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O comércio ilegal de órgãos humanos se aproveita, essencialmente, das populações mais carentes e vulneráveis, que veem na venda de seu corpo uma solução para alcançar melhores perspectivas de vida, e beneficiam receptores ricos que buscam um caminho mais rápido para a realização do transplante do qual necessitam. É evidente que "o mercado existe em muitos outros países, mas com uma constante característica: os órgãos sempre são retirados de pessoas pobres, e utilizados em pessoas ricas, de países ricos", não existindo qualquer exemplo em sentido contrário112.

No Brasil, o perfil dos doadores remunerados ficou bem evidenciado no caso apurado pela CPIORGAO envolvendo moradores das periferias de Recife/PE, que vendiam seus órgãos para uma organização criminosa como tentativa de garantir a sua sobrevivência. A advogada de defesa dos aliciados narrou, na ocasião, a história de um deles, que bem exemplifica o estado de necessidade que os marcava, traçado pela miséria absoluta, e que os levou a submeter-se ao comércio clandestino de órgãos:

Vou dar um exemplo para vocês: o Márcio não tem uma das vistas, nasceu assim. Ele vende água mineral de porta em porta, na bicicleta. O rendimento dele é de 30 a 50 centavos por garrafão. E ele disse ao juiz, disse à delegada: "Eu procurei o Capitão Ivan [pessoa que aliciava os moradores], eu pedi a ele para ir. Ele me deu o dinheiro, eu fiz o exame, eu tinha o sangue e eu fui." E o porquê de ele ter ido?

111 BRASIL, 2004, p. 168-170.

Extremo estado de necessidade, fome. Quando a gente diz assim “estou com fome” é porque não teve tempo de comer. Mas ele passava às vezes 3 a 4 dias sem comer, com 4 filhos dormindo no mesmo colchão. Um homem que sequer tinha uma geladeira. Aí você pergunta: “O que ele comprou?”. Ele comprou uma casa em um bairro pobre de Recife, que não é o mesmo bairro em que ele morava, ele comprou uma geladeira, ele comprou fogão. Ele procurou proporcionar algumas coisas aos filhos, que ele nunca teve oportunidade. Ele sequer conhecia shopping center, pizzaria, gente! Então, foi isso que ele fez. Ele usou o dinheiro para comer.113

Como se vê, a fragilidade econômica e social desses indivíduos, impulsionada pela má distribuição dos benefícios compartilhados pela sociedade, facilita a sua própria sujeição à venda de órgãos, pois os tornam mais vulneráveis à violação de sua dignidade. Essa mesma situação se reflete nos casos reportados pela organização Organs Watch, em que pessoas pobres são convencidas a vender seus órgãos para garantir um mínimo de subsistência.114

No entanto, o que se constata realmente é que esse tipo de exploração da miséria humana só faz acentuar o estado de necessidade desses doadores, na medida em que a contraprestação financeira obtida não será suficiente, muitas vezes, para financiar sequer as sequelas do transplante, que inevitavelmente debilita a saúde física e psicológica do doador, fazendo-se necessária a incorporação de cuidados especiais.115

Não à toa, a Organização Mundial da Saúde (OMS) instou os Estados- membros a adotarem políticas voltadas ao amparo dos setores da sociedade mais frágeis ao turismo para transplante e ao comércio ilegal de tecidos e órgãos116. Nesse

mesmo sentido, a Declaração de Istambul destacou, anos mais tarde, que "o legado dos transplantes deve ser a celebração da doação de saúde de uma pessoa para outra e não de indivíduos empobrecidos vítimas do tráfico de órgãos e do turismo de transplante".117

Disso infere-se que é papel do Estado fomentar o bem-comum, incorporando as práticas necessárias para a proteção dos cidadãos contra qualquer forma de exploração, devendo buscar soluções para a redução da desigualdade na

113 BRASIL, 2004, p. 75.

114 TORRES, C. A., 2007, p. 25. 115 Id., loc. cit.

116 TORRES, M. A., 2017, p. 6.

117 BAQUERO, Ashley; ALBERÚ, Josefina; ABBUD-FILHO, Mario. I Fórum de Bioética em transplante

da América Latina e Caribe: o Documento de Aguascalientes. Jornal Oficial da Associação

Brasileira de Transplante de Órgãos, v. 13, n. 3, p. 1337, jul./set. 2010. Disponível em:

concentração de renda, da alta taxa de pobreza e do baixo nível de escolaridade, para que assim retire a sua população da condição de vulnerável. Atrelado a isso, é igualmente imperioso que seja garantida a cobertura universal dos serviços de saúde a todos que precisem de transplante, a fim de que o tráfico de órgãos não seja visto como uma alternativa para a salvaguarda de uma vida.118

