• Nenhum resultado encontrado

Capítulo II – A obra de Clive Staples Lewis: os textos da escatologia

4. Miracles (1947)

Numa forma e contexto radicalmente diferentes, Lewis apresenta uma reflexão eminentemente filosófica acerca da possibilidade da existência de milagres. A obra começa por definir os termos do debate: Naturalismo e Sobrenaturalismo. Após demonstrar a possibilidade de uma metafísica, argumentando que a razão transcende a carne, mostra como esse Facto sobrenatural (o pensamento) tem o poder de interferir na Natureza (o cérebro), que aparece nesta obra como sinónimo de matéria física. Por fim, o autor preocupar-se-á com a categorização e explicação de alguns milagres de Cristo, à luz das suas próprias premissas.

Visto não se tratar do âmbito do nosso estudo, deixaremos de lado toda a secção introdutória correspondente à crença de Lewis no Sobrenaturalismo. Acreditamos que o conhecimento elementar de uma metafísica cristã será suficiente para compreender toda a segunda secção da obra. Assim, abordaremos sobretudo o último capítulo onde se trata da categoria dos milagres da Nova Criação.

Começando por definir os dois grupos de fenómenos milagrosos, Lewis afirma que

«cada milagre escreve-nos, em letras pequenas, algo que Deus já escreveu ou escreverá, em letras demasiado grandes para serem notadas, ao longo de toda a tela da Natureza. […] Quando reproduzem operações que já vimos em larga escala, são milagres da Antiga Criação; quando se concentram naquelas que ainda estão para vir, são milagres da Nova»254.

Os fenómenos extraordinários que interessam para uma possível escatologia lewisiana, os milagres da Nova Criação, são ainda subdivididos em três categorias: de Domínio sobre o inorgânico; de Regressão; de Aperfeiçoamento ou Glorificação255. Segundo Lewis, estes

254 C. S. LEWIS, Miracles: A Preliminary Study, Collins, Londres, 2012, 219. 255 C. S. LEWIS, Miracles, 219.

71

prodígios são eminentemente escatológicos, a antecipação de realidades vindouras ou, como afirma,

«o antegozo de uma Natureza que ainda está no futuro. A Nova criação está apenas invadindo. […] O Capitão, o percursor, está já em Maio ou Junho, apesar de os Seus seguidores na terra ainda viverem nas geadas e ventos leste da Antiga Natureza»256.

Primeiramente, Lewis afirma que que estes milagres não podem ser compreendidos sem ter presente os eventos da Ressurreição e Ascensão de Cristo. Em defesa de uma antropologia integral cristã, o autor refuta as teses espiritualistas que negam a importância da carne do Ressuscitado, que aparece aos seus discípulos e interage com o meio ambiente, comendo e bebendo com eles. Depois da Páscoa, afirma Lewis,

«um modo totalmente novo de ser surgiu no universo. O corpo que vive neste novo modo é, e não é, como o corpo que os Seus amigos conheceram antes da execução. Relaciona-se diferentemente com o espaço e provavelmente com o tempo, mas de modo nenhum está separado da relação com eles»257.

Ainda em defesa de uma certa literalidade nos relatos das Ascensão, Lewis declara que uma entidade objectiva e material, como a do Corpo Ressuscitado que se empenha em demonstrar uma continuidade com o próprio corpo morto, deve ir para algum lugar e não apenas desaparecer como um fantasma. Qualquer outra interpretação «seria nada mais que a reversão ou o desfazer da Incarnação»258.

Os milagres da Nova Natureza estão pré-ordenados, e de alguma forma antecipam, a experiência da Ressurreição. Por esse motivo, só podem ser compreendidos em retrospetiva,

256 C. S. LEWIS, Miracles, 230-231. 257 C. S. LEWIS, Miracles, 241. 258 C. S. LEWIS, Miracles, 240.

72

numa hermenêutica tipológica dos próprios eventos extraordinários. Nesta interpretação, Lewis enquadra três momentos que manifestam o novo modo de existência: Jesus e Pedro caminhando sobre as águas (cf. Mt 14, 22-33) classifica-se como um milagre de Domínio sobre o inorgânico; a ressurreição de Lázaro (cf. Jo 11, 38-44) trata-se de um milagre de Regressão; a Transfiguração de Jesus no Tabor (cf. Mc 9, 2-8) é definida como um milagre de Glorificação. De acordo com o relato de Mateus, Jesus aproxima-se da barca dos apóstolos, fustigada pelo vento, caminhando sobre as águas. Chamando Pedro, este dirige-se do mesmo modo para junto do Mestre mas, após alguns passos, afunda-se. O motivo indicado no Evangelho é a falta de fé. Segundo Lewis, neste milagre «vemos as relações entre o espírito e a Natureza alteradas»259, de tal forma que a Natureza obedece aos espíritos260, logo que «estes se tenham

