• Nenhum resultado encontrado

O combate à comercialização ilegal de órgãos humanos por meio da superação dos entraves no processo de doação e transplante

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O combate à comercialização ilegal de órgãos humanos por meio da superação dos entraves no processo de doação e transplante"

Copied!
72
0
0

Texto

(1)

INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE DE MACAÉ MDI - DEPARTAMENTO DE DIREITO

LETÍCIA MENEGUETTE CELIN

O COMBATE À COMERCIALIZAÇÃO ILEGAL DE ÓRGÃOS HUMANOS POR MEIO DA SUPERAÇÃO DOS ENTRAVES NO PROCESSO DE DOAÇÃO E

TRANSPLANTE

MACAÉ 2018

(2)

O COMBATE À COMERCIALIZAÇÃO ILEGAL DE ÓRGÃOS HUMANOS POR MEIO DA SUPERAÇÃO DOS ENTRAVES NO PROCESSO DE DOAÇÃO E

TRANSPLANTE

Trabalho apresentado ao Instituto de Ciências da Sociedade de Macaé da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a conclusão do Bacharelado em Direito.

Área de Concentração: Direito Penal Especial.

Orientador: Prof. Dr. David Augusto Fernandes

Macaé 2018

(3)
(4)

O COMBATE À COMERCIALIZAÇÃO ILEGAL DE ÓRGÃOS HUMANOS POR MEIO DA SUPERAÇÃO DOS ENTRAVES NO PROCESSO DE DOAÇÃO E

TRANSPLANTE

Trabalho de Conclusão de Curso aprovado pela Banca Examinadora do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências da Sociedade de Macaé.

Macaé, 27 de novembro de 2018.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________

Professor Dr. David Augusto Fernandes (Universidade Federal Fluminense)

__________________________________

Professor Ms. Francisco de Assis Aguiar Alves (Universidade Federal Fluminense)

__________________________________

(5)

Em primeiro lugar, elevo meus pensamentos aos céus, reconhecendo em Deus o alicerce de toda a minha existência. Nele repousou o meu amparo e dele me veio a persistência para concluir mais essa etapa em minha jornada acadêmica. Agradeço, especialmente, aos meus pais, Domingos Sávio Celin e Marta Aparecida Meneguette Celin, e ao meu irmão, Heitor Meneguette Celin, por todo o carinho e atenção dispensados a mim e que com seu amor me incentivaram a lutar para alcançar meus objetivos. Aos meus familiares, pelos votos sinceros e amorosos de sucesso e por terem representado o base motivacional necessária à superação dos meus dias mais temerosos. Aos meus amigos, em especial Isabela Viana de Carvalho, Larissa Pizzol Andrade e Lara Borges Oliveira, por terem sido a minha família nesse período, compartilhando os momentos mais significativos, somando as vitórias e minimizando as tristezas. E, por fim, ao meu orientador, Professor Doutor David Augusto Fernandes, por ter me apresentado a oportunidade de abordar um tema tão desafiador e significante. Obrigada por todos os ensinamentos, paciência e solicitude.

(6)

O presente trabalho pretende revelar as principais barreiras ao aprimoramento do sistema brasileiro de doação e transplante de órgãos, demonstrando primeiramente a sua evolução histórica, bem como o panorama atual e a legislação aplicável para, enfim, propor soluções que se entende adequadas. Objetiva, ainda, relacionar o aparecimento do tráfico de órgãos como meio alternativo à redução do tempo em lista de espera com as dificuldades do processo doação-transplante, esmiuçando a atuação da criminalidade organizada a partir da exposição de casos investigados em âmbito nacional. Permeia as justificativas comuns à legitimação da comercialização de partes do corpo humano e os argumentos contrários a esse mercado. Busca apresentar como organismos internacionais tratam o assunto, averiguando as estratégias sugeridas para o combate à exploração do ser humano e estudando a viabilidade de sua incorporação em território nacional. Defende a alteração no modo de obtenção do consentimento para a doação post mortem, comparando o ordenamento pátrio à legislação internacional. Por fim, para atingir objetivos do trabalho, a metodologia de pesquisa adotada partiu da análise de bibliografia e documentos jurídicos brasileiros.

Palavras-chave: Doação e transplante de órgãos. Tráfico de órgãos humanos.

(7)

This monography intends to reveal the main barriers to the improvement of the Brazilian organ donation and transplantation system, demonstrating first its historical evolution, as well as the current panorama and the applicable legislation, in order to propose solutions that are considered adequate. It also aims to relate the appearance of organ trafficking as an alternative means to reduce the waiting list time with the difficulties of the donation-transplant process, by analyzing the performance of organized crime based on the exposition of cases investigated at the national level. Permeates the common justifications for the legitimation of the commercialization of parts of the human body and the arguments against this market. It seeks to present how international organizations approachs the subject, investigating the suggested strategies to combat the exploitation of the human being and studying the feasibility of its incorporation in the national territory. It defends the change in the way of obtaining consent for the post-mortem donation, comparing the nacional regulation to the international law. Finally, in order to achieve work objectives, the research methodology adopted was based on the analysis of Brazilian bibliography and legal documents.

Key words: Organ's donation and transplantation. Human organs trafficking. Combat.

(8)

INTRODUÇÃO ... 10

1 DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS HUMANOS ... 12

1.1 Breve apanhado da história dos transplantes de órgãos e tecidos ... 12

1.2 O processo de doação e transplante ... 15

1.3 Panorama geral do Sistema Nacional de Transplantes ... 18

1.4 Evolução normativa da doação e transplante de órgãos no Brasil ... 20

2 TRÁFICO DE ÓRGÃOS HUMANOS ... 28

2.1 Noções introdutórias ... 28

2.2 Possíveis justificativas à comercialização do corpo humano ... 30

2.3 A vedação ao tráfico de órgãos humanos no ordenamento pátrio e no Direito Internacional ... 35

2.4 Comissão Parlamentar de Inquérito ... 41

2.5 A venda de órgãos humanos no mercado negro e a exploração de doadores em estado de pobreza ... 43

3 FORMAS DE COMBATE AO MERCADO HUMANO ... 49

3.1 Prevenção às doenças terminais ... 49

3.2 Fatores socioeconômicos, culturais e estruturais relacionados à doação post mortem de órgãos humanos ... 51

3.3 Estratégias sugeridas pela Declaração de Istambul para aumentar as doações de órgãos pós-morte ... 58

3.4 Alteração no modo de consentimento ... 59

3.5 Coexistência do direito à vida e à dignidade humana e a promoção do mínimo existencial ... 64

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 66

(9)

