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Para Voelke, é a Cícero que devemos a definição mais completa da noção de

uoluntas128:

“Tão logo se apresenta a imagem de alguma coisa que pareça um bem, a própria natureza impele a alcançá-lo. Quando isso se faz com firmeza e prudência, os estóicos chamam esse empenho

122

O verbo congredere possui, entre outros sentidos, o de “aproximar-se” e o de “discutir”. Traduzimos por “vem à batalha” (acepção 2 do dicionário de Oxford) porque percebemos o contexto militar em que ele aparece.

123

In qua positione mentis sim, cum hunc lego, fatebor tibi: libet omnis casus prouocare, libet exclamare: “Quid cessas, fortuna? Congredere: paratum uides”.

124

(...) praeoccupati sumus, ad uirtutem contendimus inter uitia districti. Pudet dicere: honesta colimus,

quantum uacat. At quam grande praemium exspectat, si occupationes nostras et mala tenacissima abrumpimus! Non cupiditas nos, non timor pellet: inagitati terroribus, incorrupti uoluptatibus nec mortem horrebimus nec deos: sciemus mortem malum non esse, deos malo non esse.

125

Batalha que o sapiens terminará por vencer: cf. infra, p. 37. 126

Lévy, op. cit., p. 166. 127

Bem como a sapientia: “A originalidade do pensamento estóico”, diz Lévy, “no que concerne ao bem supremo, consiste em uma formulação diferente dos que apresentam o telos como um objetivo a adquirir e a sabedoria como a technè, a ‘ciência’, dessa aquisição. No estoicismo, com efeito, a sabedoria é comparável à dança, que traz, em si mesma, seu próprio fim”. Op. cit., p. 168.

128

deste modo: Quanto a nós, nós o chamamos de uoluntas. Eles julgam que ela se encontra somente no sábio, e a definem desta maneira: a uoluntas é o desejo acompanhado de razão”129 (Tusculanae IV, 6, 12)130.

A noção de uoluntas131 não é definida, em Sêneca, com exata precisão. No sentido mais limitado, é unicamente a inclinação racional ao bem. Porém, em sentidos mais amplos, uma tendência capaz de assentimento, um impulso nobre e um simples desejo são também formas de uoluntas. No entanto, à parte a imprecisão da definição do termo, estudiosos são concordes em afirmar que nenhuma palavra grega

( , ou mesmo )

comporta plenamente o significado de uoluntas na acepção que Sêneca lhe confere132. Voelke afirma que, em Sêneca, não há vida filosófica, ou simplesmente vida moral, sem um engajamento inicial da uoluntas. Mas ela é somente o passo inicial rumo ao soberano bem. A uoluntas é, com efeito, um impulso (impetus) que ainda não tem a firmeza necessária, e deve se transformar em disposição durável (habitus)133. Portanto, ao engajamento inicial sucede o exercício gradual. A vontade que visa ao bem se prolonga em vontade militante, que acaba por se tornar uma atividade que Sêneca compara à militia134.

Em termos filosóficos, essa forma de vontade manifesta a tensão da alma135. Sêneca exorta Lucílio a ter a alma bem tensa, tanto no pensamento quanto na ação; e, se relaxarmos essa tensão, regredimos136. É, sobretudo, o aprimoramento da alma que requer pôr em prática essa força: mesmo se devemos contar com ajuda alheia para chegarmos ao sumo bem, “já é muito querer ser salvo” (Ep. 52, 3. Grifos nossos)137. A Lucílio, que, apesar de seu progresso, ainda se sente longe do objetivo e declara que o que faz é somente querer (Ep. 34, 3), Sêneca diz:

129

Literalmente, “uoluntas é o que se deseja com razão”. 130

Quam ob rem simul obiecta species est cuiuspiam quod bonum uideatur, ad id adipiscendum impellit

ipsa natura. Id cum constanter prudenterque fit, eius modi adpetitionem Stoici

appellant, nos appellamus uoluntatem. Eam illi putant in solo esse sapiente, quam sic definiunt: uoluntas est, quae quid cum ratione desiderat.

