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A Transposição e a Correspondência de Emanuel Swedenborg

Capítulo III – A teologia escatológica de Clive Staples Lewis

2. A Transposição do Céu na terra

2.3. A Transposição e a Correspondência de Emanuel Swedenborg

A terceira influência que devemos considerar é a do teólogo luterano sueco Emanuel Swedenborg. Na génese do seu pensamento estão uma série de visões místicas acerca do Céu e do inferno, e os diálogos que desenvolve com os anjos com quem comunica. Daí, Swedenborg assume a divisão entre o mundo natural e o espiritual, mesmo dentro da Criação, e formula uma teologia de cariz neoplatonista e espiritualista.

Encontram-se em Swedenborg duas ideias chave: por um lado, tudo o que existe emana do próprio Deus; por outro, todas as realidades do mundo natural correspondem a alguma instância do mundo espiritual. A doutrina da Correspondência é apresentada pelo teólogo como uma relação unívoca entre os dois planos de existência: «para que o Mundo natural exista e subsista a partir do Mundo espiritual, precisamente como o efeito a partir da sua causa eficiente»376, não só no geral como também nas mais diversas singularidades.

Para o sueco, o conhecimento das correspondências entre os dois mundos é tido apenas pelos espíritos. No Homem coexistem os dois mundos, pelo que os fenómenos materiais são o indício da vida espiritual. Como o próprio afirma, quaisquer efeitos produzidos no corpo, «seja na face, no discurso ou em movimentos corporais, são chamadas de correspondências»377 com

moções interiores, da inteligência e da vontade. Da mesma forma, o Homem como um todo reflete uma sociedade celeste, bem como todo o Céu. As relações estabelecidas por Swedenborg são, portanto, equivalências simples entre dois objectos existentes em sistemas diferentes, mas não absolutamente distintos, descritas segundo um modelo bijetivo378.

376 E. SWEDENBORG, De coelo et eius mirabilibus et de inferno ex auditis et visis, ed. J. Tafel, Londres, 1758,

89.

377 E. SWEDENBORG, De coelo et eius mirabilibus et de inferno ex auditis et visis, 91.

378 Na matemática, uma função bijectiva é tal que cada elemento do conjunto de domínio e contradomínio esteja

emparelhado com apenas um elemento do conjunto contrário (a-A, b-B, c-C, … com todos os elementos diferentes).

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De modo semelhante, as visões do teólogo sueco devem ser acolhidas literalmente, com a presunção de certeza relativamente à imagética apresentada. Das descrições de Swedenborg podemos imaginar um Céu excessivamente detalhado, em perfeita continuidade com a terra em todos os aspectos materiais, sociais, espirituais, entre outros, que contaria o próprio conceito de eternidade. A consequência para a teologia escatológica é uma visão demasiado antropocêntrica, e que não deixa espaço para a reflexão acerca dos Novíssimos e de outras qualidades como a Visão de Deus, Beatitude e Caridade divina.

Podemos avançar alguns motivos pelos quais Lewis rejeita Swedenborg. O primeiro é aquele exposto anteriormente, acerca do ocultismo e a teosofia. Apesar da abordagem catabática do sueco, a perspectiva de uma literalidade no conteúdo demasiado específico das suas revelações leva Lewis a designá-las por «estatísticas celestiais» e a colocá-las ao nível de outras verdades naturalmente inteligíveis. Assim, perde-se o carácter inspirado das visões de Swedenborg, que não passam de fraca fantasia, sem a dimensão inefável e verdadeiramente mística que Lewis reclama, e que implicam uma certa passagem pela morte para poderem ser objecto de conhecimento. Este aspecto vem englobado na advertência que o guia angelical de

The Great Divorce deixa ao personagem principal, ou seja, que tudo não passou de um sonho379.

Um segundo motivo tem que ver com o próprio modelo da Correspondência de Swedenborg. Para Lewis, a relação entre os dois sistemas não pode ser bijectiva, sobretudo sendo o primeiro mais rico que o segundo. Este argumento contra Swedenborg parece colhido de Joseph Butler, que também rejeita as correspondências singulares, ao constatar que certos sistemas são maiores que outros. Assim, por sistema rico devemos entender aquele onde existem mais ocorrências, e não necessariamente uma relevância ontológica, como é o caso dos níveis emocional-sensorial. Em Transposition, nunca se faz menção ao teólogo sueco, embora

379 «E se vieres a contar o que viste, deixa claro que não passou de um sonho. Deixa isso bem claro. Não dês a

nenhum pobre tolo o pretexto de pensar que estás reivindicando conhecimento do que nenhum mortal sabe. Não deverei ter nenhuns Swedenborgs nem nenhuns Vale Owens entre meus filhos» (C. S. LEWIS, The Great Divorce, 144).

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o vocábulo correspondence apareça diversas vezes, sempre com o objectivo de o refutar, argumentando que

«se o sistema mais rico deve ser representado totalmente no mais pobre, isso só pode ocorrer se for dado a cada elemento no sistema mais pobre mais do que um significado. A transposição dos mais ricos para os mais pobres deve, por assim dizer, ser algébrica, não aritmética»380.

Podemos ainda adiantar uma terceira razão para a rejeição de Swedenborg, baseada nas consequências da sua doutrina. Uma descrição do Céu, cheia de detalhes supérfluos, pode conduzir a uma perda de interesse pela questão escatológica; a simplicidade do conceito de vida eterna do teólogo sueco, face à vida na terra, leva à diminuição do empenho ético por a alcançar. O excesso contrário é o de uma visão escatológica excessivamente inefável, que procura desmitologizar qualquer vestígio de imagens ou símbolos. Lewis esforça-se por tornar o Céu credível e compreende que a solução não passa por qualquer destas posições: uma é materialista; a outra, inteligível. Daí que Lewis defenda que

«maioria de nós acha muito difícil querer o “Céu” – exceto quando “Céu” significa encontrar novamente nossos amigos que já morreram. Uma razão para esta dificuldade é que não fomos treinados: toda a nossa educação tende a fixar as nossas mentes neste mundo. Outra razão é que, quando o verdadeiro desejo de Céu se nos apresenta, não o reconhecemos»381.

Porém, não se pode deixar de notar o contributo de Swedenborg, que impele Lewis a procurar uma nova abordagem. O conceito de Correspondência, a assimetria nos planos natural e sobrenatural, a ideia de hierarquia e a vantagem da imagética cooperaram, certamente, para o desenvolvimento da teoria da Transposição. De forma semelhante ao teólogo sueco, esta será

380 C. S. LEWIS, “Transposition”, in The Weight of Glory, 99.

381 C. S. LEWIS, Mere Christianity, 135. A Comissão Teológica Internacional publicou, em 1990, um documento

intitulado Algumas questões atuais de escatologia, onde apresenta o mesmo argumento (cf. Commissio Theologica Internationalis, De quibusdam quaestionibus actualibus circa eschatologiam, Gregorianum 73 (3/1992), 395-435.

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aplicada por Lewis, não apenas a fenómenos dentro do mesmo plano natural, mas sobretudo a diferentes degraus na ordem do ser. Assim percebemos o impacto que teve na definição dos arquétipos-éctipos, que se aplica posteriormente aos milagres da Nova Criação.