ABTO Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos CCJ Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania

CDH Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa

CIHCOTT Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante

CNCDO Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos CNNCDO Central Nacional de Notificação, Captação e Distribuição de

Órgãos

CPI Comissão Parlamentar de Inquérito

CPIORGAO Comissão Parlamentar de Inquérito com a finalidade de investigar a atuação de organizações criminosas atuantes no tráfico de órgãos humanos

FAEC Fundo de Ações Estratégicas e Compensação OMS Organização Mundial da Saúde

RBT Registro Brasileiro de Transplantes

RS-Tx Coordenação de Transplantes do Rio Grande do Sul SNT Sistema Nacional de Transplante

PITO-RJ Programa de Imunogenética e Transplante de Órgãos no Rio de Janeiro

SPIT São Paulo Interior Transplante SUS Sistema Único de Saúde

(10)

INTRODUÇÃO

Este protejo almeja traçar uma análise crítica sobre o papel do Estado na garantia da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial à população, de modo a examinar a possível correlação entre a carência desta atuação e o tráfico de órgãos humanos.

Para entender a dinâmica desse delito e a relevância de sua vedação, o primeiro capítulo desta monografia será destinado a percorrer o sistema de transplante de órgãos, entendendo suas origens e as possíveis modalidades, bem como a averiguar o tratamento legislativo conferido às doações, fazendo a análise de dados atuais acerca da temática.

O segundo capítulo trará a exposição da realidade fática que comprova a existência de um mercado ilícito atuante na violação da dignidade do corpo humano, de uma indústria milionária que alicia os miseráveis e aproveita aos ricos, conduzindo à iniquidade e à injustiça, na medida em desrespeita a lista única de espera para transplante. São diversos os casos de aproveitamento de pessoas vulneráveis, em que estas são convencidas a vender seus órgãos; de desvio de partes do corpo humano, que deveriam ser destinadas ao receptor em espera, mas são extraviadas para um comércio clandestino; de aceleração da morte de pacientes visando o tráfico para esse fim; de desaparecimento ou "devolução" de crianças e adolescentes adotados internacionalmente sob o pretexto de não adaptação ao local, sendo constada posteriormente a retirada de seus órgãos.

Há, contudo, grande dificuldade na investigação desse tipo de delito, na medida em que as vítimas coagidas a se vender amedrontam-se e não denunciam, os receptores são levados a acreditar que os doadores foram bem pagos e protegidos e muitos dos outros envolvidos têm seu silêncio comprado ou deixam-se guiar pela lógica utilitarista que prima pela autonomia da vontade. Faz-se, portanto, imperioso expor a forma de atuação da criminalidade organizada no mercado negro do tráfico de órgãos, fazendo-se menção a casos concretos que permitam analisar as consequências desse fenômeno, para que se possa, então, compreender como o reforço das estruturas basilares da sociedade poderia contribuir para sua aniquilação. Em seguida, compreendendo que o avanço científico-tecnológico foi de suma importância para o aprimoramento de cirurgias de transplantes, não podendo, porém, daí concluir-se pela superação da demanda pela oferta de órgãos, o terceiro capítulo

(11)

demonstrará a relação de tais fatores com a insurgência do comércio ilegal de órgãos humanos.

O terceiro capítulo também abordará o desempenho do Estado como vetor dessa forma de exploração do ser humano, desde a sua atuação na garantia de políticas públicas que promovam o estreitamento das disparidades econômicas, estendendo a todas as pessoas as condições mínimas de subsistência que ressaltem a sua dignidade, até a sua performance na vigilância, fiscalização e punição de casos que envolvam o tráfico de órgãos humanos.

Outrossim, faz-se mister avaliar os pontos positivos e negativos do conjunto normativo pátrio que regula o sistema de doação de órgãos, averiguando a possibilidade de mudanças espelhadas em nações econômica, social, cultural ou politicamente próximas à nossa, dispondo do direito comparado para verificar a efetiva possibilidade de modernização do ordenamento jurídico brasileiro no sentido de permitir que uma maior quantidade de potenciais doadores se transforme em doadores efetivos, influenciando a ascensão do número de doações, de modo que a esperança de um transplante se faça mais palpável, desmantelando a clandestinidade como meio alternativo para a sobrevida do paciente.

Nesse ponto, destaca-se a necessidade de perquirir os motivos pelos quais o Brasil adotou, em 2001, o modelo de consentimento informado, que retirou do próprio sujeito a opção de definir se seus órgãos podem ou não ser transplantados depois de sua morte, conferindo exclusivamente ao cônjuge do falecido ou ao seu parente maior de idade a decisão pela doação pós-morte. Logo, é preciso questionar quais os reflexos que uma mudança de paradigma poderia trazer à nossa sociedade.

Requer-se, dentre outras observações, uma análise estatística envolvendo o número de transplantes realizados e o de pacientes em lista de espera, seus percentuais de aumento ou de diminuição, para que se permita concluir se seria viável retornar ao regramento que previa outra modalidade de obtenção da autorização para a doação ou se realmente é melhor que se permaneça como está.

Por tudo o que foi demonstrado, evidenciada está a relevância social, jurídica e acadêmica no objeto de estudo abordado, cabendo, dessa feita, atentar-se para a plausibilidade ou não da atualização do tratamento conferido às doações e do modo de repressão estatal à máfia nacional e transnacional atuante no tráfico de órgãos.

(12)

CAPÍTULO I

DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS HUMANOS

Para entender a dinâmica do tráfico de órgãos humanos e a violação infligida à dignidade da pessoa humana, é preciso antes compreender o universo da doação e transplante, sua evolução história, a legislação aplicável e o processo que envolve a identificação, captação e distribuição dos órgãos, que serão objeto do presente capítulo.

1.1 Breve apanhado da história dos transplantes de órgãos e tecidos

O corpo humano passou a ser estudado em seu aspecto anatômico a partir do século XVI, na Era Moderna, quando se iniciou um processo de secularização do homem, que permitiu o avanço da ciência. Deixando de ser visto como sagrado e intocável, o corpo humano passa a ser objeto de investigações científicas. Nesse cenário foram possibilitados os experimentos com transplantações, a começar pelo estudo voltado à busca das técnicas apropriadas à permuta de tecidos a partir do século XVI, evoluindo para os transplantes dentários no século XVIII1.

