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A valorização dialética do Kulturpessimismus weberiano

Em sua análise da modernidade, Michael Löwy incorpora, a partir de uma perspectiva marxista, alguns tópicos do pensamento de Max Weber, almejando interpretá- los como instrumento de crítica – conquanto negativa e resignada – da racionalidade moderna. Ele retoma, neste sentido, a tentativa lukacsiana em HCC de retomar ativamente traços da análise weberiana da modernidade. Mas vai muito além, na medida em que amplia o espaço concedido às definições weberianas, transformando-as em uma espécie de critério em face do qual se torna possível atestar a dimensão crítica e anticapitalista de muitos movimentos socioculturais do mundo moderno. Nos termos de Löwy, por exemplo, a radicalidade de um movimento como o surrealismo provém exatamente de sua oposição irredutível à gaiola de aço descrita por Weber - “ou seja, uma estrutura reificada e alienada que encerra os indivíduos nas ‘leis do sistema’ como em uma prisão”272 -, assim como de

sua tentativa subversiva e apaixonada de reencantamento do mundo frente ao espírito do cálculo de um mundo desencantado.

Malgrado a neutralidade requisitada por Weber, Löwy sustenta a hipótese de que o

Kulturpessimismus romântico – que marcou a geração do sociólogo na Alemanha da

passagem do século – constitui uma das bases, “parcialmente neutralizada”, da análise weberiana da sociedade moderna. No limite, tal legado teria fornecido a Weber subsídios para a percepção – resignada, é bem verdade – das contradições e dos limites da racionalidade moderna, do seu caráter formal/instrumental, e, tão importante quanto, da “[...] sua tendência a produzir efeitos que levam à derrubada das aspirações emancipatórias da modernidade”273. Segundo Löwy, pode-se encontrar na obra do sociólogo alemão um

apurado diagnóstico da crise da modernidade, projeto amplamente retomado pela primeira

271 Michael Löwy, “Marx et Weber critiques du capitalisme”. Marxismo e co. 2002. Disponível em:

http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article3707. Acesso: 14/06/2009. s/p.

272 Michael Löwy, “Romper a gaiola de aço”. In: A estrela da manhà: surrealismo e marxismo. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. pp.7-20. (p.9).

273 “Habermas e Weber”. In: Daniel Bensaïd & Michael Löwy. Marxismo, modernidade e utopia. São Paulo:

geração da Escola de Frankfurt (principalmente nas figuras de Adorno, Horkheimer e Marcuse).

Os argumentos de Michael Löwy em defesa da negatividade-crítica da análise weberiana da modernidade tornam-se ainda mais nítidos à luz do seu posicionamento em relação às tentativas do filósofo alemão Jürgen Habermas de revitalizar o projeto

inacabado da modernidade e da razão ocidental. Ao almejar tornar a sociedade burguesa

mais fiel à sua própria “utopia racionalista”, Habermas abandona, na opinião de Löwy, qualquer forma de Kulturpessimismus “e acredita na possibilidade de restabelecer o projeto inicial das Luzes, graças a uma forma de racionalidade descurada tanto por Weber como pela Escola de Frankfurt: a razão comunicativa”274. É esta razão comunicativa que, para

Habermas, pode fazer frente à universalização da razão técnica ou instrumental, e por isso ela deve ser protegida das invasões (ou da “colonização”) da racionalidade instrumental275.

Nesta perspectiva, Habermas pretende retomar a vocação emancipadora da racionalidade iluminista, aposta que contrastava não só com seus ex-colegas da primeira geração da Escola de Frankfurt, senão também com o próprio Weber, que já havia demonstrado os limites desta forma de racionalidade. Para Löwy, ao apostar na possibilidade de reformulação do conceito iluminista de razão, lançando mão de uma forma “alternativa” de racionalidade (não-instrumental), Habermas esvazia o conteúdo crítico- negativo do diagnóstico weberiano, reconciliando-se em definitivo “[...] com as normas da modernidade ‘realmente existente’”276. Ao contrário de Habermas, Weber jamais acreditou

na possibilidade de resolução racional-consensual dos conflitos de valores. “Como Nietzsche, ele não hesita em arruinar a ilusão da reconciliação, insistindo no caráter insuperável das antinomias que definem a condição histórica moderna”277. Afinal, como

observa Daniel Bensaïd, “enquanto os sujeitos consensuais da comunidade comunicacional ideal aparecem como anjinhos etéreos e ectoplasmas sem emoções nem paixões”, a língua continua sendo “um lugar em que os ‘falantes’ se enfrentam: o discurso peremptório dos dominadores e a palavra subalterna dos dominados”. O “agir comunicacional” não escapa,

274 Michael Löwy, “Habermas e Weber”, op.cit., 2000, p.219. 275 Idem, p.219.

276 Michael Löwy, op.cit., p.218. 277 Idem, p.221.

e nem poderia, dos conflitos e das relações de força: “há palavras que ferem e palavras que matam”278.

