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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ ESCOLA DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS

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POLÍTICAS PÚBLICAS

JONATHAN SERPA SÁ

POR UMA PARTICIPAÇÃO MAIS EFETIVA DA VÍTIMA NOS PROCESSOS DE COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS

COMO EXPRESSÃO DOS DIREITOS HUMANOS

CURITIBA 2017

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Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR

Biblioteca Central Sá, Jonathan Serpa

S111p Por uma participação mais efetiva da vítima nos processos de competência 2017 dos juizados especiais criminais como expressão dos direitos humanos /

Jonathan Serpa Sá ; orientador, Cezar Bueno de Lima. – 2017. 134 p. ; 30 cm

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2017

Bibliografia: p. 122-134

1. Direitos humanos. 2. Política pública. 3. Juizados especiais criminais. 4. Educação. 5. Vítima. I. Lima, Cezar Bueno de. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas. III. Título.

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POR UMA PARTICIPAÇÃO MAIS EFETIVA DA VÍTIMA NOS PROCESSOS DE COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS

COMO EXPRESSÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas

Orientador: Professor Doutor Cezar Bueno de Lima

CURITIBA 2017

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À minha querida Priscilla, pelo sorriso, pela presença, pela ligação, pelo afago, pelo entusiasmo, e pelo amor que não tem fim.

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Agradeço a minha mãe Lêda, o meu grande exemplo, por toda a dedicação, sacrifício, amor e ensinamentos, sempre presente com uma palavra de incentivo.

Agradeço ao meu pai D’Artagnan que há muito se foi, mas sempre presente no meu coração por tudo que representou para mim.

Agradeço as minhas tias Horminda e Mariquita, que não estão mais aqui, mas marcaram a minha vida pela sua generosidade.

Agradeço a minha família: sobrinhos, cunhadas e aos meus irmãos - Catanduva, D’Artagnan, Joana d’Arc, Treville, Wolney e Sávio - os quais em todos os momentos estiveram ao meu lado e sempre me incentivaram a tudo que me propus.

Agradeço a minha sogra Laura, e aos cunhados Silvia e Gabriel pela receptividade e a convivência com muita alegria.

Agradeço a Wolney e D’Artagnan pela preocupação, incentivo, companheirismo e apoio de todas as ordens, além de irmãos foram “pais” para mim.

Agradeço a Joana d’Arc, apesar da distância de hoje, foi fundamental na minha formação.

Agradeço ao meu orientador e amigo Professor Cezar Bueno, além da orientação e dos ensinamentos passados, por ser um exemplo de generosidade e competência.

Agradeço às Professoras Maria Cecília Pilla e Katie Arguelo pela gentileza e pelo muito com que contribuíram para o presente trabalho.

Agradeço a todos os Professores e as Professoras do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Direitos Humanos e Políticas Públicas pelos ensinamentos e momentos compartilhados.

Agradeço a todos os meus colegas do 14º Juizado de Curitiba, nas pessoas de Lubomira Mihockiy e Leandro Schwind e a Juíza de Direito, Dra. Adriana Ayres Ferreira, pelo apoio incondicional e sem limites.

Agradeço aos amigos Dr. Athos Pereira Jorge Junior e Dra. Wilma Sottomaior, primeiro pela amizade e segundo por terem sido os idealizadores de um modelo de Juizado Especial Criminal democrático, igualitário e voltado aos Direitos Humanos.

Agradeço aos amigos, Francisco Cunha Neto, Guilherme Roman Borges, Leonardo Bechara, Patrícia Piasecki e Ideraldo Appi pela amizade sempre sincera.

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Agradeço à Secretária do PPGDH, Maria Braga, sempre prestativa e atenciosa.

Por fim, agradeço a minha amada Priscilla Placha Sá, que além de companheira sempre presente, foi minha incentivadora, minha professora, minha “co-orientadora”, sempre com uma solução, uma alternativa ou um simples olhar, que me ajuda a superar todas as dificuldades não somente nesta etapa de Mestrado, mas em toda a nossa caminhada.

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“Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos.”

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âmbito dos Juizados Especiais Criminais a partir de uma perspectiva dos direitos humanos. Utilizando-se de uma revisão bibliográfica sistemática, com natureza qualitativa e método indutivo, inserida numa perspectiva interdisciplinar, considerou três objetivos específicos dentro do tema proposto. Primeiramente, procurou descrever o contexto sócio-histórico, a constituição e as características de um modelo retributivo punitivista no qual está inserido o nosso sistema jurídico-penal, em que a vítima foi lançada para fora do âmbito de decisão e o seu conflito foi sequestrado pelo Estado. A vítima, nesse contexto, foi abordada a partir da ciência conjunta do direito penal. Num segundo momento, situando o locus de análise da temática proposta, pretendeu-se apresentar os Juizados Especiais Criminais passando por sua previsão constitucional e sua regulamentação ordinária, bem como, pelos seus critérios norteadores e institutos, mas, sobretudo, reconhecendo suas virtudes e vicissitudes decorrentes das permanências do modelo vertical e hierárquico. Permanências estas que mantiveram o paradigma punitivista e a vítima fora do processo. Posteriormente, lançou-se a proposta de que seria necessário uma reforma do ensino jurídico calcada no paradigma dos direitos humanos e da legislação de regência a partir da ideia da democracia deliberativa, tudo com vista a efetivar a participação da vítima nos Juizados Especiais Criminais, na forma como já vem acontecendo mediante a adoção de experiências isoladas que podem ser classificadas como práticas restaurativas.

Palavras-chave: Direitos Humanos. Políticas Públicas. Educação. Vítima. Juizados

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at the ‘Juizados Especiais Criminais’ ambit, from a human rights perspective. Using a systematic bibliographic review, with qualitative nature and inductive method, inserted in an interdisciplinary perspective, it considered three specific objectives within the proposed theme. Firstly, it sought to describe the socio-historical context, the constitution and the characteristics of a retributive and punitive model in which is inserted our juridical-criminal system, wherein the victim has been launched out of the decision-making sphere and his conflict was kidnapped by the State. The victim, in this context, was approached from the joint science of criminal law. In a second moment, situating the analysys locus of the proposed theme, it was intended to present the ‘Juizados Especiais Criminais’ passing through its constitutional forecast and its ordinary regulation, as well as its guiding criteria and institutes, but above all, recognizing its virtues and its vicissitudes arising from the vertical and hierarchical model maintenance. Persistences that have kept the punitive paradigm and the victim out of the process. Subsequently, it has been launched a proposal arguing that it is necessary to reform legal education based on the human rights paradigm and regulative legislation from the idea of deliberative democracy, aiming to effect the victim’s participation at the ‘Juizados Especiais Criminais’, as the same way that is already happening through the adoption of isolated experiences that can be classified as restorative practices.