tornado totalmente obedientes à sua fonte»261. Caminhar sobre as águas não se trata de um acto

de magia. Esta «surge do desejo do espírito finito de obter esse poder sem pagar o preço»262 de

submeter-se a Deus, contrário à ordem natural. Mas longe de se aniquilar, a Natureza da água é «aperfeiçoada pela servidão»263 e dominada pelo Criador, antecipando-se a realidade futura

da Nova Criação.

O milagre da ressurreição de Lázaro acontece quando Jesus trás de volta à vida o seu amigo, estando este sepultado há vários dias. «Isto implica rodar para trás um filme que sempre vimos ser rodado para a frente»264. Lewis caracteriza a matéria como entrópica, em constante

devir da ordem para o caos. «Na morte, a matéria que era orgânica começa a esvair-se no

259 C. S. LEWIS, Miracles, 245.

260 Como se pode ler no Apêndice A da mesma obra, o termo espírito designa o «elemento relativamente

sobrenatural que é dado a todo o homem no momento da sua criação – o elemento racional», e que não se deve confundir com a alma biológica, anima, nem com a vida espiritual, novitas, que Lewis designa por zōḗ (cf. C. S. LEWIS, Miracles, 275-281. A distinção é importante para a compreensão de uma antropologia integral: todo o Homem é naturalmente criado como o composto de corpo, alma e espírito. À Natureza, em virtude da sua kénōsis, Deus acrescentar-lhe-á a sua própria zōḗ.

261 C. S. LEWIS, Miracles, 245. 262 C. S. LEWIS, Miracles, 245. 263 C. S. LEWIS, Miracles, 245. 264 C. S. LEWIS, Miracles, 231.

73

inorgânico»265. O prodígio, apesar de não introduzir Lázaro numa existência nova e gloriosa,

realiza um novo modo de ser, na medida em que a repetição de um estado não pertence à Antiga Natureza. Assim, o episódio inaugura, em menor escala e de um modo muito particular, a ressurreição universal da carne do fim dos tempos, antecipada em Lázaro. Da mesma forma que o caminhar sobre as águas era um vislumbre da Nova Natureza obediente da água, aqui apresenta-se um indício de que, ao comando do espírito, voltaremos a ter uma nova carne. Como afirma o autor,

«uma Natureza que vai decaindo não pode ser a história toda. Um relógio não pode girar a não ser que lhe seja dada corda. […] deve ter havido um tempo em que os processos inversos daqueles que vemos agora aconteciam: um tempo de dar corda. A afirmação cristã é que esses dias não desapareceram para sempre»266.

Por fim, acerca da Transfiguração de Jesus no Monte Tabor, Lewis apresenta apenas um breve comentário. A metamorfose afecta, não apenas o corpo de Cristo, mas também as roupas. Trata-se, de facto, de um «vislumbre antecipatório de algo por vir»267, embora «não saibamos

para que fase ou característica da Nova Criação este episódio aponte»268.

O autor deixa outras interpretações em aberto, limitadas não tanto pela fantasia, mas sobretudo pela factualidade do episódio da Ressurreição. «A tarefa da imaginação aqui não é predizer» a Nova Criação269, mas expandir possibilidades, ainda que metaforicamente,

interligando-as aos factos literais experimentados pelas testemunhas da Páscoa de Jesus. O processo criativo funcionará assim como uma instância onde surgem novas realidades ou ficções, que sejam o elo de ligação entre o Natural e o Sobrenatural. Com isto, Lewis pretende

265 C. S. LEWIS, Miracles, 246. 266 C. S. LEWIS, Miracles, 248. 267 C. S. LEWIS, Miracles, 249. 268 C. S. LEWIS, Miracles, 249. 269 C. S. LEWIS, Miracles, 250.

