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Em “The case of animal rights”, Regan256 apresenta quatro noções que, segundo Trajano (2014), foram apreendidas pela ciência jurídica: (a) a visão dos deveres indiretos; (b) a visão contratualista; (c) a visão utilitarista; e (d) a visão de direitos.

A visão dos deveres indiretos destaca uma consideração tão só reflexa aos animais. Isso porque os interesses dos seres humanos e dos animais são entendidos de maneira distinta. Somente os interesses humanos são moral e diretamente considerados. Pelo fato de os animais serem indivíduos cujos interesses são moralmente irrelevantes, não seria possível ter com eles, por isso, deveres diretos. Dessa forma, ainda que haja uma ação física dirigida a um animal, no sentido de feri-lo, a proteção que ele talvez receba está atrelada a um direito

253 CHIBENI, 2014, p. 7.

254 HUME, 2012, p. 199, tradução nossa. 255 Ibid, p. 199.

256 REGAN, Tom. A causa dos direitos dos animais. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, 13, n. 26, jan/abril

2013, p. 16-38. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/8385/6003>. Acesso em: 14 abr. 2018.

adstrito ao ser humano, a exemplo do direito de propriedade. Nas palavras de Regan, se seu vizinho chuta seu cachorro,

Ele fez algo errado. Mas não ao seu cachorro. O erro que foi cometido, foi contra você. Como sabemos, é errado prejudicar as pessoas, e seu vizinho, chutando seu cachorro esta prejudicando você. Então você é o lesado, não seu cachorro. [...] Afinal de contas, é errado danificar a propriedade de outrem, seu vizinho fez algo errado – a você, é claro, não ao seu cachorro. O seu vizinho não prejudicou mais seu cachorro do que teria prejudicado o seu carro, se o para-brisa do mesmo fosse quebrado. Os deveres do seu vizinho envolvendo seu cachorro são deveres indiretamente relacionadas a você257.

Para Regan258, na visão de deveres indiretos, ainda que concomitantemente animais humanos e não-humanos sejam agredidos, apenas a dor dos primeiros terá importância. Igualmente, isso é descabido e pouco racional; afinal, a dor é errada pelo simples fato de estar sendo causada.

Para o filósofo, é questionável o argumento, por exemplo, que justifique tal tratamento, com base na ideia de que somente os membros da espécie humana sentem dor. Como vimos aqui, são diversas a construções teóricas que buscaram justificar tamanhas discrepâncias: desde uma concepção acerca da natureza da alma até uma concepção sobre dignidade, com base na racionalidade259.

Pela filosofia kantiana os sujeitos morais são aqueles que têm um valor inerente. Como tem um valor intrínseco, apenas devem ser tratados como fim, jamais como meio. Os animais, enquanto seres não racionais, não teriam um valor inerente, mas apenas relativo/indireto, condicionado a uma vontade externa; tornam-se meios para a realização da vontade dos seres “racionais”, e sua proteção depende de deveres indiretos de respeito. Não por acaso, ao passo que os seres racionais seriam compreendidos como pessoas, os irracionais, como coisas260.

Regan destaca que, por outro lado, os filósofos da visão contratualista buscaram retificar a perspectiva de que os animais não sentem dor ou de que apenas a dor humana é moralmente relevante. Ainda assim, alguns autores persistiram com a lógica de deveres indiretos, com a diferença de compreenderem a moralidade como conjunto de regras que devem ser obedecidas voluntariamente, tal qual se obedece a um contrato assinado.Os atores que participam dessa moralidade devem entender os termos do contrato. Assim, desde que a parte entenda e obedeça tais termos, é possível ter direitos reconhecidos e protegidos. Da

257 REGAN, 2013, p. 23. 258 Ibid, p. 23.

259 REGAN, 2013, p. 34. 260 KANT, 2007, passim.

mesma forma, os agora beneficiados poderão assegurar e proteger direitos de indivíduos que não possuem ainda a habilidade de entender (incapazes) e, por consequência, de assinar o contrato, a exemplo das crianças261.

Jhon Rawls, nesse sentido, pode ser aqui referenciado. Em sua obra “Uma teoria da justiça”, ele apresenta uma ideia de “contrato” que contêm os princípios consensuais da justiça que regem as instituições sociais. Em sua construção teórica, as pessoas livres e racionais — capazes de um senso de justiça —, em posição de igualdade, definiriam os termos basilares de sua associação: os direitos e deveres básicos de cada um em sociedade262.

