2.1 A Era Vargas: de Roosevelt a Eisenhower
2.1.1 A Transição Dutra e Truman
Com a morte de Roosevelt, a política externa norte-americana passou por uma alteração, assumindo uma posição de profundo internacionalismo, o que representou para os Estados Unidos a necessidade de assumir por completo os custos pela manutenção da liderança global.
Ao final da Segunda Guerra Mundial a situação hegemônica dos Estados Unidos, (...) permitiu-lhes estruturar uma nova ordem internacional quase inteiramente a seu molde, a Pax Americana. (...) Os Estados Unidos detinham vantagens talvez nunca obtidas por outra potência. (VIZENTINI, 2004: 18)
Com o término da Segunda Guerra Mundial, a predisposição norte-americana para incentivar a América Latina foi relativamente abandonada, em razão da prioridade conferida à reconstrução da Europa e à política da contenção89. Essa prioridade naturalmente se justificava, uma vez que aquela região era considerada sensível à possibilidade de um avanço soviético, além de representar o principal mercado demandante de produtos norte-americanos.
Até 1946, o então presidente Truman90 seguiu a política externa impressa por
Roosevelt, de uma economia mundial mais integrada pelo fluxo de bens e capital. Mas, ainda no início daquele mesmo ano começou a enfrentar duas linhas de oposição, uma interna e outra externa.
89 política norte-americana idealizada por George Kennan (1904-2005) -– visando conter o avanço
soviético pelo mundo. Conhecida como Política da Guerra Fria em razão do equilíbrio de poder entre os Estados Unidos e a União Soviética.
A oposição interna vinha do Congresso norte-americano, que defendia um posicionamento não internacionalista e mais introspectivo, priorizando as necessidades internas e sendo capaz de responder às mazelas do pós-Segunda Guerra Mundial, como o aumento no nível de desemprego. A oposição externa vinha dos países menos desenvolvidos, entre eles o Brasil, que receavam abrir suas economias ao comércio mundial, em função da dificuldade em absorver concorrência externa, pela baixa competitividade da maioria de seus produtos e a alta demanda reprimida, levando a um risco de déficits indesejáveis.
A adoção do Plano Marshall91 representou a integração destas duas vertentes e o fortalecimento da pax americana, porque ao mesmo tempo em que prestava ajuda externa aos países necessitados, altamente demandantes de produtos importados, possibilitava o aumento da produção norte-americana, além de colocar oficialmente os Estados Unidos no papel de liderança mundial. (MALAN, In HOLLANDA, 1977: 56-57)
Tanto assim, que no discurso de posse, que marcou o início do mandato de Truman, foram apresentados os quatro pontos que norteariam a política externa norte-americana a partir daquele momento: (1) apoio às Nações Unidas; (2) recuperação da economia mundial; (3) fortalecimento das nações “amantes da liberdade” e (4) disponibilidade do conhecimento técnico norte-americano para as regiões mais pobres do mundo. (MALAN In HOLLANDA, 1977: 69)
91 Parte integrante da denominada “Doutrina Truman", o Plano Marshall – elaborado pelo General
George Marshall, então Secretário de Estado dos Estados Unidos – constituiu-se em uma política de auxílio financeiro, com duplo objetivo: conter o comunismo através de pesados investimentos em armamentos e artefatos nucleares; e ao mesmo tempo auxiliar economicamente os países europeus assolados pela guerra, permitindo-lhes a reconstrução nacional. A distribuição dos fundos foi realizada por meio da Organização Européia de Cooperação Econômica (OECE), que entre 1948 e 1952 forneceu US$ 14 bilhões para a reconstrução da Europa.
Com essa posição, os Estados Unidos assumiram definitivamente a liderança internacional, o que significa incluir os custos políticos e financeiros em escala mundial, além de ideologicamente lançar a política da contenção ao avanço comunista.
(...) a Doutrina Truman materializava politicamente a divisão do mundo preconizada um ano antes por Churchill. (...) enquanto a esquerda começa a ser perseguida (...) meses depois, era a vez dos conservadores, que através de suas políticas protecionistas e nacionalistas impediam o livre-comércio e o avanço sistemático da economia americana sobre seus países. (VIZENTINI, 2004: 20)
O anúncio do Plano Marshall, que objetivou a reconstrução da Europa e, portanto, a recuperação do mercado europeu para os Estados Unidos, terminou por relegar a América Latina a um plano secundário. Opção que repetia as linhas gerais da política externa adotada no passado pelos Estados Unidos e que havia sido reconhecida pelo país como um erro estratégico.
