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2.1 A Era Vargas: de Roosevelt a Eisenhower

2.1.2 A Volta de Vargas

O primeiro ano da reeleita administração Vargas não apresentou um imediato conflito com os Estados Unidos, embora explicitasse um forte apelo socialista e um discurso dúbio. Vargas mantinha uma retórica populista e nacionalista, que preocupava a Casa Branca, mas, ao mesmo tempo, nomeou novamente Neves da Fontoura para ocupar o comando das relações exteriores, mantendo assim a mesma linha de atuação do antecessor Raul Fernandes, apaziguando os ânimos junto aos Estados Unidos.

103 A Guerra da Coréia teve início em junho de 1950 e marcou a divisão da região em dois países:

a Coréia do Norte – apoiada pela República Popular da China e a ex-União Soviética; e a Coréia do Sul – apoiada pelos aliados Estados Unidos e Reino Unido. Em 1953 foi assinado um Acordo de Paz em Panmunjon, que assegurou o cessar-fogo, mas não foi capaz de unificar a Península, que se mantém dividida.

Neves da Fontoura manteve uma política de relativo alinhamento aos Estados Unidos, defendendo inclusive o envolvimento de tropas brasileiras na Guerra da Coréia. Entretanto, este posicionamento não se sustentou por muito tempo, porque as forças nacionalistas e populistas que haviam colocado Vargas no poder cobravam uma posição mais clara do governo. Vargas adotou, então, um estilo mais contundente no exercício de sua política de barganha internacional em favor da modernização e do desenvolvimento econômico do País.

Apoiado no quarto ponto do Programa Truman, o governo brasileiro reivindicava financiamentos norte-americanos para o desenvolvimento de um programa de infra-estrutura no país. Afinal, éramos aliados e necessitávamos de capital. O auxílio técnico e financeiro teve início em julho de 1951, englobando um total de quarenta e um projetos de infra-estrutura – baseados ainda nos estudos da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, como evidenciado na Tabela 1 –, sendo mais da metade deles vinculados à área de transportes, considerada o principal gargalo para um melhor desempenho comercial do país, tanto nas exportações quanto nas importações.

Outro setor que mereceu atenção foi o de bens de capital, afinal o relatório da Comissão Mista havia chamado atenção para a importância em se desenvolver um setor de bens de capital mais pujante, uma vez que mais da metade da oferta destes bens era satisfeita por importações. Ou seja, mais uma vez se evidencia o interesse dos Estados Unidos em que o Brasil alcançasse um salto produtivo e, portanto, de desenvolvimento.

Fruto dessas observações, os dados da Tabela 1 permitem verificarmos que as taxas de investimento do governo e das empresas cresceram em mais de 740% entre 1939-51, com expressivo aumento dos investimentos nos setores de bens de capital e de infra-estrutura. Esses dados contrapõem-se, portanto, à idéia propagada de que é interesse dos países desenvolvidos manterem a pobreza e o subdesenvolvimento das outras nações.

TABELA 1

Comissão Mista: estimativas da formação bruta de capital e da taxa de investimento em anos selecionados

(bilhões de cruzeiros) 1939 1947 1948 1949 1950 1951 Governo 1,1 3,8 5,4 7,6 10,0 9,6 Empresas 5,0 20,0 19,1 23,9 28,2 42,2 - Bens de Capital 2,7 11,8 12,0 13,6 15,9 21,9 - Novas Construções 1,0 9,4 8,8 9,2 10,0 13,6 - Variação de Estoques 1,3 -1,2 -1,6 1,0 2,3 6,7 Total 6,1 23,8 13,5 15,1 16,6 51,8 % do Produto 14,8 14,9 13,5 15,1 16,6 18,0

Fonte: Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para

Desenvolvimento Econômico Relatório Geral 1. Tomo, 2. Anexos Rio de Janeiro, 1954: 28 apud MALAN et al, 1977: 63

No final do ano de 1951, o Brasil vivia uma séria crise cambial e, visando contornar esta situação, Vargas decidiu impor limites à transferência de lucros e dividendos ao capital estrangeiro, o que desagradou em muito as empresas estrangeiras instaladas no País e, especialmente, ao governo norte-americano. Desde então até 1964, todos os financiamentos externos – do Banco Mundial (Bird) e do Fundo Monetário Internacional (FMI) – declinaram até tornarem-se praticamente nulos. (MALAN et al, 1977: 35)

Com o objetivo de gerar recursos para fazer frente a necessidade de investimentos, Vargas negociou a venda de materiais estratégicos para os Estados Unidos, tendo assinado um Tratado de Assistência Militar em 1952. Mas, foi exatamente neste ano que o presidente brasileiro assumiu claramente uma nova estratégia de negociação no âmbito externo.