131

Termo cujos sentidos mais próximos seriam, em português, “boa vontade” ou “força de vontade”. Nas traduções, por questões práticas, adotamos simplesmente “vontade”.

132

Voelke, op. cit., p. 162; B. Inwood, The will in Seneca the Younger, p. 46. 133

Cf. Ep. 16, 6: ut habitus animi fiat quod est impetus (“para que se torne um hábito da alma o que é um impulso”).

134

Voelke, op. cit., p. 169. Sobre a militia, v. supra, p. 23-27. 135

Essa tensão é a intentio (ou ). “Já nos antigos estóicos”, diz Voelke, “a noção de ou tensão deixa os limites da física para se revestir de um tom ético: a força da alma se identifica com a do ”. Op. cit., p. 169.

136

Cf. infra, p. 29. 137

“Isso é quase tudo, e não a metade, como no ditado ‘o começo de toda tarefa é meio caminho andado’. A vontade está na alma. E, desse modo, grande parte da bondade consiste em querer ser bom” (Idem, ibidem. Grifos nossos)138.

Todo progresso em direção à sabedoria deve se caracterizar por uma estabilidade da uoluntas139. E é a essa “estabilidade” (constantia) que daremos atenção, no passo seguinte.

4. 1) Sapientia e constantia. As diferenças entre filosofia e sabedoria

Sêneca, nas Epistulae, define a sabedoria como “a alma perfeita, ou levada ao mais elevado e melhor nível de perfeição; é, com efeito, a arte da vida” (Ep. 117, 12)140 e também como “querer e não querer sempre a mesma coisa” (Ep. 20, 5).141 Essa última definição é extremamente importante por revelar que a constantia, para o cordovês, essencial ao sábio, é um dos pontos em que Sêneca declara divergir do estoicismo.142 Tal noção, um dos fundamentos da sapientia, também necessita estar presente no estudo da filosofia: “Não há muita diferença entre deixar de lado a filosofia e a suspenderes: pois não se mantém no ponto em que foi interrompida, mas, como uma mola que se rompe se for estendida ao máximo, ela volta ao seu começo, pois falta continuidade” (Ep. 72, 3).143 Esse trecho se assemelha a outro, encontrado na epístola 71, em que Sêneca deixa patente que é fundamental a constante aplicação e o cuidado atento para se chegar à sabedoria:

138

In hoc plurimum est, non sic quomodo principia totius operas dimidium occupare dicuntur; ista res

animo constat. Itaque pars magna bonitatis est uelle fieri bonum.

139

Ep. 35, 4: Mutatio uoluntatis indicat animum natare, aliubi atque aliubi apparere, prout tulit uentus (“A mudança de vontade indica que a alma flutua, aparecendo ora aqui ora ali, levada ao sabor do vento”).

140

(...) mens perfecta uel ad summum optimumque perducta; ars enim uitae est. 141

(...) semper idem uelle atque idem nolle. 142

Cf. Ep. 74. Na referida carta, após a objeção de que a perda de certos “bens” fará falta ao sábio (§ 22), Sêneca expõe a opinião tradicional do estoicismo a respeito (§ 23-9). Depois, há a réplica pessoal do filósofo: ele acrescenta que o sábio, mesmo se deixa transparecer um movimento instintivo natural frente a acontecimentos como o cerco à pátria e a morte dos filhos, permanece inabalável em sua constantia (§ 30-4).