A repetição de tal política reacendeu o sentimento de abandono e assimetria entre a América Latina e, em especial, o Brasil e os Estados Unidos. Instado a oferecer o mesmo tipo de auxílio destinado à Europa à América Latina, Marshall teria respondido:
O desenvolvimento latino-americano requer um tipo de colaboração na qual cidadãos e grupos privados teriam um papel muito mais importante a desempenhar que no caso do programa destinado a ajudar a reconstrução dos países europeus. (CONELL- SMITH apud MALAN, In HOLLANDA, 1977: : 67).
Mais uma vez, ficava evidente que, para os Estados Unidos, as prioridades econômicas neste momento estavam na reconstrução da Europa e que o interesse privilegiado com o Brasil, embora permanecesse, era restrito ao reconhecimento da lealdade e da capacidade de liderança regional.
Como destaca Atkins (apud PECEQUILO, 2003: 215),
A idéia de hemisfério ocidental, de um “relacionamento especial” entre as Américas, perdeu muito de seu significado depois da Segunda Guerra Mundial. (...) A idéia permaneceu, entretanto, na retórica dos Estados Unidos com relação à sua política latino- americana, mas na realidade nenhuma relação interamericana especial existiu seja no sentido de exclusividade ou prioridade.
Havia para os norte-americanos uma coerência na promoção da internacionalização da economia mundial, com o objetivo de abolir as barreiras alfandegárias e as restrições de qualquer natureza ao livre fluxo comercial e financeiro. Uma prioridade e defesa de interesses em dimensão global e não regional. (VIZENTINI, 2004: 22)
Para o Brasil, o compromisso de lealdade e o relacionamento privilegiado estavam vinculados diretamente a um proveito econômico. O projeto de desenvolvimento da nação e mesmo a afirmação da liderança regional decorriam do auxílio econômico ao qual o país se julgava merecedor.
Reafirmando este pensamento, durante o governo Dutra92, a política externa de aproximação com os Estados Unidos foi mantida pelo Ministro das Relações Exteriores Neves da Fontoura93, que explicitou a idéia de alinhamento, ao romper em 1947 as relações diplomáticas com a União Soviética e com a China – ambos países de orientação comunista.
Mas, o distanciamento dos Estados Unidos em relação à América Latina, com o passar do tempo, foi ganhando contornos mais densos, a ponto de se transformar em um profundo sentimento antiamericanista. Conforme relembram Almeida e Barbosa (2006: 7), no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, houve uma completa “americanização do Brasil”, principalmente no sentido cultural, que em seguida deu lugar à afirmação de um nacionalismo extremado, com viés antiamericanista.
Segundo Viola (In ALMEIDA e BARBOSA, 2006: 75), a questão do antiamericanismo no Brasil pode ser atribuída a quatro fatores principais:
Em primeiro lugar, o catolicismo, com sua atávica condenação do capitalismo (...). Em segundo lugar, a esquerda socialista e comunista, cuja razão de ser histórica foi a superação do capitalismo. Em terceiro lugar, o nacionalismo das elites estatais (particularmente diplomatas e militares), que aspiram ser tratadas como iguais pelas grandes potências e se ressentem por não ser tratadas como grandes pelos Estados Unidos. Em quarto lugar, os empresários subsidiados pelo Estado e protegidos da competição internacional, que detestam o livre mercado e percebem o modelo do capitalismo americano como ameaçador de seus privilégios.
O sentimento nacionalista na América Latina foi persistente e crescente durante longo período da história regional, acompanhando e refletindo o crescimento e a transformação dos setores produtivos e da sociedade. (VIZENTINI, 2004: 12-13)
92 Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), militar de carreira formou-se na Escola de Estado-Maior. 93 João Neves da Fontoura (1887-1963), advogado e jornalista, foi Embaixador do Brasil em Lisboa
Do lado dos Estados Unidos, a posição eqüidistante manteve-se inalterada até final dos anos cinqüenta, intensificando uma relação de desgaste entre o país e toda a América do Sul.
Os problemas de relacionamento entre o Brasil e os Estados Unidos foram explicitados por John Abbink94 ao retratar a enorme dificuldade que encontrou no
Brasil, notadamente junto às elites dirigentes, ao procurar difundir os benefícios da doutrina liberal ao mercado e à sociedade. Para Abbink, os Estados Unidos deveriam urgentemente mudar seu relacionamento com a região, revertendo o forte nacionalismo e, portanto, a tendência isolacionista que as elites dirigentes latino-americanas procuravam consolidar.