A história médica conta que a primeira transplantação humana realizada com sucesso consistiu em um autotransplante de pele, de autoria do genovês Jacques-Louis Reverdin, em 18692, mas foi somente a partir de 1880 que o transplante de

órgãos surgiu como medida terapêutica. No século XX, inaugurou-se a fase moderna dos transplantes, primeiro com o desenvolvimento de uma técnica de sutura vascular e, na segunda metade do século, com a descoberta de imunossupressores aptos a prevenir e tratar a rejeição.

A evolução dos transplantes também foi impulsionada pela ocorrência de um atentado político em Lion contra a vida do então presidente da França, Marie-François Sadi Carnot (1837-1894), que culminou em sua morte e motivou a procura por habilidades adequadas para estancar sangramentos. Nesse momento entra em cena um jovem cirurgião daquela localidade, Alexis Carrel, que se empenhou para enfrentar

1 Para aprofundar o estudo do contexto histórico dos transplantes, recomenda-se a leitura da obra

Doação e transplante de órgãos e tecidos de Clotilde Druck Garcia, Japão Dröse Pereira e Valter Duro Garcia (2015, p. 1-17).

2 GARCIA, 2006, p. 3 apud BUONICORE, Giovanna Palmieri. Tráfico de Órgãos Humanos: análise

(13)

a questão e acabou por criar, ao final do século XIX e início do século XX, o método de triangulação da sutura vascular, que vem sendo empregado até os dias atuais na realização de transplantes3.

Os primeiros experimentos foram feitos com o transplante de rins em animais, apresentando resultados anatômicos positivos, mas malsucedidos quanto à funcionalização dos órgãos, uma vez que não existiam naquela época mecanismos próprios à prevenção da rejeição do organismo contra tecidos estranhos. Nos seres humanos, os transplantes também começaram com os rins. Em 3 de abril de 1933, Yu Yu Voronoy realizou o primeiro alotransplante4 renal em humanos já documentado,

sem, contudo, obter sucesso5.

Diante dos impasses relacionados à rejeição do organismo do receptor, estabilizou-se durante décadas o consenso geral de que apenas o transplante entre pessoas com o sistema imunológico similar poderia dar certo, o que equivalia a dizer que o êxito dos transplantes dependeria da realização da intervenção cirúrgica entre gêmeos idênticos. Somente em 1959 a barreira imunológica foi derrubada, com o emprego de radiação no corpo humano. No entanto, a descoberta não se mostrou tão eficaz, na medida em que causava a depressão da medula óssea. Assim, as drogas imunossupressoras apareceram como solução, possibilitando, a partir de 1964, o ligeiro avanço dos transplantes renais, que se tornaram uma prática padrão para o tratamento da insuficiência renal.

Em 1965 se iniciaram os experimentos com transplantes de outros órgãos, mas que não apresentaram bons resultados na época, tendo sido retomados apenas em 1980, com a descoberta dos efeitos imunossupressores de uma nova medicação, a ciclosporina.

No Brasil, o primeiro transplante renal foi realizado no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro em 1964. Em 1965, desenvolvia-se no Hospital das Clínicas em São Paulo um programa pioneiro no país para o transplante de rins e, poucos anos mais tarde, o procedimento já era realizado com outros órgãos6.

3 GARCIA, Clotilde Druck; PEREIRA, Lapão Dröse; GARCIA, Valter Duro. Doação e transplante de

órgãos e tecidos. São Paulo: Segmento Farma, 2015, p. 5-6. Disponível em:

<http://www.adote.org.br/assets/files/LivroDoacaOrgaosTecidos.pdf>. Acesso em: 05 out. 2018.

4 Alotransplante, também chamado de homotransplante ou transplante alogênico, é aquele realizado

entre indivíduos do mesmo gênero, mas com diferentes caracteres hereditários, a exemplo do transplante feito de um homem para outro (BUONICORE, op. cit., 2014, p. 13).

5 GARCIA, C. D.; PEREIRA, L. D.; GARCIA, V. D.,op. cit., 2015, p. 10. 6 Id., p. 44.

(14)

Naquela época, porém, não se contava com estrutura adequada, tampouco havia controle, fiscalização ou financiamento estatal, sendo a participação governamental limitada à promulgação das leis de transplantes de 1963 e 1968. Além disso, a busca de doadores e a alocação de órgãos e tecidos recaíam unicamente sobre os próprios centros de transplante, o que dificultava a eficácia do sistema. Somente em 1986 e 1987 é que foram criadas outras organizações com essa finalidade, a exemplo do Programa de Imunogenética e Transplante de Órgãos no Rio de Janeiro (PITO-RJ), do São Paulo Interior Transplante (SPIT) e da Coordenação de Transplantes do Rio Grande do Sul (RS-Tx), resultando no aumento do número de transplantes7.

Nos anos seguintes também tiveram início as regulamentações estatais por meio de portarias ministeriais, que visaram normatizar, fiscalizar e financiar alguns tipos de transplante, além de o governo ter passado a fornecer o medicamento imunossupressor.

No final da década de 90, o governo federal assumiu o controle de todo o processo de doação e transplante, criando o Sistema Nacional de Transplante (SNT), que é o órgão responsável pela política de transplantes no Sistema Único de Saúde (SUS) e tem como objetivo precípuo garantir a transparência do processo doação-transplante, conferindo-lhe confiabilidade. Em âmbito estadual, foram criadas as Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDOs), entes executivos que têm a função de coordenar as atividades no respectivo estado, gerenciando as listas únicas de receptores em espera, atuando na inscrição e classificação de potenciais doadores, na captação e distribuição dos órgãos e tecidos e formulando políticas estaduais de transplante.8

Em 1998, foram destinados recursos ao Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (FAEC), um fundo federal criado para o financiamento dos transplantes e remédios imunossupressores, inclusive do acompanhamento pós-transplante, e também foram promovidos cursos de profissionalização de coordenadores hospitalares de transplante, investindo-se na educação em doação de órgãos.9

Já em 2000 foram criadas a Central Nacional de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNNCDO), para coordenar a lista única nacional, a repartição

7 GARCIA, C. D.; PEREIRA, L. D.; GARCIA, V. D.,op. cit., 2015, p. 47-48. 8 Id., p. 50.

(15)

e o transporte aéreo de órgãos entre os estados, e a Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT), para o gerenciamento hospitalar dos transplantes.10

Desse modo o Brasil consolidou um programa de transplantes que se destacou pelo aumento do percentual de doações e de transplantes, democratizando a destinação dos órgãos e tecidos captados e impulsionando essa prática terapêutica com investimentos públicos. Não obstante, essa política deve permanecer em constante aprimoramento, a fim de que se permita salvar e melhorar a vida do maior número de pessoas possível.11 Tendo isso em vista, passarão a ser estudadas as

nuances do processo que envolve a doação e o transplante de órgãos.