O problema, no entanto, contorna a ideia de concordância. Como os animais não- humanos não podem assentir, por não compreenderem as cláusulas contratuais, não possuiriam direitos. Acontece que, assim como os animais, as crianças não têm essa habilidade, e a ausência de assentimento não se tornou obstáculo para que elas tivessem direitos reconhecidos. Dessa forma, Regan263 detaca que, em razão de laços afetivos, de um

interesse sentimental, de maneira reflexa alguns indivíduos humanos e não-humanos veem-se protegidos; mas não todos. Na ausência de interesse sentimental, não se atribui deveres para com os demais animais; por consequência, a dor e a morte que sofrem não seriam moralmente errado. Apesar da crítica, há, na visão contratualista, portanto, um nítido avanço, frente à perspectiva dos deveres indiretos. Afinal, aqueles que assentiram (e tornaram-se contratantes) podem reconher proteção àqueles que não possuem a habilidade de compreender as regras.

Em mesma crítica, inclina-se Singer264. De início, observa-se que, pelo contratualismo, ser um sujeito moral implica reconhecer e assumir deveres. Assim, são excluídos da comunidade aqueles que são incapazes de entender e, com isso, aceitar ações realizadas por dever. Ademais, o comprometemento moral está relacionado a um acordo tácito entre os membros de determinado grupo, de forma que não se considera moralmente qualquer um que pertença a um grupo externo. Dessa forma, se, em primeiro momento, torna possível a exclusão de animais não-humanos e de seres humanos incapazes de agir em reciprocidade, em segundo momento, pode até justicar o tráfico de escravos; afinal, não faziam parte da comunidade moral dos traficantes os africanos escravizados.

Uma outra abordagem é a denominada utilitarista. Cabe aqui, por conta da importância da obra de Peter Singer — e sua influência entre os teóricos jusanimalistas —, um maior

261 REGAN, 2013, p. 34.

262 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000, passim. 263 REGAN, 2013, p. 34.

cuidado e minúncia. Muito se pode dizer sobre o perspectiva utilitarista e de suas inúmeras vertentes, manejadas por outros tantos autores. Nos últimos dois séculos, sua influência ultrapassou a filosofia e contemplou inclusive a política e a economia. Talvez, para um primeiro passo em direção às suas ideias, seja interessante registrar, como bem afirmou Mulgan265, que os autores utilitaristas sempre contornaram ideias sobre felicidade, bem-estar, utilidade ou qualquer coisa que faça a vida valer a pena.

Bentham266, como bem trabalhamos anteriormente, edificou o princípio da utilidade ou da máxima felicidade. O princípio utilitarista permite que uma determinada ação seja aprovada ou não segundo a tendência de aumentar ou diminuir a felicidade de alguém cujo interesse está em jogo. Como as pessoas estão regidas pelo prazer e pela dor, esses dois elementos são a base da moralidade. Tanto é assim que o legislador deveria, em seu labor, criar leis que buscassem maximizar a felicidade dos governados. Sua ideia de moralidade não ficou restrito à esfera humana e, contrariando Kant, que se sustentava na racionalidade, compreendeu que os animais, que também são regidos por esses elementos, deveriam igualmente ser considerados.

O utilitarismo de Bentham pode ser compreendido como um utilitarismo clássico, que, como os demais, encontram-se no conjunto maior de teorias consequencialistas. Segundo Singer267, o consequencialismo difere-se da deontologia (ou da ética como um sistema de regras) por partir de objetivos. Dessa forma, avalia-se ações na medida em que elas fovorecem tais objetivos. Como foi visto, no utilitarismo clássico, uma ação é um bem em razão de ela produzir, em relação a todos envolvidos, um incremento igual ou maior de felicidade, em comparação a uma ação alternativa. As consequências de uma determinada ação variam conforme as circunstâncias. Uma mentira, por isso, não significa necessariamente um mal, a depender de suas consequências.

O utilitarismo de Singer difere-se, no entanto, da perspctiva clássica. Não almeja ele, através da dicotomização entre o prazer e a dor, a busca, para um maior número de pessoas, da maximização da felidade e da minimização do sofrimento. Interessa-lhe um utilitarismo — o qual nomeou de “preferencial” —, que ultrapassa as questões sobre o sofrimento, contemplando posicionamentos que ensejam consequências melhores a todos268.

265 MULGAN, Tim. O utilitarismo. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 10. 266 BENTHAM, 1907, passim.

267 SINGER, 1998, p. 9. 268 Ibid., p. 9.

Para Regan269, um utilitarista contempla dois princípios morais: (a) o da igualdade, na qual os interesses de todos são considerados; e (b) o da utilidade, por meio do qual busca compreender que ato fomentará um melhor equilíbrio entre frustração e satisfação a todos afetados pelo resultado.