A partir de 1952, a política governamental favoreceu fortemente a industrialização, apoiando a produção doméstica em detrimento das importações, ou seja, um aprofundamento ao processo de substituição de importações iniciado na década de trinta. Tanto assim, que “a participação relativa das importações na oferta industrial reduziu-se de 16% em 1952 para 7,2% em 1956”. (MALAN et al, 1977: 404)

O protecionismo brasileiro, via barreiras tarifárias à importação, havia sido indicado pela Comissão Mista como um problema real e de difícil reversão. A prática de elevadas tarifas parecia ser condição necessária para uma economia industrial em expansão, que necessita dos efeitos de proteção para continuar promovendo a diversificação produtiva. Assim, as políticas conjuntas de proteção e sobrevalorização cambial obedeciam a uma justificativa de menor resistência e de rápida execução.

O novo estilo de política externa impresso por Vargas seguia o nacionalismo reformista do presidente Perón104 na Argentina, pretendendo representar uma resposta de ambos os países ao tratamento desfavorável que julgavam receber dos Estados Unidos. A barganha em favor da modernização e do desenvolvimento econômico adotada por Vargas veio a ser denominada de “nacionalismo de fins”105 e, como reitera Vizentini (2004: 75), constituiu-se na “utilização da política exterior como instrumento de desenvolvimento econômico também presente nos demais foros internacionais”.

104 Juan Domingo Perón (1895-1974) Militar de carreira foi presidente da Argentina por três

mandatos, o primeiro de 1946-52, o segundo de 1952-55 e o terceiro de 1973-74.

105 Sobre os conceitos da denominada política de nacionalismo de fins, falaremos em mais

Já na primeira metade do último governo de Getúlio Vargas perfilava-se uma importante barganha diplomática frente aos EUA, umbilicalmente vinculada à questão do desenvolvimento econômico. Esta barganha consistia no apoio brasileiro aos Estados Unidos no plano estratégico, buscando em contrapartida o auxílio econômico norte-americano como condição fundamental para o sucesso do projeto varguista. (VIZENTINI, 2004 : 11-12 )

Para Vargas, os recursos necessários ao desenvolvimento deveriam vir do exterior, ou seja, por meio de empréstimos, transferências de tecnologia ou comércio, uma vez que internamente estes recursos eram escassos. A administração brasileira dava sinais claros de que o auxílio externo era necessário e bem vindo, seja ele originário de parceiros tradicionais ou não.

Dia 15 de fevereiro de 1952 a imprensa publicava a seguinte declaração do Chefe do Departamento Econômico do Itamaraty, João Alberto: devemos ir ao encontro de mercados, estejam onde eles estiverem. O interesse comercial não deve estar ligado ao político. (VIZENTINI, 2004: 56)

Ficava explícito assim que, quando a barganha diplomática com os Estados Unidos ficava difícil de ser superada, Vargas recorria à tentativa de ampliar as relações com outras regiões.

Conforme argumenta Lafer (2001: 95), a administração brasileira se aproveitava das “fissuras do sistema internacional” para exercer sua política externa.

Objetivando contabilizar bons resultados com essa estratégia, Vargas ampliou a projeção externa do Brasil, sobretudo no Terceiro Mundo, estreitando as relações com o Peru, Bolívia e Equador. Mas, por falta de condições externas favoráveis e de vontade política, não resultou em grande progresso. De qualquer maneira, representou uma opção comercial e um elemento adicional para a prática de barganha.

A necessidade de financiamento para os projetos de infra-estrutura e para a formação bruta de capital deu origem, no Brasil, à criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE)106, que viria a desempenhar papel fundamental na estruturação e diversificação do parque produtivo nacional. (MALAN et al, 1977: 61-63)

Internamente, a insatisfação em relação à política externa do governo aumentava, e os debates mais veementes e calorosos contra a posição brasileira ocorriam no Congresso, com a emergência de dois grupos de parlamentares: um contra e outro a favor da aproximação aos Estados Unidos.

O grupo contrário à aproximação norte-americana evocava a imediata adoção de políticas nacionalistas e a necessidade de uma maior presença do Estado na economia. O outro grupo, identificado como pró-Estados Unidos, destacava os benefícios advindos da aproximação e a possibilidade de acesso a um mercado significativo para o Brasil, tanto no sentido comercial, quanto na atração de investimentos, fundamentais ao desejável projeto de desenvolvimento.

Ante as pressões, Vargas realizou uma ampla reforma ministerial, substituindo Neves da Fontoura e Oswaldo Aranha por Vicente Rao107 e Horácio Lafer108, com o objetivo de dar um maior destaque e importância aos reclamos da economia doméstica.

106 Criado em 20 de junho de 1952 tinha a finalidade de elaborar análises e projetos que

viabilizassem o avanço da industrialização, facilitando a execução da política nacional e do desenvolvimento econômico. Atual BNDES.