1.2 O processo de doação e transplante

O transplante de órgãos e tecidos humanos é uma medida terapêutica que visa a retomada pelo paciente de suas atividades pessoais e laborais, aumentando a sua expectativa de vida em razão da substituição da parte do seu organismo que se encontra com o funcionamento comprometido. A definição de transplante está indivisivelmente atrelada ao ato de doar, na medida em que este torna possível o início do procedimento médico, que se dá mediante a detecção de um potencial doador12.

Segundo Carlos Maria Romeo Casabona, o transplante é:

uma técnica cirúrgica, denominada cirurgia substitutiva, que se caracteriza em essência porque introduz no corpo do paciente um órgão ou tecido pertencente a outro ser humano, vivo ou falecido, com o fim de substituir outros da mesma entidade pertencente ao receptor, porém, que tenham perdido total ou sensivelmente a sua função. A natureza deste tipo de intervenção, do ponto de vista do receptor, posto que em relação ao doador a situação é diversa, é de estimá-la, em consequência, como uma intervenção curativa, sempre que exista a indicação terapêutica e se aplique a técnica adequada ao caso.13 (grifos deste trabalho)

10 GARCIA, C. D.; PEREIRA, L. D.; GARCIA, V. D.,op. cit., 2015, p. 51-52.

11 Para melhor compreensão do histórico dos transplantes no Brasil, recomenda-se o estudo da obra

já citada, de Clotilde Druck Garcia, Japão Dröse Pereira e Valter Duro Garcia (op. cit., 2015, p. 43-58).

12 A Organização Mundial da Saúde (OMS) utiliza a nomenclatura "potencial doador" para se referir

àquele paciente que se encontra no momento após a abertura do protocolo para o diagnóstico da morte encefálica (GARCIA, C. D.; PEREIRA, L. D.; GARCIA, V. D., op. cit., 2015, p. 24).

(16)

O doador, por sua vez, é o principal elemento desse processo, visto que é quem possibilitará, por meio da disposição de seus órgãos e tecidos em vida ou depois de falecido, o tratamento do receptor.

Quando o sujeito ativo do transplante (o doador) é pessoa viva, devem lhe ser resguardados certos cuidados para a proteção de sua saúde. Nesses casos, a legislação brasileira permite a extração de órgãos duplos, de tecidos, de partes de órgãos ou de outras partes do corpo somente quando não impossibilitar a sobrevida do doador ou colocar em risco a sua integridade e não comprometer suas aptidões vitais e saúde mental, tampouco lhe causar mutilação ou deformação inaceitável14.

Nessa modalidade de doação, denominada inter vivos, podem ser doados um dos rins, parte do fígado, parte do pulmão e parte do pâncreas, por exemplo.

São também requisitos legais para a doação entre vivos a gratuidade do ato e a capacidade jurídica15 do disponente, além da indispensabilidade do procedimento

à pessoa do receptor, que poderá ser o cônjuge, companheiro16, parente

consanguíneo até o quarto grau ou qualquer outra pessoa, desde que, no caso desta, se obtenha autorização judicial.

Faz-se, ainda, primordial que o doador consinta expressamente com o ato de disposição de seu próprio corpo, autorizando especificamente a retirada de

14 "Art. 9o É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes

do próprio corpo vivo [...]. [...] § 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o

organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica

comprovadamente indispensável à pessoa receptora." (grifos deste trabalho). BRASIL. Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Brasília, DF, Diário Oficial da

União, 5 fev. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cCivil_03/LEIS/L9434.htm>. Acesso

em: 14 out. 2018.

15 Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 95-97), a capacidade jurídica divide-se em

capacidade de direito ou de gozo, que acompanha a todos os seres humanos e se traduz na aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações, e capacidade de fato ou de exercício, que é a aptidão para exercer por si só os atos da vida civil, sem necessitar de assistência ou

representação.

16 Apesar de a Lei nº 9.434/97 se referir somente à disposição do corpo vivo entre cônjuges, o

Decreto nº 9.175, de 18 de outubro de 2017, inclui em seu art. 27 a pessoa do companheiro nas hipóteses de doação independente de autorização judicial. "Art. 27. Qualquer pessoa capaz, nos termos da lei civil, poderá dispor de órgãos, tecidos, células e partes de seu corpo para serem retirados, em vida, para fins de transplantes ou enxerto em receptores cônjuges, companheiros ou parentes até o quarto grau, na linha reta ou colateral." BRASIL. Decreto nº 9.175, de 18 de outubro de 2017. Regulamenta a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, para tratar da disposição de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Brasília, DF, Diário Oficial da União, 19 out. 2017. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/cCivil_03/_Ato2015-2018/2017/Decreto/D9175.htm>. Acesso em: 14 out. 2018.

(17)

determinado órgão ou tecido17. É o que se chama de consentimento informado, em

que se exige a concordância formal da pessoa em vida. Ademais, para que seja válido, devem lhe ser informadas todas as consequências e riscos do procedimento18,

levando-se em consideração o seu histórico clínico. Conforme assevera Gafo Fernández:

Um aspecto ético fundamental é o consentimento esclarecido, tanto do receptor como especialmente do doador. O esclarecimento deve ser o mais completo possível, mostrando as probabilidades de sucesso e as previsíveis consequências para o doador a curto e a longo prazos.19

Por outro lado, para a disposição do corpo post mortem requer-se a constatação da morte encefálica e o consentimento expresso da família20. No primeiro

caso, fica a cargo do Conselho Federal de Medicina estabelecer os critérios para o diagnóstico da morte encefálica, que atualmente estão regulados pela Resolução CFM nº 2.173, de 15 de dezembro de 201721. Basicamente, o doador em morte

encefálica é o indivíduo que sofreu a parada total e irreversível de suas funções encefálicas, mas que tem os batimentos cardíacos e a pressão sanguínea mantidos artificial e temporariamente22.

Já o consentimento para a doação é obtido mediante entrevista familiar, quando a família do falecido deverá ser informada do diagnóstico da morte encefálica e da possibilidade de doação de seus órgãos, sendo consultada e orientada acerca do procedimento para o transplante, recebendo o apoio necessário à tomada de decisão.