Eis porque, em última análise, “a constatação brutal de Weber a respeito da contradição irredutível dos valores” (a guerra dos deuses), assim como a “sua análise dos resultados alienantes da racionalidade instrumental”, constituem-se em um “[...] ponto de partida mais fecundo para a análise da sociedade moderna [do] que os sonhos de reconciliação lingüística dos valores de Habermas”279, cuja “utopia neo-racionalista”,

embora sedutora, recai em

“ilusões tipicamente liberais acerca das virtudes miraculosas da ‘discussão pública e racional dos interesses’, a produção consensual de ‘normas ético-jurídicas’, etc. como se os conflitos de interesses e de valores entre classes sociais, ou a ‘guerra dos deuses’ na sociedade atual entre posições morais, religiosas ou políticas antagônicas pudessem ser resolvidas por um simples paradigma de comunicação inter-subjetiva, da livre discussão racional”280.

Com esta postura, Habermas teria sido um dos grandes responsáveis por uma leitura moderada, de tonalidade liberal-democrata, da obra de Weber, diluindo seus aspectos mais críticos em relação à racionalidade moderna. É nesse sentido que, para Löwy, ao suavizar esta feição mais negativa da análise weberiana,

“Habermas afasta-se também de Marx, para quem a dominação generalizada do valor de troca, a submissão de todas as relações sociais ao pagamento direto em moeda, a dissolução de todos os sentimentos humanos nas ‘águas geladas do cálculo egoísta’ são consequências necessárias e inevitáveis da economia capitalista de mercado”281.

A dimensão crítica da análise weberiana da modernidade torna-se, então, na obra de Michael Löwy, um dos critérios e/ou parâmetros para a avaliação das positividades e dos limites de autores ou tendências socioculturais. Assim, por exemplo, a leitura weberiana da modernidade ilumina até mesmo a sua interpretação de um escritor como Franz Kafka. Em

Franz Kafka: um sonhador insubmisso, livro em que retoma algumas de suas pesquisas

sobre o horizonte sociocultural da Europa Central da passagem do século, Löwy busca

278 Daniel Bensaïd, Os Irredutíveis. Teoremas da resistência para o tempo presente, São Paulo: Boitempo,

2008, p.44.

279 Idem, p.222, 223. 280 Idem, p.222. 281 Idem, p.220.

comprovar a sensibilidade libertária e profundamente antiautoritária de Kafka282,

demonstrando como o autor tcheco produz em seus romances uma “representação” crítica da lógica desumana e mecânica que decorre do processo de “racionalização” e de “burocratização”, que, segundo Weber, acompanha o despertar histórico da modernidade. Em romances como O Processo e O Castelo, com ênfase especial, a crítica kafkiana atinge o cerne da autoridade impessoal e hierárquica do Estado, que é compreendido como mecanismo desumano e reificado. Em América, por seu turno, Kafka revela “um mundo dominado pelo retorno monótono e circular, pela temporalidade puramente quantitativa do relógio” e das máquinas283. Com o “sinistro poder das máquinas modernas, a autoridade

aparece [...] na sua figura mais alienada, mais reificada, enquanto mecânica ‘objetiva’. Fetiche produzido pelos homens, essa coisa os sujeita, os domina e os destrói”284.

Como o surrealismo e as demais formas de crítica “romântica” da modernidade, a dimensão “crítica e subversiva” da obra de Kafka é compreendida teoricamente, por Michael Löwy, através da intensidade com que ela se opõe à “gaiola de aço” weberiana. De forma que a radicalidade subversiva de Kafka é capturada em sua capacidade de conferir conteúdo e forma estética a um aspecto da realidade reiteradamente ignorado pelas ciências sociais acadêmicas: “a opressão e o absurdo da reificação burocrática tal como são vividos pelas pessoas comuns”285. Realizados desde o âmbito da literatura, ou seja, como “criação

de universo imaginário concreto de personagens e coisas” – e não de um “sistema

conceitual abstrato, na trilha das doutrinas filosóficas e políticas” -, os romances de Kafka

contribuem para a compreensão das malhas burocráticas e reificadas da modernidade em seu interior, em sua lógica intima, que atravessa as suas manifestações mais corriqueiras286.

Por isso eles constituem – como a literatura, de modo geral – um lócus privilegiado para a reatualização da crítica da modernidade capitalista e, no caso em questão, para a elucidação

282 Michael Löwy, Franz Kafka: sonhador insubmisso. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, p.132. Löwy

publicou um ensaio sobre a sensibilidade libertária de Kafka ainda em 1967, em Israel. Cf. “Kafka et l’anarchie” (hébreu), International Problems, revue de l’Institut de Sciences Politiques de l’Université de Tel- Aviv, vol.5, n.1-2, 1967.

283 Michael Löwy, Franz Kafka..., 2005, op.cit., p.76. 284 Michael Löwy, op.cit., 2005, p.90.

285 Idem, p.204. 286 Idem, p.19.

de algumas das razões da valorização crítica de Michael Löwy do diagnóstico weberiano da modernidade.