Em telegrama ao Secretário de Estado dos Estados Unidos, Abbink escreveu:
(...) espero que a próxima mensagem presidencial ao Congresso contenha uma referência que indique que nós não esquecemos inteiramente os problemas da América Latina. Isto já será o bastante no atual estado das coisas. (In Foreign Relations of the
United States, 1948 vol. IX p. 373 e MALAN, 1977: 68)
Somadas à questão do distanciamento estavam a dependência econômica e a desigualdade na América Latina, que contribuíram para a propagação do isolacionismo, à medida que direcionavam as políticas públicas em direção às propostas elencadas pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL)95, que incluíam a redução das importações por meio de um modelo substitutivo que isolava o país de uma maior participação internacional, redirecionando a produção para um prioritário mercado interno.
94 Representante dos governo dos Estados Unidos, que esteve no Brasil com a missão de
promover os ideais liberais.
95 Criada no âmbito da Organização das Nações Unidas, teve papel singular no grau de
relacionamento da América Latina com os Estados Unidos e também na alteração da pauta produtiva da América Latina.
Nesse sentido, os pesquisadores cepalinos alertavam para o perigo de uma dependência e marginalização crônica da América Latina, caso os padrões de troca internacional não fossem modificados.
Em síntese, o pensamento explicitado por Prebisch96 dizia que a situação de
subdesenvolvimento da América Latina era perpetuada em razão de uma troca comercial desigual com as nações mais desenvolvidas, ou seja, enquanto a América Latina exportava produtos de baixo valor agregado – basicamente produtos primários –, realizando um esforço para geração de excedentes exportáveis, com vistas a se capitalizar, via todo seu esforço ser consumido em uma importação, originária dos países industrializados, que era de alto valor agregado.
Mantido esse padrão de trocas comerciais, a relação de dependência seria perpetuada, sendo fundamental que as nações latino-americanas desenvolvessem o setor industrial, capacitando os países na produção de maior valor agregado e de capital mais intensivo, substituindo assim as importações no abastecimento do mercado interno, para, posteriormente, alcançar um novo padrão de comércio internacional com a exportação de manufaturas.
De fato, a maioria dos países latino-americanos seguiram esse modelo de industrialização, com base na ameaça de que a demanda de produtos primários no mercado externo não iria se sustentar no longo prazo. No caso brasileiro, como já dissemos, tal visão motivou o início da segunda fase do processo industrial, com a expansão das indústrias de base e automobilística.
96 Raul Prebisch (1901-1986) foi um dos fundadores da Cepal, tendo impresso importante
De qualquer maneira, a crise de expectativas da América Latina em relação ao relacionamento com os Estados Unidos continuou a se deteriorar, até que o Congresso Americano aprovou o Act of International Development, um projeto de Truman que correspondia exatamente ao quarto ponto de seu discurso de posse – disponibilidade de oferecer conhecimento técnico norte-americano para as regiões mais pobres do mundo –, permitindo, assim, o restabelecimento da formação de comissões econômicas mistas, a exemplo do que havia sido feito com as Missões Taub e Cooke.
Vários países latino-americanos97 requisitaram a instalação dessas comissões, entre eles o Brasil, o que resultou na criação da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, em 194898, chefiada por Abbink e Bulhões, cuja meta era realizar um levantamento das causas que retardavam o desenvolvimento econômico brasileiro, propondo, na seqüência, medidas específicas para sua superação. Dentre estas medidas estavam desde sugestões sobre áreas prioritárias para investimento, definição do papel do Estado na economia até o tratamento ao capital estrangeiro. Mas, não estava explícito o compromisso em prestar ajuda financeira direta, como havia ocorrido no passado com as missões bilaterais anteriores.
Conforme destaca Sette (In ALBUQUERQUE, 1996: 242), a proposta da Comissão não era fazer nenhum tipo de aporte financeiro, mas tão -somente diagnosticar as “áreas consideradas merecedoras de atenção prioritária para tornar possível o progresso brasileiro”.
97 Paraguai, Panamá, Nicarágua, Costa Rica, Chile e Peru. Survey of United States International Finance, 1950 Princeton University : 199 apud Malan, 1977: 69
A posição oficial dos Estados Unidos, expressa nos relatórios Foreign Relations of the United States, deixava claro que o Brasil deveria concentrar esforços para captar recursos domesticamente e, quando estes não fossem suficientes, recorrer ao sistema multilateral, como o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento – BIRD99, criado exatamente com a finalidade de financiar
programas desta natureza. Uma clara demonstração de que não haveria auxílio direto dos Estados Unidos ao projeto de desenvolvimento do Brasil.
Sobre o sistema multilateral criado no pós-Segunda Guerra Mundial, que envolve o BIRD, falaremos mais adiante, ainda neste capítulo.