Tal processo é composto por etapas concatenadas que permitem a transformação dos órgãos de uma pessoa falecida em órgãos passíveis de

17 "Art. 9o [...] §4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas,

especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada." (BRASIL, op. cit., 1997).

18 "Art. 29 [...] §2º O doador vivo será prévia e obrigatoriamente esclarecido sobre as consequências e

os riscos decorrentes da retirada do órgão, tecido, células ou parte do seu corpo para a doação." (BRASIL, op. cit., 2017).

19 FERNÁNDEZ, 2000, p. 288 apud BUONICORE, op. cit., 2014, p. 17.

20 "Art. 17. A retirada de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano poderá ser efetuada após

a morte encefálica, com o consentimento expresso da família, conforme estabelecido na Seção II deste Capítulo." (BRASIL, op. cit., 2017).

21 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.173, de 15 de dezembro de 2017. Define

os critérios do diagnóstico de morte encefálica. Brasília, DF, Diário Oficial da União, 15 dez. 2017. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2017/2173>. Acesso em 14 out. 2018.

(18)

transplantação. Valter Duro Garcia, juntamente com outros autores, explicita esse sequenciamento:

O processo de doação-transplante começa com a identificação dos potenciais doadores, segue com a realização dos testes de morte encefálica, com a comunicação da morte aos familiares e com a notificação aos profissionais responsáveis pela procura de doadores, os quais iniciam a logística da doação com a entrevista familiar para a autorização da doação, seguindo-se a avaliação do potencial doador nos casos de autorização familiar e com os demais procedimentos, até a remoção dos órgãos.23

Depois da extração dos órgãos e tecidos, são feitos os transplantes e as pessoas que os receberam passam a ser monitoradas, a fim de se verificar o real benefício da intervenção cirúrgica.

Como se percebe, é um processo complexo, que envolve diversos personagens e variáveis, e que por isso não alcança maior efetividade na transformação de doadores potenciais em efetivos. Dentre outros motivos para a baixa taxa de efetivação das doações, se destaca a recusa das famílias, contraindicações médicas e dificuldades na manutenção do possível doador falecido. Diante de tais obstáculos, não se pode deixar de buscar incessantemente o aprimoramento desse sistema, para que assim se possa atingir resultados cada vez mais satisfatórios. Para isso, é importante compreender o funcionamento do Sistema Nacional de Transplantes e analisar a situação atual do país no que se refere ao binômio doação-transplante.

1.3 Panorama geral do Sistema Nacional de Transplantes

A lei de transplantes promulgada no início de 1997, vigente até os dias atuais, foi o estímulo final para a criação do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), que já vinha sendo idealizado pelo Ministério da Saúde desde 1995. Assim, com a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, e a regulamentação dada pelo Decreto nº 2.268, de 30 de junho de 1997, o controle dos transplantes foi assumido pelo governo federal e instituiu-se uma política nacional de transplantes no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), de responsabilidade do SNT, que tem como atividade principal garantir

(19)

a transparência no processo de doação e transplante e assistir com qualidade o cidadão.24

Também em 1997 foram implementadas as centrais estaduais de transplante, denominadas Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO), responsáveis por coordenar as atividades de procura e transplante a nível estadual. Mais à frente, em 2000, foram criadas a Central Nacional de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNNCDO), objetivando a administração da lista única nacional de espera e a distribuição e transporte de órgãos entre os estados, e a Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT), financiadas pelos próprios hospitais de procura para gerenciar os transplantes nos hospitais em que se encontram potenciais doadores e possibilitar a doação nesses locais.25

Por fim, em 2009, por meio de portaria específica, foi instituído no SNT o Plano Nacional de Implantação de Organizações de Procura de Órgãos (OPOs), baseado em um modelo americano de procura supra-hospitalar e que busca organizar e amparar o processo de doação-transplante e identificar soluções para o seu aprimoramento, recebendo, para tanto, financiamento federal e, em alguns casos, também estadual.26

Dessa forma, o Brasil desenvolveu um sistema com esferas de atuação em nível nacional (CNNCDO), estadual (CNCDOs), supra-hospitalar (OPOs) e hospitalar (CIHDOTTs), configurando-se em um dos maiores programas públicos mundiais de transplante de órgãos e que permitiu o alcance de resultados mais eficientes27.

Apesar disso, ainda é evidente a desproporção entre o número de pacientes que necessitam de transplante e a quantidade de transplantes efetivados, o que se conclui pela análise dos dados disponibilizados pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) por meio dos relatórios trimestrais elaborados pelo Registro Brasileiro de Transplantes (RBT) desde 1997.28

24 GARCIA, C. D.; PEREIRA, L. D.; GARCIA, V. D., op. cit., 2015, p. 168. 25 Id., loc. cit.

26 Ibid., p. 169.

27 Para aprofundar o estudo acerca da estruturação do Sistema Nacional de Transplantes,

recomenda-se a leitura da obra já citada de GARCIA, C. D.; PEREIRA, L. D.; GARCIA, V. D., op. cit., 2015, p. 167-184.

28 Conclusão obtida por meio da análise dos relatórios disponíveis no sítio

http://www.abto.org.br/abtov03/default.aspx?mn=515&c=900&s=0&friendly=registro-brasileiro-de-transplantes-estatistica-de-transplantes.

(20)

Verifica-se que, no primeiro semestre de 2018, foram realizados 4.257 transplantes de órgãos sólidos (compreendidos coração, fígado, pâncreas, pâncreas/rim, pulmão e rim)29, o que representa um aumento de apenas 1,16% em

relação ao mesmo período de 201730. Já no que toca ao número de pacientes ativos

na lista de espera por esses órgãos, o aumento foi de 6,34%, considerando que em junho de 2018 havia 24.142 pacientes à espera31 e em junho de 2017, 22.70232.

Percebe-se, pois, que o aumento no número de transplantes não consegue acompanhar a crescente necessidade por sua realização. Além disso, apesar de vir aumentando o número de doadores efetivos33, também é crescente a quantidade de

não doadores34, que se dá principalmente em razão da não autorização da família.

Essas constatações evidenciam a necessidade do constante aperfeiçoamento da política de transplantes do país, a fim de que as dificuldades do processo sejam identificadas e possam ser empregados os meios adequados para equilibrar a oferta de órgãos e a demanda por transplantes, o que inclui a ampliação da conscientização da população sobre a importância do ato de doar os órgãos de seus entes falecidos.