143

Non multum refert, utrum omittas philosophiam an intermittas: non enim ubi interrupta est, manet, sed

“É inevitável que seres imperfeitos vacilem e ora avancem, ora retrocedam ou sucumbam. Mas retrocederão a não ser que persistam em ir adiante e se empenhem; se abrandarem o cuidado e a aplicação constante, andarão para trás. Ninguém encontra o progresso no mesmo lugar em que o abandonou” (§ 35).144

A consonância entre as palavras e os atos é essencial para o início do caminhar rumo à sapientia. A freqüente mudança de opinião demonstra que a alma ainda não atingiu a devida retidão, o que a faz “saltar de um lado para outro”, nas palavras do próprio Sêneca (Ep. 52, 1; 35, 4). A importância da constantia como indício de

sapientia pode ser observada também nas seguintes passagens:

“Este é o ofício mais importante da sabedoria e o mais importante indício: que as obras estejam em consonância com as palavras, que o homem seja sempre semelhante e igual a si próprio (...). Toma, de uma vez por todas, uma única regra para viveres e deixa-a igual durante toda a tua vida” (Ep. 20, 2-3).145

“Prevejo esse homem146 em ti, se persistires, se te entregares e fizeres com que todas as tuas ações e palavras sejam concordes entre si e ajustadas, e modeladas de uma única forma. Não tem retidão a alma cujos atos são discordes” (Ep. 34, 4).147

144

Inperfecta necesse est labent et modo prodeant, modo sublabantur aut succidant. Sublabentur autem, nisi ire et niti perseuerauerint; si quicquam ex studio et fideli intentione laxauerint, retro eundum est. Nemo profectum ibi inuenit, ubi reliquerat.

145

Maximum hoc est et officium sapientiae et indicium, ut uerbis opera concordent, ut ipse ubique par

sibi idemque sit (...).Vnam semel, ad quam uiuas, regulam prende et ad hanc omnem uitam tuam exaequa.

146

Isto é, o homem perfeito, sobre o qual Sêneca discorria anteriormente. 147

Hunc te prospicio, si perseueraris et incubueris et id egeris, ut omnia facta dictaque tua inter se

congruant ac respondeant sibi et una forma percussa sint. Non est huius animus in recto, cuius acta discordant.

4. 2) Sabedoria e filosofia: meta e caminho

As palavras “filosofia” e “filósofo” tinham, na Antigüidade, diferentes significados dos de atualmente.148 O sentido literal da primeira é “amor pela sabedoria”; conseqüentemente, o filósofo é, por assim dizer, o “amante da sabedoria”, não o “sábio”. Não obstante, o “médico da alma” – metáfora popular para o filósofo, já analisada em nosso trabalho – era quem tinha a capacidade de falar sobre a sabedoria e incitar seus discípulos a seguir rumo a ela.149 Em Sêneca se encontra, certamente, uma distinção entre o filósofo e o sábio já perfeito.150 Zambrano nos recorda que a diferença essencial entre o sábio e o filósofo consiste na tranquillitas do primeiro: “Não se angustia por nada, nem é movido por qualquer impulso. Pelo contrário: parece ter chegado ao fim de suas ânsias (...)”.151 O próprio filósofo, para Veyne, era um

proficiens152 e, conseqüentemente, não era um sábio153.

A filosofia, estudo indispensável para se chegar à sabedoria – ou, ao menos, para dela se aproximar –, transmite os seguintes ensinamentos, de acordo com Sêneca:

“mostra o que são e o que parecem males, despoja a frivolidade dos espíritos, confere uma grandeza sólida e refreia a arrogante e excessiva dos fúteis, e não permite que se ignore a diferença entre o que é grande e o que é soberbo, transmite o conhecimento de toda a natureza e de si mesma. Revela o que e como são os deuses, o que são os infernos, os Lares e os Gênios, qual a espécie da alma perpetuada em segunda forma de deuses, onde fixam morada, quais suas ações, poderes e vontades” (Ep. 90, 28).154