Keywords: Human Rights. Public Policies. Education. Victim. ‘Juizados Especiais

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INTRODUÇÃO 11

1. A VÍTIMA NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO 14

1.1 O PODER PUNITIVO E O CONFISCO DA VÍTIMA 15

1.2 A VÍTIMA E O SEU (NÃO) LUGAR NO SISTEMA PUNITIVO 25

1.2.1 A vítima, a criminologia e vitimologia 26

1.2.2 A vítima e a política criminal 31

1.2.3 A vítima, o direito penal e o direito processual penal 35

1.3 A EXCLUSÃO DA VÍTIMA DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO 38

1.3.1 A vítima como refém de um espetáculo midiático 39

1.3.2 O hiperencarceramento como consequência da exclusão da vítima 44 1.3.2.1 Faixas de penalização e as consequências jurídico-penais 45

1.3.2.2 Inobservância do princípio da proporcionalidade 47

1.3.2.3 Esgotamento na atenção aos delitos graves com violência à pessoa 49

2. DESAFIOS E POSSIBILIDADES DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS EM RELAÇÃO AO PROTAGONISMO DA VÍTIMA: CONTEXTO POLÍTICO,

JURÍDICO E SOCIAL 51

2.1 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS 51

2.2 JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS: CRITÉRIOS ORIENTADORES 54

2.3 INFRAÇÕES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO 55

2.4 TERMO CIRCUNSTANCIADO 59

2.5 JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS COMO ESPAÇOS SOCIOJURÍDICOS DE

CONSENSO NA BUSCA PELA SOLUÇÃO DOS CONFLITOS 63

2.5. 1 Composição civil 63

2.5.2 Transação penal 66

2.5.3 Suspensão condicional do processo 72

2.6 ESTUDO DE CASO DO JECRIM DE CURITIBA: A EXPERIÊNCIA DE

PROTAGONISMO DA VÍTIMA 75

2.7 JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS NA ENCRUZILHADA: VICISSITUDES E

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3.1 UMA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS COMO POLÍTICA PÚBLICA

PARA REVOLUCIONAR O ENSINO JURÍDICO 85

3.1.1 A formação dos atores processuais fundada no modelo punitivo 85

3.1.2. O ensino jurídico a partir de um modelo democrático de aprendizado e de

justiça 90

3.1.3 Educação em Diretos Humanos como política pública inerente ao Estado

democrático de Direito 97

3.2 A DELIBERAÇÃO COMO ALTERNATIVA LEGISLATIVA PARA

VIABILIZAR A EFETIVA PARTICIPAÇÃO DA VÍTIMA NOS JUIZADOS

ESPECIAIS CRIMINAIS 100

3.2.1 O caso da violência doméstica, o JECrim e a Lei Maria da Penha 102

3.2.2 A Democracia Deliberativa como alternativa para o Poder Legislativo adotar

medidas para efetivar a participação da vítima 107

3.2.3 A utilização da Democracia Deliberativa para eventuais mudanças

legislativas na Lei nº 9.099/95 111

3.3 A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO FORMA DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA

DA VÍTIMA NA RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS 112

CONSIDERAÇÕES FINAIS 119

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O presente trabalho versa sobre a efetiva participação da vítima no sistema penal brasileiro, mais especificamente nos Juizados Especiais Criminais, que foram idealizados pelo legislador para representar a construção de espaços democráticos e de um modelo de justiça que se distanciasse concretamente do modo tradicional que oferece uma solução pronta, hierarquizada e punitivista e sem a participação da vítima.

Com o propósito de desenvolver essa temática o texto foi estruturado em três capítulos.

No primeiro capítulo, pretende-se apontar que o modelo retributivo-punitivista, cristalizado, também no sistema de justiça criminal brasileiro, não é o melhor modelo a ser adotado. Tal afirmação para se justificar porque busca culpados sempre e pune incessantemente, dados que se evidenciam daquilo que se coletou como sendo suas características e decorrências, a partir de suas heranças de matriz eurocêntrica.

O poder punitivo – com essa matriz – surge diante do confisco da vítima do processo, quando o rei, o senhor, ou quem fazia às vezes de autoridade substituía a vítima, que deixava de ser a ofendida principal passando a figurar em segundo plano. Essa subtração da vítima viabiliza um modelo no qual vale a decisão pública ou estatal que é vertical e hierárquica; decisão que não consegue resolver as lides e apenas põe fim ao processo, inferiorizando a vítima e transformando-a em objeto de dominação. No entanto, conforme se pretende indicar, com o enfraquecimento do Império Romano, a consensualidade esteve presente na Europa até a consolidação dos Estados absolutistas. Mas o século XIII circunscreveu uma nova visão do poder punitivo, inquisitorial, centralizado e burocrático redundando, mais uma vez, na expropriação da vítima do conflito em nome do Estado.

Também se quer considerar – em momentos mais contemporâneos – a consequente exclusão da vítima do modelo que resultou não somente no seu abandono, mas igualmente a sua inserção no discurso legitimador (tanto na esfera jurídica, quanto na mídia) como forma de recrudescer o sistema penal, ocasionando assim um alto índice de encarceramento.

Ainda em tal capítulo lança-se um olhar sobre qual o papel que a vítima ocupa num transcurso histórico-jurídico no sistema penal brasileiro. Para tanto, fez-se uma análise da representação da vítima, seu conceito e sua pretensa definição nas ciências criminais e na vitimologia.

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âmbito do sistema de justiça criminal brasileiro, são os Juizados Especiais Criminais, a proposta é a de localizar a participação da vítima neste recorte, a partir de sua regulamentação infraconstitucional e das inovações trazidas pela Lei 9.099/95, dentre as quais: a criação do termo circunstanciado; a competência para julgar somente crimes de menor potencial ofensivo; os critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade como norteadores; as medidas despenalizadoras (composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo).

Nesse capítulo, também se pretendeu – a partir da experiência profissional do pesquisador – expor como relato de caso a institucionalidade do JECrim de Curitiba, entremeada por frutos positivos e também por adversidades da implementação e operacionalização da Lei 9.099/95.

No terceiro e último capítulo, o objetivo é apresentar os aspectos da formação dos atores jurídicos, por meio das faculdades e cursos de direito com suas mazelas decorrentes de um modelo inserido numa perspectiva eurocêntrica, positivista e secularizada. Observa-se ainda, que são deixadas de lado a complexidade dos conflitos e das demandas oriundas de uma sociedade pós-moderna e plural.

Como hipótese, para efetivar a participação da vítima, pretende-se considerar, nesse capítulo final, que a educação em Direitos Humanos para os atores jurídicos, com reflexos no âmbito do sistema de justiça, tendo como locus, especialmente, os Juizados Especiais Criminais pode se constituir num ponto de viragem. A premissa que conduz a linha derradeira do texto parece admitir que a educação em direitos humanos é a forma de revolucionar a postura e a compreensão dos atores do Poder Judiciário brasileiro e a mutação do paradigma punitivo-retribucionista. Associando-se a isso considera-se que as alterações legislativas decorrentes de deliberações numa arena democrática podem tornar regra as práticas restaurativas que já são feitas de maneira empírica e isolada, em experiências locais.

O pesquisador, com graduação na área do direito, é funcionário público concursado do Poder Judiciário do Estado do Paraná, ocupante do cargo de Secretário dos Juizados Especiais, desde o ano de 1997; tendo exercido também a função de Coordenador das audiências criminais. Atualmente é Chefe de Secretaria do 14o Juizado Especial Cível e Criminal de Curitiba. Esse locus permitiu acompanhar a implantação dos Juizados Especiais Criminais, no Estado do Paraná, especialmente, de Curitiba, mas, sobretudo, observar as resistências tanto das instâncias de poder, quanto dos

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criminal, como também os desafios em conceber um novo paradigma de justiça e sua mutação da matriz retributiva para a consensual.

A pesquisa utiliza a coleta de material por meio de pesquisa bibliográfica. Por ser um mestrado de natureza interdisciplinar, além do estudo das referências relacionados com as Ciências Criminais, mais ligadas com o Direito, foram utilizadas também referências (dentre livros e artigos científicos) de outras áreas, em particular das Ciências Sociais, História e Direitos Humanos, que tratam da temática objeto da pesquisa, cuja natureza foi qualitativa e valeu-se do método de abordagem indutivo:

a pesquisa bibliográfica é elaborada com base em material já publicado. Tradicionalmente, esta modalidade de pesquisa inclui material impresso, como livros, revistas, jornais, teses, dissertações e Anais de eventos científicos. Todavia, em virtude da disseminação de novos formatos de informação, estas pesquisas passaram a incluir outros tipos de fontes, como discos, fitas magnéticas, CDs, bem como o material disponibilizado na Internet (GIL, 2010, p. 29).