Para Singer270, em “Ética prática”, o princípio da igual consideração de interesses é compreendida como um princípio mínimo de igualdade. Para melhor explicar seu raciocínio, ele evoca o exemplo do uso de morfina para dois pacientes que se encontram sofrendo dor em graus distintos de intensidade. Nesse caso, registra que ambos os personagens têm interesses idênticos: o interesse no alívio da dor. Devido a um terremoto, porém, enquanto um teve a perna esmagada, o outro tem apenas dores leves. Como só restam duas doses de mofina, o dilema é devido à distribuição do medicamento. Pelo perspectiva de um tratamento igualitário, cada vítima seria beneficiada com tão-somente uma dose. Inobstante isso, uma dose seria insuficiente para aliviar a dor do paciente mais comprometido. A igualdade na consideração de interesses, segundo o filósofo, proporcionaria uma situação de desigualdade ao conceder as duas doses de morfina ao indivíduo com maior sofrimento. Ou seja, apesar de tal princípio proporcionar um tratamento desigual, o tratamento desigual representaria uma tentativa de obter um resultado mais igualitário.

A importância da construção do princípio singeriano é que os interesses sopesados não estão adstritos ao membros da espécie humana. A influência de Bentham foi determinante para que o filósofo contrariasse uma persctiva moral meramente antropocêntrica271. O antropocentrismo moral, de acordo com Naconecy272, compreende a ética como pertencente à esfera dos homo sapiens, de forma que não é desejável, nem possível, a inclusão, na comunidade moral, de criaturas não-humanas.

Não pode existir justificação moral que desconsidere o sofrimento de um ser, em razão de ele pertencer a uma determinada espécie ou raça. A igual consideração de interesses deve contemplar o sofrimento de qualquer ser. Qualquer outro critério para a consideração de interesses, como inteligência, racionalidade, raça ou sexo, mostrar-se-ia arbitrário273. O utilitarismo de Singer, por esse motivo, com base em seu princípio, pode ser arguida da seguinte maneira: (1) a capcidade de sofrer (senciência) é pré-requisito para que haja a

269 REGAN, 2013, p. 28. 270 SINGER, 1998, p. 21. 271 Ibid., p. 43.

272 NACONECY, Carlos. Ética e animais: um guia de argumentação filosófica. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014, p.

132-134.

consideração dos interesses; (2) deve-se, portanto, considerar os interesses dos seres sencientes, quer de animais humanos, quer de não-humanos.

A visão utilitarista, no entanto, não é bem-quista para Regan274. Isso porque, no utilitarismo, os indivíduos não têm valores ou impotância inerentes a eles. O utilitarista, em verdade, valoriza a satisfação de um determinado interesse individual, e não o indivíduo no qual o interesse nasceu. O filósofo entende que a busca pelas melhores consequências pode trazer sérios problemas, em virtude de o cálculo entre sastifações e frustações nem sempre apresentar as melhores consequências para cada indivíduo. A busca por melhores consequências pode justificar, inclusive, meios questionáveis.

Ademais, a busca por melhores consequência imprescinde do cálculo dos danos e dos benefícios de nossas ações; tudo isso para alcançar a máxima satisfação do maior número de indivíduos envolvidos. Tal cálculo pode justificar a instrumentalização dos animais, caso o benefício aos seres humanos ultrapasse o custo aos animais275.

Francione276 contesta igualmente a visão utilitarista. Para ele, apesar de haver

consideração aos interesses dos não-humanos, a importância moral dos animais não é suficiente para retirá-los da condição de propriedade. Se não é possível o reconhecimento da escravidão humana como moralmente permissível, em razão de ela privar os indivíduos escravizados da igual consideração de interesses, da mesma forma não seria em ralação aos animais. Enquanto propriedade, os interesses dos animais nunca serão julgados de forma semelhante aos interesses de seus proprietários.

Não por acaso, Regan277 apresenta o que ele chamou de visão de direitos. Nessa perspctiva, o filósofo refuta as teorias que consideram apenas os seres humanos como dignos de status moral; para tanto, defende que todos os indivíduos têm um valor inerente (não seriam meros receptáculos de interesses) por serem “sujeitos-de-uma-vida”.

Dentro da teoria reganiana, é-nos apresentatado a ideia de sujeito-de-uma-vida, que se relaciona com todo ser que exeperiencia uma vida e que tem uma vivência individual acerca do seu próprio bem-estar. Todo aquele assim considerado, tem um direito: direito de vê-se respeitada, além da vida, a integridade física e a liberdade; ou seja, de não ser um meio para um fim. O valor inerente não depende de sua utilidade ou de sua qualidade, de forma que sua visão de direitos não permite que, por bons resultados, faça-se uso de meios que violem

274 REGAN, 2013, p. 29-30. 275 NACONECY, 2014, p. 155. 276 FRANCIONE, 2013, p. 36. 277 REGAN, 2013, p. 33.

direitos individuais. Por consequência, não é possível que, em nome do bem social, sancione- se qualquer tratamento desrespeitoso278.