148

Sandbach, op. cit., p. 11. 149

C. Torre, em sua interessante comparação do proficiens (isto é, aquele que se iniciou na jornada rumo à sapientia, ao qual retornaremos no momento oportuno) ao cavalo ainda indomado, lembra-nos de que Sêneca vê a educação para a sabedoria como a “arte do adestramento” e observa, com orgulho, seu discípulo Lucílio, “o cavalo que ele próprio escolheu pela índole, que adestrou com cuidado e que continua a estimular (...)”. Cf. Torre, “Il cavallo-immagine del sapiens in Seneca”, MAIA, p. 373. Veja- se, a título de exemplo, a Ep. 34, 2: Ego quam uidissem indolem tuam, inieci manum, exhortatus sum,

addidi stimulos nec lente ire passus sum, sed subinde incitaui; et nunc idem facio, sed iam currentem hortor et inuicem hortantem (“Eu, uma vez que vi teu caráter, assenhoreei-me de ti, exortei-te, aguilhoei-

te e não admiti que caminhasses lentamente, mas te incitei sem parar; e agora faço o mesmo, mas instigo alguém que já está correndo e em troca me sinto instigado”).

150

C. Torre, “La concezione senecana del sapiens”, MAIA, p. 351. 151

M. Zambrano, El pensamiento vivo de Séneca, p. 52. 152

V. infra, p. 40-41. 153

Op. cit., p. 82. 154

Quae sint mala, quae uideantur ostendit, uanitatem exuit mentibus, dat magnitudem solidam, inflatam

uero et ex inani speciosam reprimit, nec ignorari sinit inter magna quid intersit et tumida, totius naturae notitiam ac suae tradit. Quid sint di qualesque declarat, quid inferi, quid lares et genii, quid in secundam numinum formam animae perpetuatae, ubi consistant, quid agant, quid possint, quid uelint.

As definições antigas de sabedoria (“conhecimento do que deve e do que não deve ser feito”; “conhecimento do que é bom, ruim ou nenhum dos dois”)155 são retomadas por Sêneca na epístola 89, em que também se encontra a diferença entre filosofia e sabedoria. O cordovês afirma, no início da carta:

“A sabedoria é o bem completo da mente humana. A filosofia é o amor e a tendência para a sabedoria. Esta se inclina ao fim que aquela já atingiu. É evidente qual a origem da palavra filosofia. De fato, com o mesmo nome declara o alvo de seu amor” (§ 4. Grifos nossos).156

E continua:

“Uma certeza como que persiste: a de que há uma diferença entre filosofia e sabedoria (...). De fato, esta é o resultado e a recompensa daquela; aquela é o caminho, esta é o fim(§ 6. Grifos nossos).157

Segue-se, mais adiante, a divisão da filosofia de acordo com as mais diversas escolas:

“Tanto os maiores quanto a maioria dos autores disseram que a filosofia se divide em três partes: a moral, a natural e a racional158 (...). Também se encontram outros que dividem a filosofia ou em menos partes ou em mais. Alguns dosperipatéticos acrescentaram uma quartaparte, a‘civil’, já que requer uma prática própria e discorre acerca de outro tema (...). Os epicuristas julgavam que havia duas partes na filosofia, a natural e a moral; a racional eles suprimiram (...). Os cirenaicos aboliram a natural e a racional e se contentaram com a moral; mas o que eles suprimem em um lugar, introduzem em outro. De fato, dividem a moral em cinco partes (...)”(§§ 9-13).159

Sandbach ressalta que as antigas definições de sapientia ilustram o fato de que a palavra , traduzida como “sabedoria”, abrangia tanto a sabedoria teórica quanto a prática, sendo ambas o conhecimento do que existe e do que deve ser

155

Sandbach, op. cit., p. 42. 156

Sapientia perfectum bonum est mentis humanae. Philosophia sapientiae amor est et adfectatio. Haec

eo tendit, quo illa peruenit. Philosophia unde dicta sit, apparet. Ipso enim nomine fatetur quid amet.

157

Illud quasi constitit, aliquid inter philosophiam et sapientiam interesse (...). Haec enim illius effectus

ac praemium est; illa uenit, ad hanc uenitur. Literalmente, “aquela chega, a esta se chega”.