O objetivo geral procura indicar que é necessária a construção de um lugar para a vítima e sua efetiva participação no âmbito dos casos de competência dos Juizados Especiais Criminais, a partir da educação orientada pelos direitos humanos.

Os objetivos específicos pretendem: 1) traçar as características do poder punitivo, com a consequente exclusão da vítima dos processos criminais, tendo como locus os Juizados Especiais Criminais; 2) analisar a estrutura dos Juizados Especiais Criminais, em relação à participação da vítima em um contexto político, jurídico e social; e 3) indicar a necessidade de consolidar a participação da vítima no processo penal brasileiro, especificamente nos processos de competências do Juizados Especiais Criminais e sugerir formas de seu desenvolvimento a partir da promoção dos direitos humanos e da criação de políticas públicas.

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1. A VÍTIMA NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO

Um dos objetivos deste trabalho é propor, à luz da defesa e promoção dos direitos humanos um novo paradigma de “justiça”, no qual o modelo punitivista seja substituído por outro em que a vítima passe a ocupar também um novo lugar no sistema de justiça, tendo como locus, especialmente, os Juizados Especiais Criminais1. Um conceito de vítima exclusivo para o campo jurídico-penal é o mencionado por Barros (2008), inserido na Declaração da ONU, o qual inclui como fator vitimizador somente a conduta tipificada como ilícito penal, possuindo um caráter amplo, incluindo a pessoa física vitimada na esfera de garantia do bem jurídico resguardado pela legislação penal, como também os familiares ou pessoas dependentes das vítimas e outros que tenham sofridos danos ao auxiliar a vítima:

a declaração da ONU, denominada Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Delitos e Abuso de Poder, ateve-se, exclusivamente, em dois tipos específicos de vítimas: as vítimas de delito e as vítimas de abuso de poder – compreendendo estas as pessoas que tenham sofrido danos não reconhecidos pelo legislador nacional como delito, mas que contrariam as normas internacionais a respeito dos direitos humanos -, conforme texto expresso no inciso 18 da referida declaração. Quanto as vítimas de delito, a declaração da ONU assim as conceitua: ‘1 – Entende-se por vítimas as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, como consequência de ações ou omissões que violem a legislação penal vigente nos Estados-membros, incluída a que prescreve abuso criminal de poder. 2 – (...) Na expressão vítima estão incluídos também, quando apropriado, os familiares ou pessoas dependentes que tenham relação imediata com a vítima e as pessoas que tenham sofrido danos ao intervir para dar assistência à vítima em perigo ou para prevenir a ação danificadora (BARROS, 2008, p. 56-57).

A escolha desse recorte justifica-se pela perspectiva de que os Juizados Especiais Criminais, locus eleito para análise, podem representar a um só tempo a construção de espaços democráticos e a instauração de um modelo de justiça que se distancie efetivamente do modo tradicional, que oferece uma solução pronta, hierarquizada e punitivista. Uma das propostas é a de que neste espaço – Juizados Especiais Criminais – a vítima consiga participar efetivamente da tomada de decisões; o que poderia esmorecer a representação de que é mera participante de um evento no qual o Estado é quem sabe e quem arbitra a melhor decisão.

1 Os Juizados Especiais Criminais e vários de seus aspectos serão tratados no capítulo 2. Desde logo, entretanto,

importante anotar que se caracterizam – quanto a sua competência material – pelas denominadas infrações de menor potencial ofensivo, que, segundo a definição da própria da Lei Federal nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, em sua redação atual, são as contravenções penais e os crimes cuja pena máxima prevista em lei não seja superior a dois anos.

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1.1 O PODER PUNITIVO E O CONFISCO DA VÍTIMA

A democracia, como adjetivo que se possa atribuir à intervenção do sistema de responsabilização penal, atualmente é palavra fácil nos discursos, mas a realidade do sistema penal brasileiro é totalmente outra. Nosso atual sistema está estruturado de forma inquisitória, inviabilizando um modelo amparado pelas políticas públicas adequadas e pensado a partir de e orientado para os direitos humanos:

mesmo que o discurso corrente entre os profissionais do Direito afirme a democratização da Justiça Penal, na prática observa-se uma forte resistência do campo jurídico em assumir a sua responsabilidade politica na consolidação democrática. Aqui vale a inquietação de Quartim de Moraes (2001, p. 16): “Se há tantos ‘democratas’, por que há tão pouca democracia? ”. Certamente porque no cotidiano jurídico o significado do termo “democracia” ou foi reduzido ou adequou-se aos interesadequou-ses liberais (PASTANA, 2009a, p. 121).

O sistema punitivo parece buscar culpados sempre e punir incessantemente, ocasionando um alto índice de encarceramento, além de não atender às necessidades da vítima. O modelo punitivo tem como característica uma decisão verticalizada, hierárquica e autoritária.

Ainda que se deva atentar aos riscos da atribuição de características a partir de “momentos históricos”, especialmente porque a narrativa que se toma como ponto de partida nem sempre considera a multiplicidade nem de fatores nem de pontos de vista, parece ser possível admitir que – quando se fala de “poder punitivo”, ao menos sob a ótica dos penalistas e criminólogos – tem sido marcados alguns momentos para o seu ápice ou apogeu. Para tais pensadores essas ondas punitivistas, constituem, em certa medida, as matrizes ibéricas do sistema penal instalado em terra brasilis (BATISTA, 2002) a partir do “descobrimento”.

Não se poderia deixar de colher uma advertência do campo da história: momentos como esses parecem ser transpostos como espécie de uma “herança” da Europa para a América recém descoberta sem maiores particularidades. Nesse ponto, então, importa reconhecer que nem sempre a grande narrativa está atenta ao que possa ter sido esse descobrimento e o aporte cultural que ensejou (LIMA, 1998, p. 6-7). Todavia, a tomada desse ponto de partida é importante porque ela formata uma verdadeira cultura em torno do que é o poder punitivo, suas características e de como influenciou no pensamento jurídico-penal brasileiro.

O poder punitivo apareceu com muita força, no momento em que Roma passou da República ao Império, adotando uma forma de exército, hierarquizada, verticalizada, vindo a

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conquistar quase toda a Europa. O declínio de Roma e o desaparecimento do poder punitivo aconteceu quando os bárbaros com suas sociedades horizontais ocuparam os territórios (ZAFFARONI, 2013, p. 20).

Tal poder, como ainda se concebe, teria surgido diante do confisco da vítima do processo, “quando o cacique, rei, senhor, autoridade ou quem quer que seja substitui a vítima, a confisca” (ZAFFARONI, 2013, p. 18), passando ele (enquanto “autoridade”) a ser o ofendido “principal”, deixando a vítima de lado, ou, ao menos, em segundo plano.

O confisco da vítima transmudou um organismo defeituoso de solução de conflitos em uma decisão vertical, de cima para baixo, que não conseguia resolver as lides, convertendo os atos de conhecimento científico em atos de poder sobre as coisas. Tal confisco do conflito fez a vítima inferiorizar-se, transformando-a em objeto dominado. Existem várias razões para demonstrar a irracionalidade do poder punitivo praticado de forma arbitrária e seletiva, porém um dos exemplos de sua manutenção durante séculos é a sua vinculação com a maneira do saber da civilização técnico-científica (ZAFFARONI et al., 2003, p. 501):

a civilização técnico-científica estabeleceu-se em uma concepção linear, progressiva e infinita do tempo como curso linear projetado para o infinito. Essa concepção temporal veio acompanhada das medidas mercantilistas, do romantismo (progresso sem limites), da ideia de que, com a técnica, o ser humano pode vencer qualquer limite, tudo isso em gestação durante o processo de expansão do poder técnico-científico pelo planeta (ZAFFARONI et al., 2003, p. 502).

