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1.2 A VÍTIMA E O SEU (NÃO) LUGAR NO SISTEMA PUNITIVO

1.2.3 A vítima, o direito penal e o direito processual penal

A atual divisão da ciência total do direito penal, incluindo-se a criminologia, avança por duas vertentes: a justiça criminal retributiva e justiça criminal restaurativa, pela análise de Berinstain (2000, p. 171).

A justiça criminal retributiva – cujo modelo estamos abordando desde o início do presente trabalho – corresponde ao direito penal aplicado desde o surgimento dos Estados Nacionais europeus, no momento em que o soberano ficou com o domínio do castigo, ou seja, o poder punitivo ficou a cargo do Estado e o castigo passou a ser imposto de maneira racional e não vingativa. A punição passou a ser natural, mas teria que ser originária do Estado, que “para que não houvesse o risco de voltar à barbárie, à vingança de sangue, o Estado teria de punir o maior número possível de crimes, de modo que as vítimas satisfizessem seu instinto vingativo.” (JOFFILY, 2011, p. 169).

A propósito, no que concerne à ação penal é oportuno mencionar dois fatores: o direito de punir, que é exclusividade do Estado e o exercício do direito de ação, que pode ser atribuído ao particular ou a qualquer do povo em caráter excepcional. (FERNANDES, 2007, p. 195). Conforme estabelece o artigo 100 do Código Penal:

Art. 100 A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.

§ 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça. § 2º - A ação de iniciativa privada é promovida mediante queixa do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo.

§ 3º - A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal.

§ 4º - No caso de morte do ofendido ou de ter sido declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou de prosseguir na ação passa ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.

Alguns ensaios legislativos mitigam esse princípio, conforme se vê nos seguintes exemplos. Nos crimes de menor potencial ofensivo, de competência dos Juizados Especiais Criminais, quando se tratar de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, ocorrendo a composição de danos entre o noticiado e o noticiante e homologada pelo juiz, o processo tem seu término, o acordo homologado acarretará a renúncia ao direito de queixa e representação (art. 74 da Lei nº 9.099/95). Nos crimes de ação penal pública condicionada à representação de competência dos Juizados Criminais, o Ministério Público somente poderá oferecer a denúncia se for suprida a condição de procedibilidade, ou seja, a representação por parte da vítima ou seu representante legal.

Quando se fala de vítima e ciência global do direito penal, não se pode deixar de mencionar uma das polêmicas do art. 594 do Código Penal, relacionada ao comportamento da vítima:

além de objecto da criminologia, o crime constitui também objecto de um conjunto de disciplinas – as ciências criminais em sentido amplo – onde, além da criminologia, ganham particular relevo o direito penal e a política criminal. Foi ao tentar englobar este conjunto de disciplinas numa unidade coerente e harmoniosa que v. Liszt criou o designativo, que se tornaria justamente célebre, de ciência global (total, universal, integral ou conjunta) do direito penal (DIAS; ANDRADE, 1997, p. 93).

Preliminarmente cumpre esclarecer que o art. 59 do Código Penal trata das circunstâncias judiciais, não podendo, no que se refere ao comportamento da vítima, ser confundida com a circuntância atenuante, transcrita no art. 65, III, c (“sob a influência de violenta emoção, provocado por ato injusto da vítima”), bem como com a causa de diminuição de pena, do homicídio “privilegiado” do art. 121, parágrafo 1º, (“sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima”), todos artigos do Código Penal. Embora todos eles revelem que a condição da vítima é importante tanto para a

4 Art. 59 do Código Penal: O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à

personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;

II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - [...]

configuração típica do crime como para a aplicação da pena, essa figura não representa verdadeira influência no caminho decisório penal.

Uma análise do art. 59, em caso de condenações por crimes sexuais, em parâmetros equivocados, poderia levar a sérias distorsões, considerando o comportamento da vítima. Nesses crimes, várias situações ocorrem sem a presença de testemunhas, além do depoimento da vítima que ocupa uma posição destacada no processo, o juiz no momento da aplicação da pena, nos termos do art. 59, analisa de maneira detalhada o comportamento da mulher vitimizada, estabelecendo um sistema de classificação das vítimas, considerando o seu comportamento para a ocorrência do crime, retratando “estereótipos ideologicamente constituídos nas relações de gênero tradicionalmente patriarcais, como também, carregam um cunho de subjetividade bastante profundo no que tange a observação de comportamento motivador do crime de estupro” (BARROS, 2014).