158

Ou seja, a lógica. 159

Philosophiae tres partes esse dixerunt et maximi et plurimi auctores: moralem, naturalem, rationalem

(...).Ceterum inuenti sunt et qui in pauciora philosophiam et qui in plura diducerent. Quidam ex Peripateticis quartam partem adiecerunt ciuilem, quia propriam quondam exercitationem desideret et circa aliam materiam occupata sit (...). Epicurei duas partes philosophiae putauerunt esse, naturalem atque moralem; rationalem remouerunt. Cyrenaici naturalia cum rationalibus sustulerunt et contenti fuerunt moralibus, sed hi quoque quae remouent, aliter inducunt. In quinque enim partes moralia diuidunt (...).

feito: “sua limitação à sabedoria prática era aristotélica, e mesmo ele reconhecia que a sabedoria prática não era independente da teórica, que ele chamou sophia”.160

4. 3) A “pseudo-sabedoria”: as artes liberais e o conhecimento técnico

Já se verificaram, no presente estudo, as invectivas de Sêneca contra a filologia e a erudição literária de sua época. Estas, longe de tornarem um homem sábio, acabam por desviá-lo do caminho que poderia tê-lo conduzido à sapientia. Quanto às artes liberais, que Possidônio (135-51) integrara ao sistema da Estoa161, o cordovês afirma, em uma passagem da epístola 88, que elas não merecem sequer esse nome, visto que só a filosofia liberta o homem de suas paixões162. Sêneca diz, inclusive, que a aplicação a esses estudos não convém ao sábio, pois diversas coisas neles ensinadas são supérfluas163. Na seguinte passagem, mais uma vez se verifica que o importante é aprender a uirtus e também se percebe, novamente, a prevalência de res sobre uerba:

“Na verdade, pode-se mesmo dizer que é possível chegar à sabedoria sem os estudos liberais; de fato, ainda que se deva aprender a virtude, não é através deles que ela é aprendida. E que motivo há para eu pensar que não será sábio aquele que desconhece as letras, sendo que a sabedoria não está nas letras? Ela diz respeito às ações, não às palavras, e não sei se não é mais confiável a memória que não tem nenhum apoio fora de si” (Ep. 88, 32)164.

Quanto ao conhecimento técnico e às “invenções”, Sêneca considera-as excessivas e desnecessárias, afirmando que povos antigos eram de fato sapientes, ou, ao menos, bem próximos de o serem. Veja-se o trecho:

“Acaso pensas, hoje em dia, que é mais sábio quem descobre como repuxar, de uma profundidade abissal, águas perfumadas através de canais ocultos, quem enche ou esvazia passagens de água num só impulso, quem une os tetos móveis das salas de jantar, de modo que uma imagem se suceda à outra e os

160

Sandbach, op. cit., p. 42. 161

Besselaar, op. cit., p. 14. 162

Cf. Ep. 88, 32. Quintiliano, por sua vez, julga que as artes liberales são úteis na formação do sapiens: (...) oratorem, qui debet esse sapiens, non geometres faciet aut musicus (...), sed hae quoque artes, ut sit

consummatus, juuabunt (“... não formarão um orador, que deve ser sábio, o geômetra ou o músico..., mas

essas artes, para que ele seja completo, também serão úteis” – Institutio oratoria I, X, 6). 163

Ver, em particular, o parágrafo 40, em que nosso filósofo se pronuncia a respeito da música e da geometria.

164

Potest quidem etiam illud dici, sine liberalibus studiis ueniri ad sapientiam posse: quamuis enim

uirtus discenda sit, tamen non per haec discitur. Quid est autem, quare existimem non futurum sapientem eum, qui litteras nescit, cum sapientia non sit in litteris? Res tradit, non uerba, et nescio an certior memoria sit, quae nullum extra se subsidium habet.

telhados vão mudando todas as vezes em que se mudam os pratos, ou aquele que mostra, tanto a si quanto aos outros, que a natureza não nos determinou nada árduo e difícil, que podemos morar sem um marmorário ou carpinteiro, que podemos nos vestir sem o comércio da seda, que podemos ter o essencial para nosso uso se nos contentarmos com aquilo que a terra depositou na superfície? Se o gênero humano tiver dado ouvidos a esse homem, saberá que tanto o cozinheiro quanto o soldado são supérfluos” (Ep. 90, 15-16)165.