Com o esfacelamento do Império Romano, o modelo de solução de conflitos teve seu lugar, que prevaleceu na Europa até a consolidação dos Estados absolutistas, considerando “[...] que a ofensa dava lugar à inimizade entre ofensor (e sua família) e ofendido (e sua família), podendo esta ser solucionada através da composição, pelo duelo ou, ainda, pela ordália (julgamento de Deus)” (JOFFILY, 2011, p. 29):

na alta Idade Média não havia muito espaço para um sistema de punição estatal. Tanto a lei do feudo quanto a pena pecuniária (penance) constituíam essencialmente um direito que regulava as relações entre iguais em status e em bens.

[...] as relações entre o guerreiro senhor feudal e seus servos tinham um caráter tradicional, correspondente a uma determinada relação legal. Estas condições tendiam a prevenir tensões sociais e prover coesão, características desse período (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 23).

O poder punitivo que estava se formando não era nem etéreo, nem ontológico, ele estava ligado profundamente como meio de concentração de capital, modelo em andamento no Antigo Regime, ou seja, “[...] a crise do sistema de exploração feudal, a expulsão dos

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camponeses, o crescimento das cidades e mercados, novas e crescentes necessidades de renda, de produtos especiais, de armamentos e mercadorias para a empresa guerreira, burocracias nascentes, manufaturadas, comércio” (BATISTA, 2011, p. 32). Situações essas que fariam surgir uma nova classe social: a burguesia, formada por todos aqueles setores dos interstícios entre o clero, a nobreza e os pobres” (BATISTA, 2011, p. 32-33).

Tal poder renasce nos séculos XII e XIII quando os europeus começaram a verticalizar as sociedades, adquirindo estruturas corporativas com a formação de exércitos, o que viablizou a colonização de boa parte do planeta (ZAFFARONI, 2013, p. 22).

O século XIII foi importante para delimitar uma nova visão do poder punitivo, estabelecido a partir de uma relação entre as noções de delito e castigo que formaria os conceitos de infração e pena pública. Essa concepção punitiva, inquisitorial, centralizada e burocrática culminou na expropriação do conflito em nome do Estado. Desde então, a vítima é afastada e passa a ocupar um lugar sem importância frente a um poder que se sustenta pelo seu próprio método: não resolve o conflito, porém coloca em andamento um mecanismo que vai unir de forma simbólica culpa e castigo. Tal mecanismo veio a formar um corpo “profissional” permanente, criado na interseção do jurídico com o religioso (BATISTA, 2011, p. 31).

é natural também que esse poder, agora exercido por expertos, necessite de criar o seu “outro”, o objetificável, o corpo humano, para qual se convergirá o método. As bruxas, representando as tentativas de controle dos ritos de fertilidade, os partos, enfim o poder feminino, estará no processo de objetificação, como estiveram as “ideias erradas” dos hereges. As pugnas pela hegemonia e centralização da Igreja Católica vão tratar de primeiro de desumanizar os hereges e as bruxas, para depois demonizá-los. É por isso que Zaffaroni trabalha a inquisição como primeiro discurso criminológico moderno: serão estudadas as causas do mal, as formas em que se apresenta e também o método para combatê-lo. O importante é seguir o curso dos discursos para observar as permanências dessa maneira de pensar e agir até a criminologia dos dias de hoje. Nada mais parecido com a figura do herege do que o traficante que quer dispor da alma das nossas crianças como disse Nilo Batista (BATISTA, 2011, p. 32).

Um pouco adiante, instalar-se-ia um marco nas ciências penais, como obra conjunta de direito penal, processo penal, dogmática e criminologia: o Malleus Maleficarum. A obra demonológica de autoria de Henrich Kramer e James Sprenger, elaborada ao final do século XV, que colocaria em evidência o uso do poder punitivo em nome de mais uma emergência maligna, agora representada pelas mulheres. Isso autorizava mais um massacre no transcurso de 800 anos de repetição de maldades por meio do poder punitivo que se auto-justificava para eliminar medos e males que jamais conseguiu exterminar (ZAFFARONI, 2013, p. 31-34).

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No que se refere, propriamente, ao Brasil “recém-descoberto”, a estruturação do poder punitivo esteve associada aqui com as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), as Cartas Régias para a Colônia, as Bulas Papais, até que viesse o primeiro Código Criminal do Império. Desde, a Coloônia, percebe-se uma distinção operativa por meio do exercício do poder punitivo:

O tratamento penal diferente dado ao colonizador e ao colonizado é próprio, inclusive, do velho colonialismo. A Inquisição ibérica na América concentrava sua ação repressiva predominantemente no controle social dos colonizadores, pois os colonizados eram controlados por outros meios. Essa tendência continuou opeando na história, pois é claro que uma coisa é o controle interno da empresa colonizadora e outra é a que esta exerce sobre a população submetida no território ocupado. (ZAFFARONI, 2013, p. 372).

Nesse sentido, importa ressaltar, contudo, que a organização interna do Brasil ainda era bastante precária e instituída num modelo que associava o público e o privado, convivia com a escravidão e com resquícios de organização feudal, o que, resultaria em uma característica que marcaria – mesmo séculos adiante – muitos dos conflitos do quais se tratará adiante, especialmente, no Capítulo 2 desta pesquisa, que são os decorrentes de um direito penal doméstico (ZAFFARONI et al., 2003, p. 411-420), no qual a violência contra a mulher e a sua incapacidade de fala ainda são frequentes.

No século XVIII, mais precisamente em 1764, Cesare Bonesana – Marquês de Beccaria, um aristocrata italiano, com 24 anos de idade, escreveu o livro "Dos Delitos e das Penas", que marcaria as ciências penais e refletiria tanto na Constituição brasileira de 1824 como no Código Criminal de 1832, cuja escrita sob a influência do pensamento iluminista, propunha mudanças referentes às garantias individuais e aos limites do poder punitivo:

foi o Marquês de Beccaria que em 1764 – nessa primeira edição, sem subscrever sua obra – produziu a primeira exposição global e articulada entre política criminal, direito penal e processo penal, em seu livro Dos delitos e das penas. Tendo o contratualismo como base ideológica, e o contrato social e o utilitarismo como pressupostos, Beccaria faz uma defesa da coexistência, do Estado sem conflito, presente na maneira de pensar de Hobbes, Locke e Rousseau, com todas as suas nuances. A pena aqui, se contrapõe ao sacrifício da liberdade. O Juiz deverá subordinar-se a à lei, e não ao soberano. A ideia de dano social (incólumes até os dias de hoje) são elementos fundamentais dessa teoria (BATISTA, 2011, p. 38).

Com todos os obstáculos para sua epóca, Beccaria atacava a violência e a arbitrariedade da justiça. A obra "Dos Delitos e das Penas” foi fundamental para mudanças nos ordenamentos jurídicos em vários países, propondo a abolição da tortura e da pena de morte, sendo usada, inclusive, por Voltaire na luta contra a morte arbitrária do protestante

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Jean Calas nas últimas decádas do século XVIII, na França. Beccaria propunha um padrão democrático de justiça, em seu sistema, rejeitava a tortura o castigo cruel e a própria pena de morte, como regra, numa atitude extraordinária para a época (HUNT, 2009, p. 81).

A nova linguagem do sentimento, valorizada pelo Marquês de Beccaria, pois considerava que a pena de morte só podia ser “[...] perniciosa para a sociedade, pelo exemplo de barbárie que proporciona” (HUNT, 2009, p. 81). Beccaria justificava a sua intervenção contra o sistema na seguinte esperança: “se eu contribuir para salvar da agonia da morte uma vítima infeliz da tirania, ou da ignorância igualmente fatal, a sua benção e lágrimas de êxtase serão para mim um consolo suficiente para o desprezo de toda a humanidade” (HUNT, 2009, p. 81).