107 Vicente Paulo Francisco Rao (1892-1978), jurista, foi Ministro da Justiça antes de assumir o

cargo de Ministro das Relações Exteriores.

108 Horário Lafer (1900-65), diplomata de carreira, foi Ministro da Fazenda e representante do Brasil

A relação do Brasil com os Estados Unidos sofreu profunda deterioração no ano de 1953, quando internamente o governo perdeu sustentação, levando ao total isolamento de Vargas. A razão estava no avanço das forças antivarguista que conquistavam forte mobilização popular em função do agravamento da crise econômica.

No plano externo, a vitória republicana de Eisenhower109 indicava o

comprometimento do projeto nacional brasileiro, no que diz respeito ao apoio externo, uma vez que conhecidamente Eisenhower tinha uma posição conservadora, anticomunista e totalmente avessa às políticas nacionalistas dos países emergentes, em especial latino-americanos. A linha dura de Eisenhower, marcada pelo militarismo, exigia um alinhamento automático no plano político- militar dos países aliados aos Estados Unidos, o que inviabilizava a prática de barganha que vinha sendo sustentada até então.

Além disso, a postura norte-americana inviabilizava uma estratégia de negociação governo a governo, como pretendia Vargas. (VIZENTINI, 2004: 64). Prática de negociação que a Comissão Mista havia sugerido fosse substituída por uma relação entre empresas.

A essa altura, o déficit em conta corrente e a dívida externa brasileira haviam atingido proporções insustentáveis, refletindo em perda de credibilidade do país junto às instituições financeiras internacionais. O que credenciava o novo governo republicano a tratar o Brasil com negligência. (MALAN, 1978: 71-72)

Em 1954, Vargas procurou revitalizar a política externa de barganhas, defendendo a importância de estabelecer relações comerciais e diplomáticas com os países socialistas. Em função disso, houve convites formais e oficiais para que os países latino-americanos enviassem representantes comerciais a Moscou e a Praga.

109 Dwight D. Eisenhower (1980-1969) ocupou a presidência dos Estados Unidos de 1952 até

Mas, o aceno de aproximação ao Bloco Soviético não rendeu benefícios políticos nem econômicos para Vargas.

Ao ensaiar a desobediência à aliança tradicional, o Brasil buscava atrair a atenção dos Estados Unidos e negociar um realinhamento em novas bases, sobretudo com aporte financeiro. A política externa não pretendia acabar com a dependência, mas alterar seu perfil de forma mais favorável ao Brasil. (VIZENTINI, 2004: 80).

Mas, conforme salienta Grieco (1998: 115), para os Estados Unidos as políticas “ambíguas e pendulares” de Vargas passaram a ser vistas como um claro desalinhamento às relações tradicionais entre os dois países. Nessa fase a ofensiva norte-americana ao governo Vargas parece ter ganhado um tom mais intenso, a ponto de ser identificada por autores como Vizentini (2004: 75) como estando vinculada ao suicídio do presidente, já que tão logo os Estados Unidos anunciaram um plano de ajuda financeira ao Brasil, o então Ministro da Fazenda Osvaldo Aranha foi convidado a discutir em Washington a questão da política de valorização do café – que até então recebia pressão contrária norte-americana.

(...) o agravamento da guerra fria, a forte pressão de parcela ponderável das elites brasileiras por uma aproximação ainda maior com os Estados Unidos, a mudança da política norte-americana em 1953 sob uma nova administração republicana e a relativa perda de credibilidade do Brasil junto a instituições financeiras internacionais (...) aguçaram (...) os problemas internos que o Brasil enfrentava no início da segunda metade do século e levaram à queda de Vagas em 1954(...). (MALAN et al, 1977: 409)

Com a morte de Vargas e a posse de Café Filho, a política externa se alterou novamente, tendo como base os argumentos expressos pela Escola Superior de Guerra (ESG), que baseava suas percepções em relação à política externa no binômio segurança e desenvolvimento, ou seja, o projeto de desenvolvimento econômico do país deveria estar associado a um componente internacional.

Ao mesmo tempo, tomava forma a construção de uma política externa pautada pelo denominado “interesse nacional”, fruto da aliança entre a burguesia nacional e os setores populares, dando origem ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) em 1955, em continuidade aos debates e propostas elaboradas pelo Grupo de Itatiaia110 e pelo Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política111

(IBESP) – ambos identificados como sendo nacionalistas e progressistas.

Para o grupo de intelectuais envolvidos nesses debates, a elaboração de um projeto do país, ressaltando o “interesse nacional”, necessitava de autonomia da política externa, embora a ênfase nesse aspecto fosse variável entre vários de seus membros. De qualquer forma, tais posições serviram de base ideológica para a construção daquilo que anos depois foi denominado Política Externa Independente (PEI).