1.4 Evolução normativa da doação e transplante de órgãos no Brasil

A primeira regulação acerca da retirada e transplante de órgãos e tecidos no Brasil foi feita pela Lei nº 4.280, de 6 de novembro de 1963, que permitia o procedimento apenas na modalidade pós-morte. A autorização para a intervenção cirúrgica exigia uma tripla manifestação: afirmação escrita deixada pelo potencial doador; não oposição do cônjuge ou de outros parentes até o segundo grau; e

29BRASIL. Registro Brasileiro de Transplantes. Veículo oficial da Associação Brasileira de

Transplante de Órgãos. Ano XXIV, n. 2, jan./jun. 2018, p. 2. Disponível em:

<http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2018/rbt2018-1-populacao.pdf>. Acesso em: 15 out. 2018.

30BRASIL. Registro Brasileiro de Transplantes. Veículo oficial da Associação Brasileira de

Transplante de Órgãos. Ano XXIII, n. 2, jan./jun. 2017, p. 2. Disponível em:

<http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2017/rbt-leitura-sem.pdf>. Acesso em: 15 out. 2018.

31BRASIL, op. cit., jan./jun. 2018, p. 15. 32BRASIL, op. cit., jan./jun. 2017, p. 17.

33 A Organização Mundial da Saúde (OMS) utiliza a nomenclatura "doador efetivo" já foi iniciada a

cirurgia para a extração de órgãos (GARCIA, C. D.; PEREIRA, L. D.; GARCIA, V. D., op. cit., 2015, p. 24).

34 Informações obtidas por meio do cruzamento dos dados disponibilizados no RBT pela ABTO nos

(21)

consentimento das corporações religiosas ou civis responsáveis pelo destino dos despojos mortais35.

Autonomamente, a referida legislação aplicava-se unicamente ao transplante de córneas, tendo em vista que expressamente condicionava a extirpação de quaisquer outras partes do cadáver à futura regulamentação do Poder Executivo, o que nunca chegou a se concretizar, acentuando-se a ineficácia da lei.

Em 10 de agosto de 1968, nova lei entra em vigor, sob o nº 5.479, revogando plenamente a anterior. Dentre as novidades, destaca-se a possibilidade de disposição gratuita do próprio corpo vivo para fins terapêuticos, desde que não importasse em prejuízo ou mutilação grave para o doador36.

Tanto para a doação em vida quanto para a pós-morte exigia-se a autorização expressa do disponente. Além disso, a permissão para o aproveitamento das partes do cadáver também poderia ser obtida pela manifestação do cônjuge não separado, dos descendentes, ascendentes e colaterais, sucessivamente, das composições religiosas ou civis responsáveis pelos despojos ou, em último caso, pelo diretor do instituto onde ocorrido o óbito37.

A lei seguinte, promulgada em 18 de novembro de 1992 sob o nº 8.489, assemelhou-se em muito ao ato normativo de 1968, então revogado. No entanto, trouxe significantes alterações quanto ao modo de obtenção da autorização para a

35 "Art. 1º É permitida a extirpação de partes de cadáver, para fins de transplante, desde que o de

cujus tenha deixado autorização escrita ou que não haja oposição por parte do cônjuge ou dos parentes até o segundo grau, ou de corporações religiosas ou civis responsáveis pelo destino dos despojos." BRASIL. Lei nº 4.280, de 6 de novembro de 1963 (revogada). Dispõe sobre a extirpação de órgãos ou tecido de pessoa falecida. Brasília, DF, Diário Oficial da União, 11 nov. 1963. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4280.htm>. Acesso em: 6 out. 2018.

36 "Art. 10. É permitido à pessoa maior e capaz dispor de órgãos e partes do próprio corpo vivo, para

fins humanitários e terapêuticos. §1º A autorização do disponente deverá especificar o tecido, ou órgão, ou a parte objeto da retirada. §2º Só é possível a retirada, a que se refere este artigo, quando se tratar de órgãos duplos ou tecidos, vísceras ou partes e desde que não impliquem em prejuízo ou mutilação grave para o disponente e corresponda a uma necessidade terapêutica, comprovadamente indispensável, para o paciente receptor." BRASIL. Lei nº 5.479, de 10 de agosto de 1968 (revogada). Dispõe sobre a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes de cadáver para finalidade terapêutica e científica, e dá outras providências. Brasília, DF, Diário Oficial da

União, 14 ago. 1968. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L5479.htm#art16>. Acesso em: 6 out. 2018.

37 "Art. 3º A permissão para o aproveitamento, referida no art. 1º, efetivar-se-á mediante a satisfação

de uma das seguintes condições: I - Por manifestação expressa da vontade do disponente; II - Pela manifestação da vontade, através de instrumento público, quando se tratar de disponentes

relativamente incapazes e de analfabetos; III - Pela autorização escrita do cônjuge, não separado, e sucessivamente, de descendentes, ascendentes e colaterais, ou das corporações religiosas ou civis responsáveis pelo destino dos despojos; IV - Na falta de responsáveis pelo cadáver a retirada, somente poderá ser feita com a autorização do Diretor da Instituição onde ocorrer o óbito, sendo ainda necessária esta autorização nas condições dos itens anteriores." (BRASIL, op. cit., 1968).

(22)

doação, além de ter previsto pela primeira vez a morte encefálica como momento habilitador da retirada de órgãos e tecidos do cadáver. Entretanto, a exigência de prova incontestável da morte do encéfalo, originalmente contida no art. 2º, foi vetada pelo ex-Presidente da República Itamar Franco, sob o argumento de que outras condições de morte também permitiriam o transplante e, se do outro modo o fosse, estar-se-ia obstaculizando o alcance da doação38.

No que toca à doação entre pessoas vivas, a Lei nº 8.489/92, editada já sob a égide da Constituição Federal de 1988, passou a limitá-la aos casos em que o doador e o receptor fossem parentes próximos, sendo exigido, nos demais casos, autorização judicial39. Por sua vez, quanto aos transplantes realizados na modalidade

post mortem, a nova lei manteve a possibilidade de expressa disposição de vontade manifestada em vida pelo disponente, mas, na falta de documento que comprovasse esse desejo, a permissão para o aproveitamento passava a depender unicamente da ausência de recusa do cônjuge, ascendente ou descendente40.

Ressalte-se, nesse ponto, que a atuação dos parentes, que antes deveria se materializar na ação de "autorizar" a remoção dos órgãos e tecidos do falecido, com a nova lei se caracteriza como uma conduta negativa, a de não se opor ao procedimento. O objetivo dessa mudança pode ter sido o de criar uma situação normativa que favorecesse a aceitação da doação, uma vez que se presumia que, se tivesse havido alguma manifestação, esta seria no sentido de autorizar a disposição

38 SALES, Eduardo Roberto de. A doação pós-morte de órgãos e tecidos no Brasil após a edição da Medida Provisória nº 2.083-32/01. Macaé: RIUFF, 2018. p. 23.