Se diversas são as bases filosóficas que sustentam o debate acerca da possibilidade de os animais pertencerem ou não à comunidade moral dos seres humanos, a mesma realidade acadêmica contorna a Ciência do Direito. Sua base humanista/antropocêntrica, como se destacou, vê-se hoje sob constante cerco e investidas questionadoras de seus alicerces epistemológicos.

Não se entranha, em razão disso, que sejam observados diversas proposições que cotemplem a proteção aos animais não-humanos279. Elas se sustentam, em parte, nos autores

trabalhados aqui e em tópicos anteriores: a benestarista e a abolicionista. Inobstante as duas representarem um grande avanço na proteção animal, elas, em verdade, revelam bases filosóficas e paradigmáticas distintas.

O benestarismo (animal walfare) destaca-se por ser a abordagem que defende um tratamento “humanitário” aos animais, ainda que permita que indivíduos não-humanos continuem a existir enquanto meios para fins antrópicos. Por esse motivo, atribui-se aos benestaristas a busca por uma mera regulação acerca das práticas de exploração animal280. Nesse sentido, destaca-se Singer281 e seu utilirismo aliado ao princípio da igual consideração de interesses.

Na esfera ecofilosófica, o benestarismo enquadra-se na perspectiva de um antropocentrismo mitigado. Benjamin282 detaca que, em vista da repercussão antrópica sobre o meio ambiiente e, por conseguinte, da escassez de “recursos naturais”, houve o abrandamento da visão tradicional que não atribuía, salvo aos seres humanos, qualquer cosideração moral ao meio ambiente. Da reforma, tornou-se possível tanto a preocupação por uma ética intergeracional quanto um sentimento de bondade aos animais, principalmente aos considerados domésticos.

278 REGAN, 2013, p. 34.

279 Le Bot apresenta “duas técnicas” jurídicas defendidas. A primeira delas é a de concessão de direitos fundamentais a

membros de outras espécies, com fim de introduzi-los na esfera de proteção moral e jurídica dos humanos. Uma segunda, proposta pelo próprio autor, refere-se a uma mera regulação jurídica de proteção animal, sem que tais direitos tomem contornos de normas fundamentais. Cf. LE BOT, Olivier. Direitos Fundamentais para os animais:uma ideia absurda? Revista

Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 11, n. 7, p. 37-56, jul/dez, 2012, passim. Disponível em:

<https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/8415>. Acesso em: 17 mai. 2018.

280 SALT, H. “Benestaristas e abolicionistas”. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 6, n. 5, p. 33-36, Jan/jun

2010, passim. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/11070/7985>. Acesso em: 26 abr. 2018.

281 SINGER, 1998, p. 101.

282 BENJANMIN, Antonio Herman. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso. Revista do Programa de

Em outras palavras, há a inclusão dos animais não-humanos no círculo da moralidade, por conta da obrigação moral de respeito à natureza. Apesar disso, tal consideração não significa necessariamente que os animais ou a natureza sejam, de fato, titulares de direitos. O abrandamento do antropocentismo apenas permitiu a a existência de deveres indiretos e, por isso, de limites quanto à forma de relacionar-mos com o meio ambiente283.

A abordagem abolicionista, por outro lado, refuta qualquer perspectiva que retira dos animais um valor inerente. Assim como os seres humanos, os animais não-humanos são fins em si mesmos. A consequência de tal visão é a abolição de qualquer perspectiva que atribui aos “sujeitos-de-uma-vida” um valor instrumental. Como ficou evidente, Regan284 destaca-se

como expoente abolicionista, ampliando a concepção moral kantiana para além da esfera antrópica.

O abolicionismo animal encontra-se, por isso, dentro da ecofilosofia não- atropocêntrica, numa corrente animalista que permite compreender os animais como sujeitos de direito285. A intrumentalização dos animais corresponderia a uma condição análoga a da

escravidão, razão pela qual é moral e juridicamente condenável286.

Não por acaso, a absorção da abordagem abolicionista pelo Direito e, por conseguinte, dos teóricos que questionam o paradigma da civilização moderna — e sua rígida divisão homem/natureza, homem/mulher etc —, sustenta hoje perspectivas jusanimalistas que compreendem os animais como possuidores de direitos fundamentais semelhantes aos dos seres humanos, como o direito à vida, à liberdade e à integridade física e psíquica287.