Com relação ao levantamento dos entraves ao desenvolvimento, o relatório final da Comissão apontou cinco fatores principais:
1. Inexistência de um mercado nacional unificado; 2. Dependência do mercado externo;
3. Elevada taxa de crescimento populacional; 4. Carência de suprimentos internos de energia; 5. Baixa produtividade geral;
6. Diferenças de produtividade e salários entre várias regiões
e entre agricultura e indústria.
(MALAN et al, 1977: 48 – grifos nossos)
E concluiu, assegurando que se tratava de fatores característicos e sistêmicos da economia brasileira, pois já haviam sido identificados nas missões anteriores e continuavam existindo em grau intensificado.
99 Criado na mesma época que outros Organismos Multilaterais como o Fundo Monetário
Internacional (FMI) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), todos vinculados ao Sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), cada um com uma finalidade específica na concessão de empréstimos.
As medidas sugeridas para a reversão do quadro delineado consistiam em restabelecer a estabilidade dos preços internos, com um orçamento equilibrado e o controle sobre o crédito, além da necessária promoção da poupança interna, por meio de medidas fiscais, monetárias e cambiais. Ênfase também foi dada à necessidade de aumento das exportações e eventualmente à redução das importações, com vistas a aumentar as reservas internacionais, além da supressão dos mecanismos contrários a um maior afluxo de capital estrangeiro, tanto direto quanto indireto.
Sobre esta última recomendação, Bulhões teria comentado ser uma “(...) tendência da economia dos Estados Unidos contrabalançar a falta de importação de mercadorias com a exportação de capital". (apud MALAN et al, 1977: 58)
Para a Comissão Mista o problema mais fundamental consistiria na relutância em adotar uma política econômica firmemente calcada em uma avaliação objetiva daquilo que seria o mais adequado para o interesse nacional de longo prazo. (MALAN et al, 1977: 67)
De qualquer maneira, podemos afirmar que grande parte desse diagnóstico e propostas foram incorporados na elaboração do plano nacional de governo, sintetizados no Plano SALTE100, que priorizou investimentos nas áreas de saúde, alimentação, transporte e energia.
100 Iniciais de saúde, alimentação, transporte e energia – áreas priorizadas no plano de governo do
general Eurico Gaspar Dutra (1883-1974) ocupou a presidência da República do Brasil de 1946 até 1951.
É fato que o grau de comprometimento dos Estados Unidos com a questão do desenvolvimento da América Latina e, mais especificamente, em relação ao Brasil sofreu alteração quando comparados os enfoques das primeiras missões norte- americanas101, fundamentalmente no que diz respeito ao grau de
comprometimento efetivo. Enquanto se esperava pelo financiamento externo, o Brasil liberalizava a participação do capital externo na economia, sem privilégio de origem, e procurava direcionar o capital nacional para os setores chaves da economia.
Ao mesmo tempo, internamente crescia o discurso nacionalista e antiindustrialista de Vargas, novamente candidato à presidência, e que denunciava a “entrega” da indústria nacional ao capital estrangeiro. O denominado “entreguismo” a que Vargas se referia, estava, segundo seu entendimento, na falta de lógica e no alto risco que representava a adoção de tratamento afável e diferenciado ao capital estrangeiro, em detrimento daquele dispensado ao capital nacional.
O discurso de Vargas indicava uma nítida postura de embate com os Estados Unidos, o que mais uma vez confirmava a emergência em se retomar o diálogo, colocando os Estados Unidos em uma posição externa mais atuante na região. A nova aproximação não foi prioritariamente via aporte oficial de recursos, embora tenha havido auxílio financeiro do Eximbank102 norte-americano e do Banco Mundial, mas no sentido de instituir um ambiente institucional e econômico mais propício aos investimentos tanto público quanto privado, em caráter complementar e não antagônico, como parecia acontecer.
101 Ver Apêndice C – comparativamente as primeiras Missões – Taub e Cooke – com as duas
últimas – Abbink e Mista –.
Essa recomendação, também explicitada pela Comissão Mista, sugeria ainda que as relações bilaterais entre os Estados Unidos e o Brasil passassem a ser, a partir daquele momento, prioritariamente entre empresas e não mais entre governos. (MALAN et al, 1977: 29-34)
Efetivamente, uma maior atenção dos Estados Unidos com a América Latina só viria a ocorrer em 1950, quando ficou evidente o estabelecimento de um novo quadro externo, criado pela eminência de problemas mais sérios com a Coréia103
e a potencial vitória de Vargas no Brasil.