39 "Art. 10. É permitida à pessoa maior e capaz dispor gratuitamente de órgãos, tecidos ou partes do

próprio corpo vivo para fins humanitários e terapêuticos. §1° A permissão prevista no caput deste artigo limita-se à doação entre avós, netos, pais, filhos, irmãos, tios, sobrinhos, primos até

segundo grau inclusive, cunhados e entre cônjuges. §2° Qualquer doação entre pessoas não relacionadas no parágrafo anterior somente poderá ser realizada após autorização judicial. §3°

O disponente deverá autorizar especificamente o tecido, órgãos ou parte do corpo objeto da retirada. §4° Só é permitida a doação referida no caput deste artigo quando se tratar de órgãos duplos, partes de órgãos, tecidos, vísceras ou partes do corpo que não impliquem em prejuízo ou mutilação grave para o disponente e corresponda a uma necessidade terapêutica

comprovadamente indispensável à pessoa receptora." (grifos deste trabalho). BRASIL. Lei nº 8.489, de 18 de novembro de 1992 (revogada). Dispõe sobre a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, com fins terapêuticos e científicos e dá outras providências. Brasília, DF,

Diário Oficial da União, 19 nov. 1992. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1989_1994/L8489impressao.htm>. Acesso em: 6 out. 2018.

40 "Art. 3° A permissão para o aproveitamento, para os fins determinados no art. 1° desta lei,

efetivar-se-á mediante a satisfação das seguintes condições: I - por desejo expresso do disponente manifestado em vida, através de documento pessoal ou oficial; II - na ausência do documento referido no inciso I deste artigo, a retirada de órgãos será procedida se não houver manifestação em contrário por parte do cônjuge, ascendente ou descendente." (BRASIL, op. cit., 1992).

(23)

das partes do corpo. Ademais, a inexistência de parentes implicaria em necessária impossibilidade de oposição, o que também equivaleria à permissão para a doação41.

Todavia, a regulamentação dada à Lei nº 8.489/92 pelo Decreto nº 879, de 22 julho de 1993, criou exigência incompatível com o ato normativo primário, na medida em que o parágrafo sétimo de seu art. 3142 estabeleceu a obrigatoriedade de

documento escrito e assinado pelo familiar autorizando a doação, ao passo que a lei exigia mera ausência de oposição.

A despeito disso, como pode se perceber, a tendência do legislador vinha sendo no sentido de conferir ao próprio doador em potencial a tomada de decisão a respeito da doação pós-morte. Somente quando não houvesse declaração expressa da sua vontade é que se buscavam outros meios para suprimir essa ausência, sempre com o intuito de tornar possível a realização do transplante na tentativa de preservar a vida alheia, primando-se, assim, pelo interesse público.

Entretanto, com o advento da Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, até então vigente e regulamentada atualmente pelo Decreto nº 9.175, de 18 de outubro de 2017, foram introduzidas três inovações substanciais, cujos desdobramentos merecem ser destacados, a saber: a necessidade de comprovação da morte encefálica; a forma de manifestação de vontade para a doação pós-morte; e os requisitos para a disposição gratuita do próprio corpo vivo.

Por óbvio, a extração de um órgão indispensável à vida somente pode ser realizada na modalidade pós-morte. Enquanto alguns órgãos permanecem em funcionamento por certo tempo, permitindo o transplante após a parada cardíaca do doador (a exemplo das córneas e dos rins), outros requerem que a sua retirada ocorra ainda com o seu coração pulsando (como no transplante de coração e fígado),

41 TRONO, Arthur Abbade. Estudo comparado da regulamentação da doação de órgãos pós-morte.

Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo, 2013, p. 10. Disponível em:

<http://www.tcc.sc.usp.br/tce/disponiveis/89/890010/tce-27112013-161535/?&lang=br>. Acesso em: 6 out. 2018.

42 "Art. 31. O Ministério da Saúde providenciará modelo simplificado e padronizado de documento de

doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano que será reproduzido e distribuído, gratuitamente, à população, por intermédio dos órgãos gestores do Sistema Único de Saúde e outros por eles autorizados. (…) §7º Se o cônjuge, ascendente ou descendente não se opuser à retirada do tecido, órgão ou parte do corpo do seu familiar, e não houver manifestação de vontade, em vida, do falecido, contrária àquela utilização, o dirigente do hospital exigirá dos familiares documento escrito e assinado com a autorização." (BRASIL, 1992).

(24)

fazendo-se necessária a constatação de um quadro clínico irreversível, chamado de morte encefálica.43

Tendo isso em vista, a nova lei de transplantes passou a exigir o diagnóstico prévio da morte encefálica como requisito para a retirada de órgãos do doador após seu falecimento, mas reservou ao Conselho Federal de Medicina a definição dos critérios clínicos e tecnológicos a serem observados44, que estão atualmente

relacionados na Resolução CFM nº 2.173, de 15 de dezembro de 2017.

No que diz respeito à manifestação da vontade para doar, o art. 4º da Lei nº 9.434/97, em sua redação original, previa que a retirada de tecidos, órgãos e outras partes do corpo humano para fins de transplante post mortem presumir-se-ia autorizada sempre que não houvesse manifestação de vontade em sentido contrário45, não fazendo qualquer menção à manifestação dos familiares. Dessa

forma, passou a ser adotado no Brasil um modelo de consentimento presumido ou de silêncio-consentimento46, a exemplo do que vinha acontecendo em países da Europa.

Assim, a pessoa que não desejasse doar deveria registrar em seu documento de identificação ou carteira nacional de habilitação a expressão "não doador de órgãos e tecidos".

Gafo Fernández ressalta a diferença entre o consentimento expresso e o presumido, aduzindo que:

é importante frisar que as legislações que exigem o consentimento expresso consideram que a vontade do falecido deve prevalecer sobre o desejo dos seus familiares, enquanto as que requerem o consentimento "presumido" ou tácito entendem que o benefício proporcionado pelos transplantes a terceiros prevalece sobre a vontade e o desejo da família. Por isso, costuma-se dizer que esse tipo de legislação "socializa" os órgãos, que se tornam, quando o

43BRASIL. Comissão parlamentar de inquérito com a finalidade de investigar a atuação de

organizações criminosas atuantes no tráfico de órgãos humanos. Relatório Final. Câmara dos

Deputados. Brasília, DF, nov. 2004, p. 21. Disponível em:

<http://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/52-legislatura/cpiorgao/relatoriofinal.pdf>. Acesso em: 5 out. 2018.