Como frisa Zaffaroni, o “famoso livrinho” (referindo-se a Dos delitos e das Penas), foi uma bofetada intelectual contudente no poder punitivo da nobreza, além de tornar público os julgamentos secretos (ZAFFARONI, 2013, p. 60). Mas a transição dos julgamentos secretos para os públicos não fez desaparecer a tortura, pois o acusado ainda carregaria consigo a “verdade”, que não mais ocuparia o lugar central. Todavia, segue atravessando o sistema de justiça criminal porque a interferência no corpo do acusado para a obtenção dessa “verdade” permanece sendo um ritual político (FOUCAULT, 2005, p. 34-44), que aplaca, especialmente, a consciência do julgador.

Com o fim dos suplícios, os magistrados seriam liberados do vil ofício de “castigador”, não tinham mais o domínio sobre o corpo, o juiz estava descompromissado de ser simplesmente aquele que castigava, pois a punição não era mais sobre o corpo, era sobre a alma. “À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. Mably formulou o princípio decisivo: ‘Que o castigo, se assim possa exprimir, fira mais alma do que o corpo’.” (FOUCAULT, 2005, p. 18):

[...] desde que funciona o sistema penal – o definido pelos grandes códigos dos séculos XVIII e XIX – processo penal levou os juízes a julgar coisa bem diversa do que crimes: foram levados em suas sentenças a fazer coisa diferente do que julgar; e o poder de julgar foi, em parte, transferido a instâncias que não as dos juízes de infração (FOUCAULT, 2005, p. 12).

Foram inseridos novos métodos e princípios para regularizar a arte de castigar, equalizando seu exercício, diminuindo por consequência os custos econômicos e políticos, aumentando por sua vez a eficácia, ou seja, foi constituída uma nova economia e uma nova tecnologia do poder de punir (FOUCAULT, 2005, p. 76).

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A ideia de Foucault é resumida por Batista:

[...] é Foucault quem aponta a crítica das Luzes ao modelo inquisitorial através dos conceitos de oficialidade, imparcialidade, presteza, imparcialidade, presteza e publicidade. O utilitarismo vai propor utilidade e eficiência. As codificações deverão ser limitadoras e fundamentadoras, castigo vai ser vai ser racionalizado e o objetivo não é vingar, nem punir menos, mais punir melhor. Bentham será o grande intelectual orgânico do poder punitivo burguês, militante em várias áreas do conhecimento, aplicando o industrialismo ã prisão e ao castigo. O Panopticum, analisado por Foucault, seria uma espécie de símbolo máximo dessa maneira de pensar (BATISTA, 2011, p. 39).

A tortura pública foi desaparecendo dos ordenamentos, a punição se extinguindo, porém, ocorre uma transição das penas corporais para as privativas de liberdade, onde o poder punitivo reina absoluto:

no fim do século XVIII e começo do século XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai se extinguindo. Nessa transformação, misturam-se dois processos. Não tiveram nem a mesma cronologia nem as razões de ser. De um lado, a supressão do espetáculo punitivo. O cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser apenas um novo ato de procedimento de administração. A confissão pública dos crimes tinha sido abolida na França pela primeira vez em 1791, depois novamente em 1830 após ter sido restabelecida por breve tempo; o pelourinho foi supresso em 1789; a Inglaterra aboliu-o em 1837 (FOUCAULT, 2005, p. 12).

Numa pretensa história universal do Brasil, o punitivismo não foi somente exercido contra os negros, mas contra os menos favorecidos; desde o tempo dos primeiros colonizadores que aqui chegaram, sendo que os povos índígenas foram suas primeiras vítimas (GALEANO, 2011, p. 45-53). Embora, não se possa reduzir o enfrentamento entre os oprimidos (que aqui estavam) e os opressores (que aqui chegaram) (LIMA, 1998, p. 14), como também desconsiderar em que condições e por quais razões tal extermínio foi levado a cabo (LIMA, 1998, p. 29-30).

procuramos, portanto, demonstrar elementos de permanência, ao longo da História. É importante atentar para a complexidade de elementos que se mantêm, com outras roupagens, ao longo de novos períodos históricos. No que diz respeito à acumulação do Poder Punitivo, essas imanências são ainda mais fortes e vão constituir, em paralelo às instituições oficiais, toda uma estrutura informal, financiada pelas classes dominantes do campo e da cidade, possuidoras de armas, com poder de punir, matar e dar à estrutura social a feição que lhes interessa (BARROS, 2006, p. 62).

Esses elementos de permanência, em termos de estruturação e concretude do poder punitivo sobre pessoas e não sobre fatos delitivos são representados pela seletividade secundária evidentemente operada pelas agências de controle penal como já denunciara a

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criminologia da reação social, por meio do labelling aproach e das teorias do etiquetamento (ANÍTUA, 2005, p. 363-370), que indicam um redirecionamento do poder punitivo para um grupo: a juventude periférica e marginalizada dos grandes centros urbanos (ZAFFARONI, 2012, p. 309). Tal como confirmam as estatísticas prisionais que superlotam penitenciárias pelos estereótipos criminais (ZAFFARONI et al., 2003, p. 43-47).

Os negros parecem ter sido personificados como os desviados, os pobres, os excluídos da educação, do mercado de trabalho intelectualizado, do consumo, mas foram lembrados para o trabalho braçal e submetidos ao sistema penal altamente punitivo, como demonstra a sua condição, a partir da chegada dos primeiros navios negreiros com suas permanências até os dias de hoje. A superrepresentação no sistema prisional parece ser inversamente proporcional a sua subrepresentação nos espaços de poder.

A justiça penal assume o compromisso de acabar com o crime, lutando contra a impunidade, aniquilando principalmente o criminoso condenado, o que contribui para o aprofundamento das tensões, pois gera relações de desigualdade e dominação (PASTANA, 2009a, p. 125).

Wacquant sustenta que o aprisionamento em massa dos pobres, dos inúteis e daqueles que não se submetem à ditadura do mercado, prejudicará ainda mais a sociedade brasileira para se chegar a uma democracia que não seja de aparência, donde se colher algumas mazelas, tais como, a falta de legitimidade das instituições legais e judiciárias, a crescente escalada da criminalidade, o excesso de arbitrariedades praticadas pelas polícias. A isso alinha-se “a criminalização dos pobres, o crescimento significativo da defesa das práticas ilegais de repressão, a obstrução generalizada ao princípio da legalidade e a distribuição desigual e não eqüitativa dos direitos do cidadão" (WACQUANT, 2001, p. 8). Enfatiza, ainda, Wacquant que se torna indispensável no Brasil e de forma preemente que a luta não seja travada contra criminosos, mas sim contra a pobreza e a criminalidade, que origina a insegurança social que, em todo lugar, impele ao crime e normatiza a economia informal que alimenta a violência (WACQUANT, 2001 p. 8).

Assim é que uma boa parte dos problemas resultantes tanto do esfacelamento dos laços sociais contemporâneos (BAUMAN, 2004, p. 67), quanto da desregulamentação do Estado, como a precarização das relações de trabalho, o desemprego e a dificuldade de acesso aos serviços essenciais que ocasionam aquilo que é percebido como o aumento da crimanilidade (BATISTA, 2011, p. 28), não são resolvidos. Cenário em que apenas a consequência torna-se a questão emergencial, redudando no endurecimento das medidas repressivas. É importante notar que, no mesmo sentido, são as observações de Boaventura de

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Souza Santos acerca de uma das três tensões dialéticas que giram em torno dos direitos humanos, naquilo que se refere à regulação social e a emancipação social (SANTOS, 1997, p. 12-13).

Existem diversas formas de “fazer justiça penal” distintas do modelo punitivista, embora não se neguem as implicações polissêmicas da expressão “justiça”, com debates que permeiam os saberes da filosofia, da sociologia, do direito, entre outros.