74

introduzir uma nova abordagem à relação entre a física e a metafísica: a distância entre o finito e o infinito, embora absoluta, não tem por que ser transposta apenas em um passo. Como o próprio afirma,

«estamos preparados para acreditar, ou numa realidade com um andar, ou numa realidade com dois andares, mas não numa realidade como um arranha-céus, com muitos andares. […] Estamos certos de que o primeiro passo para além do mundo da nossa experiência presente deve levar a lugar nenhum, ou ao abismo cegante da espiritualidade indiferenciada, ao incondicionado, ao absoluto»270.

A descrença na possibilidade de níveis intermédios entre o Incondicionado e o mundo revelado tinha levado Lewis a rejeitar quaisquer rumores acerca da existência destes, e a rotulá- los como mitologia271. Com o passar do tempo, assistimos a este desenvolvimento no

pensamento de Lewis, agora explicitado272: a distância entre o Céu e a terra, embora infinita, é

aquela entre um Ser superior e um outro inferior, mediada por certas faculdades e unida por elementos pertencentes a ambos os polos. A realidade apresenta «Naturezas empilhadas sobre Naturezas até à altura que Deus desejar, […] diferentes níveis de ser, distintos, mas nem sempre descontínuos»273.

Para o entendimento da glorificação corpórea, Lewis prossegue pela exegese dos textos bíblicos, versando-se sobre as capacidades intelectuais e psicológicas dos apóstolos. Nesse sentido, apresenta algumas dificuldades populares que a reconciliação entre a Natureza e o Espírito oferecem, sobretudo da linha dualista platónica, que reduz o papel do corpo. No contexto da disputa que o pecado original iniciou, «a própria discrepância é precisamente uma

270 C. S. LEWIS, Miracles, 251-252. 271 Cf. C. S. LEWIS, Miracles, 252.

272 O tema já tinha sido sugerido de forma alegórica na obra The Great Divorce, ao indicar que as personagens se

tornam mais sólidas quando mais se aproximam da Montanha. Aqui aparece desenvolvido mais claramente, com o estilo dialético próprio de Lewis.

75

das desordens que a Nova Criação vem curar»274. Por agora, podemos apenas ter alguns

vislumbres de como será o Homem curado desta desavença, «quando o Espírito cavalgar sobre a Natureza tão perfeitamente que os dois juntos formem mais um Centauro que um cavaleiro montado, […] o facto e o mito recasados»275.

Outro argumento refutado por Lewis é o de que o Céu seja um lugar apenas psicológico. A prova baseia-se nos eventos de Cristo: «ao ensinar a ressurreição do corpo, [o Cristianismo] ensina que o Céu não é apenas um estado de espírito, mas também um estado de corpo e, portanto, um estado da Natureza como um todo»276. Uma visão meramente espiritualista ou

psicologizada do Céu tem contribuído para o esmorecer da Esperança277, que nos permite

esperar um revestimento, mais que um despimento. Referindo-se ao culto, aponta que «certos dons espirituais nos são oferecidos apenas na condição de executarmos certos actos corporais»278, razão pela qual necessitamos de matéria, e questiona-se por fim sobre

«“quem nos confiará a verdadeira riqueza quando não se nos pode confiar sequer a riqueza que perece?” Quem me confiará um corpo espiritual se não consigo sequer controlar um corpo terreno?»279.

Com esta questão, Lewis termina o ensaio sobre os milagres. Neste ponto da reflexão podemos já observar uma grande maturidade no seu pensamento acerca da relação entre as

274 C. S. LEWIS, Miracles, 259. No comentário ao poema de John Milton, Lewis afirma que o pecado original

destrói a hierarquia da criação, «dado que a Queda consistiu na Desobediência do homem ao seu superior, foi punida pela perda da Autoridade do homem sobre os seus inferiores, isto é, sobretudo, sobre as suas paixões e o organismo físico» (C. S. LEWIS, A Preface to Paradise Lost, Oxford University Press, Oxford, 1979, 69), e ainda, «a bondade, felicidade e dignidade de todos os seres consiste em obedecer aos seus superiores naturais e governar sobre os seus inferiores naturais» (C. S. LEWIS, A Preface to Paradise Lost, 73).

275 C. S. LEWIS, Miracles, 262-263. 276 C. S. LEWIS, Miracles, 263. 277 Cf. C. S. LEWIS, Miracles, 265. 278 C. S. LEWIS, Miracles, 265-266.

76

realidades terrestres e celestes. Na obra seguinte, a última que exporemos neste capítulo, veremos incarnada toda a doutrina escatológica de Lewis, sob a forma de um conto infantil.