Como já visto, a comercialização de órgãos importa invariavelmente em benefício para o receptor em detrimento da opressão do doador, razão pela qual consubstancia-se em verdadeira violação de direitos humanos, indo de encontro às diretrizes emanadas pelas organizações internacionais e também ao sistema jurídico- normativo pátrio. Sabe-se que a Constituição Federal de 1988 consagrou diversos valores atrelados a eles e, inclusive, elenca como fundamento da República a dignidade da pessoa humana119, conferindo-lhe o status de princípio norteador de todo

o ordenamento jurídico, que se vincula de forma indissociável aos direitos fundamentais, notadamente o direito à vida, à liberdade e à igualdade, inevitavelmente associados ao tráfico. Portanto, para compreender melhor de que forma o mercado de órgãos viola a dignidade humana, é preciso antes buscar defini-la.

Não obstante a dificuldade em universalizar a sua conceituação, em virtude da influência dos aspectos históricos, religiosos e políticos de cada sociedade, podem ser extraídos do âmago desse princípio um conteúdo mínimo. De acordo com os ensinamentos de Luís Roberto Barroso120, são três os elementos essenciais à

dignidade: valor intrínseco, autonomia e valor social da pessoa humana.

O valor intrínseco seria o "elemento ontológico da dignidade, ligado à natureza do ser, ao que é comum e inerente a todos os seres humanos", do qual resulta, naturalmente, um complexo de direitos fundamentais, tais quais o direito à vida, à igualdade e à integridade física, moral e psíquica, que conferem diretrizes basilares para o plano jurídico. Por sua generalidade, a dignidade não pode ser medida por um

118 BAQUERO; ALBERÚ; ABBUD-FILHO, op. cit., 2010, p. 1340.

119 "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e

Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana [...]." BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Brasília, DF, Diário Oficial da União, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 28 out. 2018.

120 BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão

provisória para debate público. Mimeografado, dez. 2010, p. 20. Disponível em: <https://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto- base_11dez2010.pdf>. Acesso em 27 out. 2018.

preço equivalente, uma vez que se trata de um valor objetivo, que independe de atributos pessoais. Refuta-se, nesse ponto, a visão utilitarista do homem, segundo a qual este seria um fim em si mesmo e não um meio para a promoção de objetivos coletivos. Por esse motivo, a dignidade não é concedida e não pode ser retirada ou perdida, sendo, portanto, inviolável.121

Em segundo lugar, a autonomia da vontade se apresentaria como o "elemento ético da dignidade, ligado à razão e ao exercício da vontade na conformidade de determinadas normas", primando pela autodeterminação individual, ou seja, remeteria ao direito de desenvolver livremente a própria personalidade, sem imposições paternalistas. A dignidade se manifesta, assim, pela efetiva liberdade correlacionada à igualdade de condições materiais que possibilitem objetivamente o exercício da decisão.122

Nesse aspecto, fala-se em garantir o mínimo existencial como instrumento apto a tornar o indivíduo livre, igual e capaz de exercer sua cidadania. Barroso salienta que "o mínimo existencial constitui o núcleo essencial dos direitos fundamentais em geral e seu conteúdo corresponde às pré-condições para o exercício dos direitos individuais e políticos, da autonomia privada e pública", e somente pode ser alcançado quando atendidas as necessidades indispensáveis do indivíduo, assim compreendidas como o direito à educação básica, à saúde essencial, à assistência aos desamparados e ao acesso à justiça.123

Por fim, a dignidade apresenta como elemento social o valor comunitário, reportando-se ao indivíduo enquanto integrante de um grupo, de modo a ressaltar os valores em comum. Assim, a dignidade se molda de acordo com as relações de um ser humano para com os outros. Certo é que tal vertente apara o direito à liberdade e à autonomia individual, mas o faz para promover racionalmente os objetivos compartilhados pela comunidade.124

Percebe-se que tais elementos se encontram essencialmente associados à vedação ao comércio de tecidos e órgãos humanos, que tem como objetivo precípuo proteger a dignidade humana. O primeiro elemento apresentado por Barroso pode ser relacionado à indisponibilidade do próprio corpo, que norteia a vedação ao mercado

121BARROSO, op. cit., 2010, p. 21. 122 Id., p. 24.

123 Ibid., p. 26. 124 Ibid., p. 27-28.

de órgãos, além de elevar a doação entre pessoas vivas ao patamar da excepcionalidade, permitindo-a somente quando devidamente resguardada, de uma forma geral, a saúde do doador.

