plenamente o axioma da não-contradição, posto que os elementos (“A”, “não-A” e “T”) coexistem no mesmo momento do tempo, questiona as percepções bidimensionais/dicotômicas aplicadas em casos complexos. Em outras palavras, rompe-se com o pensamento dualista e permite-se que uma terceira perspectiva abarque níveis de realidade, impossíveis de serem captados pela visão clássica95.

A complexidade, no estudo dos sistemas naturais, teria nascido simultaneamente com o aparecimento dos diferentes níveis de realidade e com lógica do terceiro incluído. Como último pressuposto, seria o golpe de misericórdia contra a visão clássica de mundo. Seu nascimento seria a resposta a um universo parcelado disciplinar no qual o indivíduo/universo está cada vez mais pulverizado pelas inúmeras e isoladas disciplinas que o estudam. Assim como se nutre da explosão da pesquisa disciplinar, determina que se acelere a multiplicação de outras disciplinas. Em outras palavras, não é possível que a realidade do mundo esteja restrita à esfera de apenas uma disciplina. Faz-se necessário a complexidade para captar as relações entre os vários níveis de realidade96.

93 VASCONCELLOS, 2012, p. 133. 94 NICOLESCU, 1999, p. 32-33. 95 Ibid., p. 33-34.

Não por acaso, Morin97, evocando o conceito paradigmático de Kuhn98, defende a complexidade como paradigma científico da transdisciplinaridade. O desenvolvimento da ciência não ocorre por simples acúmulo de conhecimento, mas pela transformação de seus princípios organizadores. O paradigma simplificador deve dar lugar ao da complexidade, que permite, ao mesmo tempo, a separação e a associação, sem dar margem a qualquer forma de reducionismo.

97 MORIN, 2005, p. 137. 98 KUHN, 2017, passim.

2 O DIREITO ANIMAL NO BRASIL

Se, de fato, há o fenômeno da fragmentação do conhecimento, observa-se que o direito não está imune à sua influência. O paradigma cartesiano enseja a estruturação de dicotomias: de como o ser humano deveria relacionar-se com as demais espécies e com o próprio meio ambiente.O direito permitiu considerar a espécie humana como a principal e única fonte de valor no mundo, de modo que as outras formas de vida deveriam integrar-se à ideia de instrumentalidade: meios para fins humanos.

Uma disciplina jurídica, que contemple interesses de espécies não-humanas, deve edificar-se sob um novo paradigma: o pós-humanista. Acontece que a ascenção de um novo paradigma tem como consequência a superação do paradigma antropocêntrico e a concepção de uma nova disciplina que busca reexaminar as bases histórico-filosóficas do Direito e ressignificar institutos jurídicos antigos.

A disciplinarização de um novo ramo do direito (o Direito Animal) deve compreender todas essas premissas, apresentando teorias próprias, dimensões que lhe outorguem autonomia, sem que, para isso, torne-se um saber meramente disciplinar. O Direito Animal, desde as suas fundações, estrutura-se no diálogo com diversos campos do conhecimento, de forma que o pensamento complexo e o transdisciplinar tornam-se parte de seu arcabouço teórico.