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A transferência entre pesquisador e colaboradores:

No documento Aquestãosocialdacuraemcultosumbandistas (páginas 64-67)

2.6 Análise dos dados:

2.6.1 A transferência entre pesquisador e colaboradores:

O fundamento para a “escuta” psicanalítica é a interação entre analista e analisando que em psicanálise é tratada por um conceito chave: a transferência. Para explanar a forma como desempenhei esta tal “escuta” no campo é necessário fazer uma breve exposição sobre minha as relações transferenciais que se sucederam ente pesquisador e colaboradores.

A “transferência” diz respeito ao processo inconsciente que se forma entre psicanalista e analisando e sobre o qual o primeiro desenvolve sua intervenção.

A análise da “transferência” mostra como existem múltiplos sentidos na comunicação do analisando, que constituem dizeres que vão além da fala, constituindo um campo semântico de sentidos e significados que denunciam uma equivocidade da mensagem do analisando. A princípio o analisando pode estar se referindo a um determinado conteúdo, aquele da sua fala explícita, mas existem sentidos implícitos que se mostram na associação dos dizeres, como formas de comunicação que vão além do aparente.

Em meu percurso dentro do terreiro pude perceber esta falta de univocidade do discurso na relação que estabeleci com os colaboradores e por diversas formas de interação

como, por exemplo, questionamentos, solicitações, conversas, pude observar e experimentar diversas situações transferenciais das quais enunciaram-se sentidos diversos sobre o terreiro, a umbanda, e sobre as práticas de cura. Em meu movimento pelo terreiro, em lugares que ocupei e pelas respostas que obtive, observei regras, juízos e considerações que revelam aspectos da religião e do próprio terreiro.

Um ponto a ser destacado se refere aos contatos diretos que tive com os colaboradores. A forma como fui inserido no terreiro e como se desenvolveu minha relação com os colaboradores revelou-me alguns aspectos da estruturação dos valores do terreiro e principalmente sobre como o indivíduo se insere na comunidade e a importância que as práticas de cura exercem para esta inserção. Em uma conversa com Seu Aguinaldo, ele revelou que não inicialmente não “ia com a minha cara” e depois percebeu que eu precisava de ajuda. Após ser submetido às práticas de cura e pelo contato com os colaboradores recebi de Seu Aguinaldo outras referências a meu respeito. Ele me caracterizou como alguém humilde e interessado em aprender. Esta passagem ilustra como a relação entre pesquisador e colaboradores é permeada de juízos, que podem ser modificados ao longo do contato.

Esta fala também mostrou um sentido para as práticas de cura sobre as quais eu estava interessado; pelo estado de saúde e doença que o terreiro vai dirigir seu olhar para o indivíduo. Antes eu era um estranho que gerava desconfiança, depois fui reconhecido como alguém realmente interessado no terreiro.

Uma outra situação, ocorrida no dia 15/05/2004 foi um marco simbólico que caracterizou meu ingresso no terreiro. Neste dia fui convidado por Meire a comparecer no terreiro para conversar com uma “guia”, a baiana Maria do Cerrado. Era uma terça-feira a noite e estavam presentes eu, Meire, Seu Aguinaldo, Dona Tonica e Marluí.

Marluí incorporou a baiana e esta explicou que eu fora chamado por dois motivos. O primeiro era para informar-me que naquele momento, após um ano da data em que conheci os

colaboradores, eu havia “subido um degrau” no meu aprendizado. Disse que até então eu estava sendo avaliado pelos “guias”, mas a partir daquele momento eu teria uma tarefa: aconselhou-me a escolher um santo (orixá) para me tornar devoto, para quem eu solicitaria auxílio espiritual. Explicou que a escolha deste santo ficaria sob meu arbítrio, mas deveria escolher um santo cujas características poderiam auxiliar-me a realizar as tarefas que estava desempenhando naquele momento. Além disso, a baiana fez uma solicitação; que eu prestasse um atendimento psicológico a um indivíduo participante do terreiro. Ela afirmou que este indivíduo necessitava deste tipo de atendimento e eu seria apto a realizá-lo uma vez que conhecia a umbanda e assim teria compreensão para lidar com o mesmo.

Esta situação de solicitação e aconselhamento espiritual ficou marcado na pesquisa como um momento de minha entrada efetiva no universo do terreiro; eu estava ao mesmo tempo recebendo um tipo de iniciação, mas também sendo reconhecido pela minha profissão. Eu iria desempenhar um trabalho para a comunidade. Receberia as informações que necessitava para meus estudos, ao mesmo tempo em que minha condição de psicólogo se tornou uma identidade social. Somando-se este trabalho de atendimento psicológico, exerci também outra função; a de documentar os trabalhos. Concedi aos colaboradores cópias das filmagens e fotografias que realizei no terreiro, exercendo assim a documentação do culto. Estes forma os lugares que ocupei na relação com os colaboradores. Esta interação mostrou- me como estar no terreiro é uma situação em que o pesquisador observa e também é observado e principalmente, a realização da pesquisa dependeu desta interação, pois a partir desta minha “iniciação” o trabalho de coleta de dados adquiriu maior fluidez. Indicaram-me os consulentes para as entrevistas e concederam-se em muitos casos informações sobre as práticas de cura.

De um modo geral, para fazer a pesquisa precisei ocupar um lugar justo, entre meus objetivos e a forma como observava o terreiro a partir de meus referenciais, mas também

precisei ocupar o lugar que o terreiro me impôs. Foi uma “justa medida” entre mim e o campo e desse lugar desvelaram-se aspectos da cosmologia umbandista e da ética do terreiro. Em suma, no terreiro do Pai Joaquim do Congo o indivíduo ingressa na comunidade pelos seus atos. Assim se desenvolve a linguagem do terreiro.

No documento Aquestãosocialdacuraemcultosumbandistas (páginas 64-67)