Quando um comitê de bairro assume a responsabilidade direta na situação local, os problemas principais podem se reduzir, na frequência e na intensidade, enquanto os problemas secundários, vinculados principalmente às intervenções da justiça criminal, pioram os problemas principais. (HULSMAN, 2004, p. 67).

A aplicação geral do sistema de penas alternativas, que objetivava reduzir a prisão parece ter tido efeito contrário. O caso mais emblemático parece ser o dos Estados Unidos, cujo resultado foi o oposto e levou ao aparecimento da supermax2, correlato brasileiro do regime disciplinar diferenciado (RDD), como sanção disciplinar máxima que segrega completamente o já segregado preso (PASSETTI, 2008). No sistema penal brasileiro, as penas alternativas tiveram grande ênfase com a edição da Lei nº 9.714, de 25 de novembro de 1998, que reformularam por completo a respectiva regulamentação na Parte Geral do Código Penal e ampliaram as possibilidade de admissão das denominadas penas restritivas de direitos, ainda que se possa criticar que a ausência de pena de prisão não significa, necessariamente, diminuição do controle estatal (SANTOS, 2007, p. 601-605).

Antes da década de 1970, apareceu a proposta do direito penal mínimo, que propunha a redução e a limitação da tutela penal, atualizou a corrente do garantismo, surgida no pós-guerra, baseado no Estado Democrático de Direito, tendo como meta reduzir a pena da infração informada ao sistema e, ao mesmo tempo, livrá-lo das exceções, o que hoje se aproxima da justiça restaurativa. Não ocorreu, porém, a redução do encarceramento, nem das punições, apenas se firmou uma moderada variação conservadora dos regimes de penas (PASSETTI, 2008).

Na justiça criminal tradicional, que tem como resultado tradicional a privação da liberdade, a vítima não ocupa o lugar que deveria, lugar de fundamental importância para a alternância do poder punitivo com a resolução de conflitos por outros modelos não punitivos, como o reparador, o terapêutico, o conciliatório ou o educativo; até mesmo outros modelos para a “situação-problema, respostas-percurso” (PASSETTI, 2004, p. 31):

2O Regime Disciplinar Diferenciado tem como base os presídios de isolamento total, nos EUA, conhecidos

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[…] a primeira característica da organização social da justiça criminal é a posição extremamente débil ocupada pelas ‘vítimas’ nesse modelo de referência – e por vítimas entendo a pessoa ou as pessoas atingidas por um fato ou sucessão de fatos (HULSMAN, 2004, p. 46).

O expansionismo do poder punitivo parece já ter perdido a hora de ser substituído pela efetiva supremacia dos princípios vinculados aos direitos humanos e às normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, promovendo a efetiva concretização dos direitos fundamentais, a realização dos fins de um Estado de direito democrático, resgatando um direito penal consentâneo com sua natureza essencialmente mínima e também um processo penal orientado pela supremacia da tutela da liberdade sobre o poder de punir (KARAM, 2009, p. 45).

Pode ser percebido quase que cotidianamente diante de um fato horrendo, violento, quando começam a palpitar opiniões que pontam como “únicas” saídas: a criação de leis criminalizadoras, o endureceminto das penas previstas no ordenamento jurídico-penal, até mesmo a volta da prisão perpétua, da tortura e a pena de morte, ou seja a “vontade de punir”, sendo o “Estado” o salvador da pátria com a saída que lhe é própria – o punitivismo:

[...] estamos habituados a que o locutor elegante comunique a notícia sangrento com voz cavernosa, preludiando a exortação à reforma do Código Penal e de imediato vai ao tribunal anunciar produtos íntimos. Mas também estamos acostumados a que isso gere um mar de opiniões díspares e em todos os tons: há que matar a todos; deixar a polícia atuar e baixar o sarrafo; aplicar o talião; ter boas prisões para ressocializar; atender aos fatores sociais; não atendê-los porque nem todos os pobres delinquem; nem só os pobres delinquem, um longuíssimo etecetera. (ZAFFARONI, 2013, p. 25).

Essa busca esquizofrênica por mais intervenção do sistema punitivo, especialmente por meio da restrição de liberdade, além de retirar a vítima do processo, faz desaparecer a construção de mecanismos sociais e nubla a presença de figuras comunitárias. Tais figuras podem ser representas por líderes comunitários, conselheiros alternativos das tribos, os “mais experientes” e até mesmo professores, amigos, enfim; pessoas que quando procuradas podem prestar orientação, solucionar problemas, intermediar e aconselhar e até mesmo propor medidas e meios conciliatórios que, não raro, o Poder Judiário – revestido pela aura da imparcialidade e caracterizado pela hierarquia e verticalização – está (ou ao menos esteve secularizado) obstado de assim atuar, pondo fim ao “processo”, mas não tratando do conflito. É nesse exato sentido a crítica formulada por Katie Argüello, a respeito do modelo punitivista que se concenta nos efeitos do delito, tomando a vítima a partir de uma imagem projetada e

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politizada, dentre outras questões que deixam de lado as raízes estruturais (ARGÜELLO, 2012a, p. 207).

A utilização cada vez mais frequente do direito penal como a “solução ideal” dos conflitos sociais, ocasiona uma violenta intervenção por parte do Estado, gerando assim altos índices de encarceramento, como se verá adiante. Entretanto, essa política criminal de matriz conservadora e viés retribucionista muitas vezes não se interessa pela vítima, tampouco interessa à vítima:

como já apontado nas descrições e análises empíricas apresentadas, não são sentimentos de vingança e desejos de maior punição que necessariamente emergem das falas e das representações das vítimas. Ao contrário, pelas entrevistas e observações realizadas junto às vítimas de crimes e interpessoais, são, antes de tudo, expectativas de proteção estatal, resolução do conflito e reparação – material e moral, sem vinculação com retributivismo clássico da pena de prisão – que podem ser identificados nos seus discursos e nos posicionamentos assumidos no sistema de justiça criminal, quando e onde lhes foi possível manifestá-los (ALVAREZ, 2010, p. 286).

A expansão do poder punitivo, representado por um autoritarismo exacerbado, exercido através do sistema penal, abandona os princípios garantidores dos direitos fundamentais inscritos nas declarações internacionais de direitos fundamentais e nas constiuições democráticas sempre buscando atingir uma busca incessante por punição a qualquer preço (KARAM, 2009, p. 35), como também desvela o sacrifício da democracia e dos direitos humanos, em nome da segurança pública, com resultados ainda mais desastrosos em países em que prevalece a desigualdade social e a pobreza (ARGÜELLO, 2012a, p. 207-211).

O Estado recebe anuência da mídia, quando exerce sua função punitivista, na medida em que recrudesce sua ação punitiva, no momento em que se defronta com o crime, no entanto, cresce o entendimento social sobre a insatisfação da política oficial punitiva quando procura uma maneira de controlar o crime (LIMA, 2005, p. 164), “[...] cresce a sensação de que, nesta esfera de administração dos conflitos sociais, tanto o aparelho Estado quanto os teóricos da criminologia oficial têm colecionado o fracasso como resultado” (LIMA, 2005, p. 164).

Parece passar do momento de se por fim à verticalidade do sistema criminal brasileiro, bem como do confisco da vítima do processo, tornando-se de fundamental importância, uma educação voltada para os direitos humanos tendo como receptores os atores do sistema de justiça e o seu estender para a comunidade.