Percebe-se o “esquecimento” para com a vítima até mesmo na própria Constituição da República de 1988, pois a vítima é citada apenas no art. 245 da Constituição da República5. Cabe ressaltar que até o momento, tal artigo ainda não foi regulamentado, desde 2013 tramita no Senado o PLS 518/20136, com o propósito de estabelecer o Estatuto da Vítima e de seus Dependentes.

A proposta trata da necessidade de o poder público dar assistência às vítimas de crimes dolosos. No momento em que o Estado não toma as devidas providências para impedir que um crime gere graves consequências sociais, ele consequentemente terá que auxiliar e

5 Art. 245. A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e

dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito.

6 “Regulamenta o art. 245 da Constituição Federal, para estabelecer o estatuto da vítima de crimes e seus

dependentes, e dá outras providências; dispõe que recebida a ação penal, o juízo criminal determinará a comunicação da vítima ou, quando for o caso, de seus representantes legais ou herdeiros; no curso da ação penal, havendo fundados indícios de materialidade e autoria e comprovação de incapacidade da vítima para o desempenho de suas atividades habituais por mais de 15 (quinze) dias em decorrência do crime, ela poderá solicitar ao juiz criminal o arbitramento de alimentos provisionais que deverão ser pagos pelo réu; o valor dos alimentos provisionais será fixado conforme a necessidade da vítima e a capacidade econômica do réu; em caso de morte da vítima, os alimentos provisionais serão fixados em benefício de dependentes que comprovem dependência econômica; a autoridade policial deve esclarecer a vítima e seus dependentes a respeito do direito aos alimentos provisionais; a vítima ou, quando for o caso, seus representantes legais, herdeiros ou dependentes terão direito a conhecer todos os termos do processo, independentemente de se constituírem como assistentes da acusação, salvo decretação de segredo judicial; proferida condenação, o juiz fixará o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pela vítima; determina que o Estado prestará assistência às pessoas vitimadas por crime doloso que comprovem carência econômica; no caso de decisão de pronúncia ou decisão condenatória recorrível por crime que cause a morte da vítima, os dependentes carentes da vítima terão direito ao recebimento do valor de um salário mínimo mensal, por prazo não superior a cinco anos; dispõe que a vítima, seus dependentes e herdeiros, tem direito à duração razoável do processo criminal, podendo requerer preferência, solicitar medidas correicionais ou provocar o controle externo do Poder Judiciário; o texto da presente Lei deve ser afixado nas delegacias de polícia, fóruns, tribunais e sedes das defensorias e dos Ministérios Públicos, bem como ser divulgado nas páginas eletrônicas dos governos federal, distrital, estadual e municipal”. (SENADO FEDERAL 2013).

socorrer a vítima e seus dependentes. O PLS 518/2013 estabelece o direito da vítima e de seus dependentes de receberem alimentos provisionais do réu, no caso de crime que causa incapacidade para o trabalho superior a 15 dias. Comprovados indícios de materialidade e autoria, a vítima ou seus dependentes poderão solicitar diretamente ao juízo criminal a fixação de alimentos provisionais para sua subsistência, observada a capacidade econômica do réu. A proposta também assegura que dependentes carentes de vítima fatal de crime recebam benefício assistencial no valor de um salário mínimo, caso comprovada a carência econômica (INFODIREITO, 2014).

A participação da vítima na resolução dos conflitos no Brasil teve forte impulso com a criação dos Juizados Especiais Criminais (JECrim) 7 , previstos no ordenamento

constitucional (Art. 98, I, CF) e regulamentado pela Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, dentre as outras poucas vezes que a vítima teve atenção do legislador podemos citar em as alterações de 2008 do Código de processo penal, além daquela constante no art. 268 do CPP, que já estabelecia a possibilidade de o ofendido, ou seu representante, figurar como assistente do Ministério Público, mas dava-lhe a tônica de que esse interesse seria sempre “econômico”.

Com relação ao papel da vítima no sistema de processo penal acusatório, García (2009) menciona que a Organização das Nações Unidas (ONU), sintetizou um regramento de condições gerais para proteção as vítimas de crime e abuso de poder nos sistemas processuais modernos, dentre elas a Declaração sobre os Princípios Fundamentais Justiça para as Vítimas de Crime e Abuso de Poder (Resolução nº 40/34 da Assembleia Geral) e a Declaração de Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder (Resolução nº 1989/57).