O segundo elemento, por sua vez, é suficiente para afastar a idoneidade do ato de vender os próprios órgãos enquanto expressão da liberdade individual. Isso porque, considerando que o tráfico explora majoritariamente populações economicamente carentes, pode-se afirmar que a decisão de se sujeitar a esse tipo de comércio é maculada pela desigualdade social vivenciada pelo doador. Desse modo, sua vontade padece de vício, que reside justamente no estado de necessidade ele se encontra e que o levou a consentir com a retirada de seus órgãos. Conforme aponta Gustavo Noronha:

a dignidade humana é o valor-norte, verdadeiro farol jurídico a informar os bens e valores de interesse, a serem protegidos na forma do Direito. Reduzir o corpo a um mero objeto, pensa-se, é ato atentatório contra a dignidade humana, já que a autonomia individual também deverá estar conforme aquela.125 (grifos deste trabalho)

Por fim, o terceiro elemento evidencia a relevância comunitária da não comercialização de órgãos, na medida em que preserva a justiça no procedimento de transplantes, tornando-o tangível não somente a quem tem poder aquisitivo para financiá-lo, mas a quem dele necessite, preservando-se, assim, o bem-estar da coletividade. Protege-se, dessa maneira, os valores sociais, especialmente a solidariedade.

Por conseguinte, como corolários do princípio da dignidade da pessoa humana aparecem os direitos da personalidade, dentre os quais o direito de dispor do próprio corpo e o direito à integridade física, cujo exercício é balizado pelos os ditames legais. Como ocorre na doação dos próprios órgãos, deve ser atendida a finalidade científica e altruística inerente ao ato, resguardando-se a saúde do doador, sendo vedada qualquer forma de comercialização.126 O tráfico de órgãos humanos, pelo

contrário, condiciona a pessoa ao estado de coisa, colocando um preço em uma parte indisponível de seu corpo, tratando-a como mercadoria.

125 ÁVILA, G. N. de; GAUER, G. J. C.; GAUER, R. M. C.; ÁVILA, G. A. de; DRAGO, G. D., op. cit.,

2008, p. 33-34.

126 VASCONCELOS, Francine Melo. Tráfico internacional de órgãos, a violação dos direitos humanos

e as políticas de combate a esta modalidade delitiva: um estudo a partir da atuação do Brasil, União Européia e Irã. Florianópolis: UNISUL, 2015. Disponível em:

<https://www.riuni.unisul.br/bitstream/handle/12345/3358/112276_Francine.pdf?sequence=1&isAll owed=y>. Acesso em: 27 out. 2018.

Além disso, há que se ponderar que o ganho financeiro do doador-vendedor não supera a perda de um órgão corporal, eis que sua nova condição física se caracterizará por dores crônicas, fraqueza, ansiedade e depressão, o que fará escoar rapidamente o benefício pecuniário adquirido, sendo que os efeitos em sua saúde serão permanentes ou, no mínimo, duradouros. Dessa maneira, desrespeita-se um valor fundamental, o direito à uma vida digna, sendo que a autonomia do indivíduo deve estar a ele subordinada, cabendo ao Estado proteger a humanidade.127

Nesse sentido, a busca pela efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana deve ser vista tanto por um viés promocional quanto protetivo, promovendo não só a autodeterminação pessoal enquanto expressão da autonomia da vontade e da liberdade individual, mas também como garantia de assistência por meio da ação do Estado e da coletividade.128

Logo, é indispensável a adoção de medidas repressoras ao comércio clandestino de órgãos, priorizando a proteção dos direitos humanos para impedir que o corpo humano seja tratado como mero produto dotado de valor econômico. Requer- se, para esse fim, não só o combate ao crime organizado, mas também a devida atenção às necessidades econômicas e sociais das populações menos estruturadas. Na visão desta autora, a inclusão social, a conscientização da população e o atendimento das vítimas em potencial são políticas preventivas que merecem destaque, que lograriam êxito em precaver a submissão de pessoas em estado de miséria à exploração de sua dignidade.

127 VASCONCELOS, op. cit., 2015, p. 31. 128 BUONICORE, op. cit., 2014, p. 93.

CAPÍTULO III

FORMAS DE COMBATE AO MERCADO HUMANO

O sucesso na utilização terapêutica dos transplantes tem gerado uma expansão do número de receptores em lista de espera, mas a quantidade de órgãos disponibilizados não acompanha essa demanda, sendo a carência na doação um dos maiores empecilhos a serem enfrentados, que decorre tanto da desproporção entre o número de pacientes necessitados e a quantidade de pessoas que evoluem para a morte encefálica, quanto do pequeno número de potenciais doadores identificados e da efetivação da doação129. Para superar esses obstáculos, faz-se imperiosa a análise

das causas relacionadas ao desequilíbrio entre a necessidade de transplantes e a disponibilidade de órgãos transplantáveis, para que seja possível sugerir medidas paliativas, que influenciarão indiretamente no combate ao tráfico de órgãos humanos, que deverá ser elidido também pela fiscalização direta e maior controle no processo de doação e transplante, a serem realizados tanto pelo Estado quanto pela sociedade.