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1.2 A VÍTIMA E O SEU (NÃO) LUGAR NO SISTEMA PUNITIVO

O nosso atual sistema penal que tem por gênese o modelo punitivo – retribucionista, de decisão verticalizada – parece não resolver o conflito ao aplicar a sanção penal, não raro, privando o acusado de liberdade. A sentença, que tem por objetivo encerrar o “processo” ao produzir uma solução judicial, e, se condenatória, impor pena ao infrator parece não atingir o conflito, pois o fim do “processo” promovido pela decisão judicial não implica necessariamente na resolução da questão:

o sistema penal pode ser compreendido como o controle social punitivo que tem início com a ocorrência, ou suspeita de ocorrência de um delito, até se chegar na execução da pena. “Por sistema penal entendemos o conjunto das agências que operam a criminalização (primária e secundária) ou que convergem na sua produção. Dentro deste entendimento, referimo-nos a sistema no sentido elementar de conjunto de entes, de suas relações recíprocas e de suas relações com o exterior (o ambiente) e nunca no símil biológico de órgãos do mesmo tecido que realizam uma função, de vez que estas agências não operam coordenadamente, mas sim por compartimentos estanques, ou seja, cada uma de acordo com seu próprio poder, com seus próprios interesses setoriais e respectivos controles de qualidade, O resultado de seu funcionamento em conjunto não passa de uma referência discursiva na hora de patentear suas funções manifestas ou proclamadas, quando, na realidade, as motivações dos operadores de cada agência são inerentes e contraditórias diante daquelas dos pertencentes às demais e inclusive entre as daqueles que fazem parte de outros estamentos da mesma agência. (ZAFFARONI et al., 2003, p. 60).

Por sistema penal, compreende-se “a sucessiva intervenção, em três nítidos estágios, de três instituições: a instituição policial, a instituição judiciária e a instituição penitenciária. A esse grupo de instituições que, segundo regras jurídicas pertinentes, se incumbe de realizar o direito penal, chamamos sistema penal” (BATISTA, 1990, p. 25). O sistema penal, em termos operacionais, atua por meio de agências, dentre as quais, as agências penitenciárias, policiais e judiciais. Nesse último, o constituinte originário mesmo que, no campo do sistema de justiça e da segurança pública, pudesse estar oscilante quanto aos propósitos e ao modelo que deveria seguir no momento pós-ditadura (SULOCKI, 2007, p. 161-196) contemplou a figura dos Juizados Especiais, no Capítulo referente ao Poder Judiciário, conforme será tratado no Capítulo seguinte.

Nos Juizados Especiais Criminais, após a sua regulamentação pelo legislador ordinário, a vítima deveria ter uma posição inédita no ordenamento jurídico brasileiro (fato que, inclusive, motivou tal proposta, como se verá no Capítulo seguinte), pois o critério da informalidade, previsto na lei que instituiria os Juizados, possibilitava que a vítima, sob a mediação de um conciliador pudesse interagir com o noticiado (pessoa apontada, mas não

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acusada formalmente pela autoria do delito) para se chegar à “solução” do conflito, sem necessidade de uma pena.

A Lei dos Juizados Especiais Criminais já tem mais de vinte anos, todavia, o que se percebe na grande maioria dos Juizados brasileiros, com algumas exceções, foi que a vítima ainda não alcançou um “lugar” apropriado na resolução dos conflitos, “lugar” no sentido de um status processual que lhe outorgue reconhecimento e potência de fala.

1.2.1 A vítima, a criminologia e a vitimologia

Vários autores definem a criminologia como uma ciência (SCHECAIRA, 2008, p. 41-42), valendo assinalar que alguns consideram que conceito e definição são a mesma coisa, outros que o conceito exprime somente uma visão geral do objeto e definição significa a determinação exata, ou seja, quando se define um objeto se revela do que a coisa é, já o conceito determina uma visão global, não ficando reduzido a uma oração, do que essa mesma coisa seja, Shecaira (2008, p. 41-42) tenta não polemizar, no entanto, acha relevante pontuar quais são os dados necessários para conceituar a criminologia sendo sempre o direito penal o parâmetro comparativo.

No mesmo raciocínio, ao definir a natureza da ciência criminológica, Shecaira (2008, p. 43), menciona que o objeto da criminologia é o estudo do delito, do delinquente, da vítima e do controle social do delito, lançando mão de um objeto empírico e interdisciplinar. O direito penal valora, ordena e orienta a realidade, tendo por base uma série de critérios axiológicos, já a criminologia tenta conhecer a realidade para explicá-la.

O conceito de criminologia, segundo Shecaira (2008, p. 45), encontraria a melhor definição nas palavras de Antonio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes:

cabe definir a Criminologia como ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo e que trata de subministrar uma informação válida, contestada, sobre a gênese, dinâmica e variáveis principais do crime – contemplando este como problema individual e como problema social -, assim como programas de prevenção eficaz do mesmo e técnicas de intervenção positiva no homem delinquente e nos diversos modelos os sistemas de resposta do delito (PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2006, p. 28).

No campo da criminologia, parece necessário destacar a denominada Criminologia Crítica, vertente que surgiu nos Estados Unidos na década de 1970 e que encontra lugar de destaque para a crítica do sistema penal:

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ao contrário da Criminologia Tradicional, a Criminologia Crítica não aceita, qual a priori inquestionável, o código penal, mas investiga como, por quê e para quem (em ambas as direções: contra quem e em favor de quem) se elaborou este código e não outro. A Criminologia Crítica, portanto, não se auto delimita pelas definições legais de crime (comportamento delituosos), interessando-se igualmente por comportamentos que implicam forte desaprovação social (desviantes). A Criminologia Crítica procura verificar o desempenho prático do sistema penal, a missão que efetivamente lhe corresponde, em cotejo funcional e estrutural com outros instrumentos formais de controle social (hospícios, escolas, institutos de menores, etc.). A Criminologia Crítica insere o sistema penal – e sua base normativa, o sistema penal – na disciplina de uma sociedade de classes historicamente determinada e trata de investigar, no discurso penal, as funções ideológicas de proclamar uma igualdade e neutralidade desmentidas na prática (BATISTA, 1990, p. 32).

O direito penal verifica o crime enquanto fato descrito na norma legal, para descobrir sua adequação típica, limita a realidade utilizando alguns princípios como os da fragmentariedade e seletividade, tem natureza formal e normativa, trata de normas que utiliza sistematicamente em suas conexões internas, interpreta e aplica a norma ao caso concreto, tem um método jurídico-dogmático e procede de forma dedutiva e sistemática. Por outro lado, a criminologia aproxima-se do delito de forma direta para analisar o problema criminal, para descobrir como é a realidade e transformá-la. “A criminologia aproxima-se do fenômeno delitivo sem prejuízos, sem mediações, procurando obter uma informação direta deste fenômeno” (SHECAIRA, 2008, p. 44).

A vitimologia teria sido definida pela primeira vez no Primeiro Simpósio Internacional realizado em Jerusalém, no ano de 1973, como "o estudo científico das vítimas" (GARCIA, 2009). Silva Sánchez (1998, p. 633), de sua vez, define a vitimologia como sendo a ciência que estuda a vítima de crime, é a mais recente de todas as disciplinas, que de uma forma ou de outra, estuda o fenômeno criminal. A relação entre autor e vítima é conhecida há algum tempo, no entanto, só nas últimas décadas a vitimologia passou a constituir objeto específico de atenção e de estudo, pois o foco anterior direcionava-se substancialmente à figura do autor da atividade criminosa.

Antonio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes (2006, p. 67), identificando esse abandono da vítima, relaciona três fases: protagonismo, neutralização e redescobrimento. A vítima viveu a sua fase de protagonista durante a vingança privada, também chamada de “idade de ouro”. No entanto, depois foi totalmente neutralizada, esquecida pelo sistema legal moderno. Os motivos desse esquecimento podem ter sido o fato de ninguém querer ser possuidor da ideia de “perdedor”, a razão de a vítima suportar os efeitos do crime (físicos, psíquicos, econômicos, sociais, etc.) e também o de lutar contra a frieza do sistema legal, falta

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de solidariedade da comunidade e a indiferença do poder público (PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2006, p. 67).