Infere-se, portanto, que nem os estudos liberais, nem o conhecimento técnico, tampouco a literatura ou a filologia são artes de um sapiens. “As artes são auxiliares”, diz Sêneca, “devem cumprir o que prometem; a sabedoria é senhora e governadora: as artes servem à vida, a sabedoria é rainha” (Ep. 85, 32).166 E conclui, na mesma carta: “A arte do sábio é domesticar os males” (§ 41)167.

165

Hodie utrum tandem sapientiorem putas qui inuenit quemadmodum in immensam altitudinem crocum

latentibus fistulis exprimat, qui euripes subito aquarum impetu implet aut siccat et uersatilia cenationum laquearia ita coagmentat ut subinde alia facies atque alia succedat et totiens tecta quotiens fericula mutentur, an eum qui et aliis et sibi hoc monstrat, quam nihil nobis natura durum ac difficile imperauerit, posse nos habitare sine marmorario ac fabro, posse nos uestitos esse sine commercio sericorum, posse nos habere usibus nostris necessaria si contenti fuerimus iis quae terra posuit in summo? Quem si audire humanum genus uoluerit, tam superuacuum sciet sibi cocum esse quam militem.

166

Artes ministrae sunt, praestare debent quod promittunt; sapientia domina rectrixque est: artes

seruiunt uitae, sapientia imperat.

167

4.4) O ideal do sapiens. Os proficientes

“O sábio é quem vive segundo a natureza, isto é, segundo a razão”. Esta é, talvez, a mais célebre definição do sapiens para o estoicismo. Os estóicos não se cansam de lhe atribuir os mais diversos adjetivos e de cumulá-lo de qualidades; no estoicismo ortodoxo, o único homem bom (agathós) é o homem completamente sábio, e também o único possuidor da uirtus. A expressão uir bonus (“homem de bem”)168, inclusive, é encontrada em alternância com uir sapiens nas epístolas de Sêneca: “E, deste modo, grande parte da bondade consiste em querer ser bom. Sabes o que quero dizer com ‘bom’? Aquele que é perfeito, completo, que nenhuma força maior ou necessidade pode tornar mau” (Ep. 34, 3)169. Ora, o “homem perfeito e completo” do qual fala nosso filósofo não pode ser outro além do sapiens. Em outra carta, Sêneca, ao discorrer sobre a possibilidade de o sábio ser útil a outro sábio, assim afirma: “De fato, é de esperar que o sábio, por si, encontre outro sábio, já que por natureza todo bem é caro ao bom e, assim, todo homem de bem estima outro homem de bem como a si mesmo” (Ep. 109, 13. Grifos nossos)170

Sandbach, parafraseando os mestres da escola estóica, assim se pronuncia sobre o

sapiens:

“O homem sábio é um homem rico, não em dinheiro, mas no que é verdadeiramente valioso, as virtudes; é bonito, não em aparência física mas na do intelecto; é um homem livre, mesmo se escravo, porque é senhor dos próprios pensamentos. Ele sozinho érei: por ‘rei’, entende-se quem deve saber o que é bom e ruim. Ele sozinho é profeta, poeta, orador, general, porque só ele sabe como seguir essas profissões como elas devem ser seguidas para se chegar a resultados satisfatórios”171.

O sábio é, também, como “um promontório que permanece imóvel apesar do furor das vagas que se arremessam contra ele; experimenta uma verdadeira felicidade ao suportar tudo com coragem (...). Esse desprezo pela dor e pela morte constituem o

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