Pela expressão “idade de ouro” da vítima, entende-se o período do início da civilização ocidental que perdurou até o final da Idade Média. A vítima vai perdendo, desde então, o seu protagonismo no processo, figurando de forma acessória. Esta perda do papel da vítima nas relações processuais ocorreu principalmente pelo fim da autotutela, da pena de talião, da composição e, fundamentalmente, com o declínio do processo acusatório (SCHECAIRA, 2008, p. 55). Seu declínio associa-se ao apogeu do poder punitivo.

O suposto abandono da vítima ao longo dos anos, por muitas e diversas causas, ocorre no âmbito jurídico, empírico e político-social. A criminologia também não demonstrou nenhuma sensibilidade pelos problemas da vítima do delito, pois focaliza exclusivamente na pessoa do delinquente, todas as investigações referentes ao delito, sua etiologia e prevenção:

a Criminologia clássica se caracterizou por um radical individualismo que polarizava em torno - exclusivamente – da pessoa do delinquente a análise do fato delitivo. Nem do ponto de vista etiológico nem preventivo algo interessava mais que o infrator. A possível relevância, para ambos efeitos, de outros “protagonistas” do acontecimento delitivo – e a interação recíproca de todos eles na dinâmica criminal – muito raramente foi objeto de preocupação (PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2006, p. 105).

O sistema legal define precisamente os direitos, o “status” do acusado, não se referindo da mesma forma à vítima. O Estado relega a vítima um papel puramente testemunhal, não atendendo as exigências reparatórias a que faz jus, orientando a sua resposta oficial ao delito praticado, castigando o culpável com critérios vingativos e retributivos (PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2006, p. 67-68):

o sistema legal – o processo – já nasceu com o propósito deliberado de “neutralizar” a vítima, distanciando os dois protagonistas do conflito criminal, precisamente como garantia de uma aplicação serena, objetiva e institucionalizada das leis ao caso concreto (PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2006, p. 67)

O redescobrimento da vítima aconteceu com o término da Segunda Guerra Mundial e a ocorrência do Holocausto – martírio pelo qual foram submetidos os judeus nos campos de concentração nazistas –. A partir deste marco aumentaria a atenção para com as vítimas, bem como para a defesa dos direitos humanos (PIEDADE JUNIOR, 2001):

o Holocausto é uma sucessão e, de certa forma, uma sequência de eventos da história Ocidental contemporânea. É um empreendimento histórico único e uma de

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suas inúmeras consequências, que dá o título a esta intervenção, é o fato de haver originado a vitimologia” (JOSEF, 2001, p. 81).

O advogado israelita Benjamin Mendelsohn, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, é considerado o fundador do movimento criminológico, conhecido como vitimologia, em virtude de uma famosa conferência proferida em Bucareste em 1947, com o título “Um horizonte novo na ciência biopsicossocial: a vitimologia” (SCHECAIRA, 2008, p. 53).

Além de Mendelsohn, Hans von Henting, contribui para a configuração da vitimologia, atualizando na década de 1940, a classificação da vítima em uma escala para a consumação do delito, conforme o seu comportamento (PIEDADE JUNIOR, 2001).

Com o passar do tempo, a vitimologia foi estendendo seu objeto de investigação, passando do estudo focado inicialmente no autor e na vítima, para outros assuntos que começavam a ter uma preciosa referência, tais como: o risco de vitimização (entendido como aquelas atitudes que tendem a transformar os sujeitos em vítimas de crime; as variáveis, como o sexo, idade, raça, etc.), as tipologias (processos de vitimização) e as classes especiais de vítimas (PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2006, p. 69).

Uma classificação que, para Shecaira (2008, p. 39) torna-se essencial, com a finalidade de se ter um critério destacado na literatura específica é estabelecer a diferença entre vitimização primária, secundária e terciária:

considera-se haver vítima primária quando um sujeito é diretamente atingido pela prática de ato delituoso. A vítima secundária é um derivativo das relações existentes entre as vítimas primárias e o Estado em face do aparato repressivo (polícia, burocratização do sistema, falta de sensibilidade dos operadores do direito envolvidos com alguns processos bastante delicados etc.). Já a vítima terciária é aquela que, mesmo possuindo um envolvimento com o fato delituoso, tem um sofrimento excessivo, além daquele determinado pela lei do país. É o caso do acusado do delito que sofre sevícias, torturas ou outros tipos de violência (às vezes dos próprios presos), ou que responde a processos que evidentemente não lhe deveriam ser imputados (ex.: caso da Escola Base). (SCHECAIRA, 2008, p. 59).

Busato (2015, p. 26) enfatiza que da vitimização primária surgiu a vitimodogmática3, cujos primeiros estudos aconteceram nos anos 70 para pesquisar o comportamento da vítima no crime de estelionato, onde se verificou a atuação consciente da própria vítima, que em muitas ocasiões pretendia uma vantagem (GRECO, 2004, p. 40), o que se chamaria de

3“Vitimodogmática é uma série de postulados vitimológicos na qual se estuda o comportamento da vítima em

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“torpeza bilateral”: a vítima de um golpe do bilhete premiado, queria uma vantagem a que não tinha direito, porque o bilhete não era seu.

Outro ponto de muita discussão diz respeito ao status científico da vitimologia: deve ser considerada como portadora de autonomia científica ou deve ser entendida como um ramo da criminologia. Piedade Júnior (2001, p. 57-64) faz uma análise da pesquisa bibliográfica em relação à natureza jurídica acho que é científica da vitimologia, analisando autores que partem do entendimento de que a vitimologia é parte da criminologia e outros que a entendem com independência científica. Castro (1969, p. 27), por sua vez, adota uma posição mais moderada, considerando que a vitimologia pode ser um ramo da criminologia, mas com uma possibilidade efetiva de se tornar ciência. A criminologia pode usar os resultados da vitimologia para uma melhor abordagem do crime e da criminalidade.

Assim, a vitimologia pode ser desenvolvida, tanto na teoria como na prática, com os meios específicos de disciplina, bem como tem a difícil missão de encontrar o tratamento certo para a vítima. Se a vitimologia tem seus próprios meios de desenvolvimento, a sua contribuição seria significativamente mais importante do que se fosse reduzido a um mero capítulo da criminologia, situação a qual atrasaria muita evolução normal. Dentre os defensores da vitimologia como um ramo da criminologia, Piedade Júnior destaca:

entre nós, Roque de Brito Alves especialista na matéria comenta sobre a impossibilidade de ser aceita a vitimologia como ciência autônoma, face ao fato de que ela não possui os requisitos indispensáveis para assumir a categoria de ciência: objeto, método e fins próprios. Além disso, sua autonomia geraria uma mutilação de conteúdo da criminologia o qual ficaria restrito somente à pesquisa do fato delituoso e do criminoso, seu autor”. Já com relação Aos defensores da autonomia Piedade Júnior cita o sistematizador da vitimologia, Benjamin Mendelsohn, “que a princípio, coloca a vitimologia ao lado da criminologia, vai demonstrando a expansão dos limites doutrinários (PIEDADE JÚNIOR, 2001, p. 61).

Enaltecendo a rica contribuição de importantes estudiosos das ciências criminológicas, Piedade Júnior, entretanto, entende que tal discussão não tem nenhuma “objetividade prática”, pois é muito mais necessário concluir que a “vitimologia é uma proposta de caráter científico que deve ter seus objetivos voltados para a prevenção de processos vitimizatórios, para o estudo da personalidade da vítima no processo criminoso” (PIEDADE JÚNIOR, 2001, p. 64).

Partindo de suas pesquisas, Piedade Júnior (2001, p. 64) entende que a vitimologia é um desdobramento da criminologia, pois do crime resulta necessariamente uma vítima, pois a criminologia concentra-se no estudo do autor do fato criminoso, como também do próprio fato criminoso, no entanto, a vitimologia centraliza-se no estudo da vítima sem descartar a atenção para o vitimizador e sua conduta vitimária.

Referências

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