44"Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a

transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina." (BRASIL, op. cit., 1997).

45 "Art. 4º (revogado) Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta Lei, presume-se

autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem." (BRASIL, op. cit., 1997).

46 BERLINGUER, Giovanni; GARRAFA, Volnei. Tradução de Isabel Regina Augusto. A mercadoria final: a comercialização de parte do corpo humano. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2ª

(25)

interessado não se manifestou expressamente contrário à extração, patrimônio da comunidade.47

Como se pode perceber, a intenção normativa era a de aumentar o número de potenciais doadores e diminuir o tempo de espera por um transplante, mas o que se viu foi um enorme repúdio da sociedade brasileira, que, por ausência de informação adequada, acreditava estar sendo violada em sua dignidade. Isso se deu em virtude da falta de diálogo e debate com especialistas e com a própria população, o que impossibilitou a compreensão popular da previsão legal e o rompimento de uma cultura de valorização da vontade familiar que vinha se perpetuando desde a década de 60.48

Realmente, partindo-se de uma análise perfunctória, poder-se-ia concluir que a doação presumida seria a melhor solução para suprir o desequilíbrio entre a oferta e a demanda de transplantes, acreditando-se que valorizar a decisão dada em vida pela pessoa, em vez da vontade da família, exprime maior justiça ao ato de doar e amplia a autodeterminação individual, fazendo prevalecer o benefício social gerado pelo transplante e conferindo uma conotação socializadora aos órgãos humanos.49

Entretanto, o que se verificou foi que cerca de 60% a 70% da população brasileira se declarou como "não doadora" logo após a edição da lei, ultrapassando o resultado esperado à luz do que vinha ocorrendo em Portugal, Espanha e África, por exemplo, onde o sistema da doação presumida alcançou maior efetividade. A crítica que se fez à época foi de que o Brasil, ao criar a hipótese de consentimento presumido, tentou espelhar-se em uma legislação de Primeiro Mundo quando suas condições nacionais estariam distantes de tal realidade, levando-se em conta o estágio de desenvolvimento econômico e educacional da sociedade.50

Assevera-se que os cidadãos brasileiros não estariam instruídos o suficiente ao ponto de informar-se adequadamente acerca da doação de órgãos, o que os fariam alimentar um sentimento de descrédito no sistema sanitário público, temendo a violação da dignidade do cadáver e, ainda, a possibilidade de aceleração de sua morte para fins de transplantes.51

47 FERNÁNDEZ, 2000, p. 298 apud BUONICORE, op. cit., 2014, p. 20. 48 BERLINGUER; GARRAFA, op. cit., 2001, p. 30.

49 Id., p. 27-28. 50 Ibid., p. 29. 51 Ibid., 2001, p. 30.

(26)

A alteração do modo de autorização também não encontrou guarida no posicionamento de renomados juristas na época. Paulo Roberto Gouvêa Medina criticava o excesso de burocratização na exigência de que a pessoa comparecesse a um órgão oficial para manifestar a sua escolha. Afirmava, ainda, que a tradição nacional não aceitaria a classificação do cadáver como um bem de domínio comum do qual o Estado poderia dispor na ausência de manifestação expressa em contrário feita pela pessoa em vida.52

No mesmo sentido, Celso Ribeiro Bastos destacava que o modelo adotado pela Lei de Transplantes teria como resultado a legitimação de um confisco do corpo humano pelo Estado, afigurando-se em verdadeira violação à dignidade humana, porquanto decorreria de uma imposição estatal, e não da manifestação de vontade que é típica do ato de doação.53

Em resposta a todas as críticas que se fizeram, em 23 de janeiro de 2001 foi editada a Lei nº 10.211, por meio da qual se inseriu uma modificação substancial na Lei nº 9.434/97, mas que igualmente desperta discussões. O art. 4º passou a prever que a retirada de partes do corpo da pessoa falecida dependeria, além da comprovação da morte encefálica, da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade54. Dessa forma, colocou-se fim ao consentimento presumido, mas, por outro

lado, retirou-se a possibilidade de autorização a partir da manifestação em vida da pessoa que vem a óbito, cabendo exclusivamente à família consentir com a doação. Gustavo Noronha de Ávila e Luiz Alberto Brasil Simões Pires Filho explicam que a Lei nº 10.211/01 inseriu uma espécie de "veto familiar", na medida em que, independentemente da inequívoca vontade do sujeito de dispor dos seus órgãos depois de falecido, basta que haja a recusa da família para que a doação não ocorra.55

52 MEDINA apud TRONO, op. cit., 2013, p. 17. 53 BASTOS apud TRONO, op. cit., 2013, p. 18.

54 "Art. 4o (redação dada pela Lei nº 10.211, de 23 de março de 2001) A retirada de tecidos, órgãos e

partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte." (BRASIL, op. cit., 1997).

55 PIRES FILHO, L. A. B. S.; ÁVILA, G. N. de. Dos limites do consentimento do ofendido nas

intervenções médicas: o caso dos transplantes de órgãos. Sistema Penal e Violência, Porto Alegre, v. 4, n. 2, jul./dez. 2012, p. 227. Disponível em:

<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/7091/8814>. Acesso em: 5 out. 2018.

(27)

Outra mudança relevante propiciada originalmente56 pela Lei nº 9.434/97 diz

respeito à retirada da exigência de autorização judicial para a disposição gratuita do próprio corpo vivo quando os sujeitos envolvidos não guardassem relação de parentesco. No entanto, o retorno ao modelo adotado pela Lei nº 5.479/68 parece não ter sido bem recebido, considerando que poucos anos depois da edição da atual Lei de Transplantes foi editada a Lei nº 10.211/01, que alterou também a redação do art. 9º, voltando a exigir a autorização judicial para doações entre vivos que não fossem cônjuges ou parentes consanguíneos até o quarto grau57.

Isso se deu, provavelmente, em razão do acréscimo significativo do número de doações realizadas entre pessoas vivas e não parentes, o que levantou a suspeita de que a desburocratização desse procedimento estaria abrindo margem ao comércio clandestino de transplantes. A título ilustrativo, segundo as informações disponibilizadas pela Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), até a edição da lei em 1997 sabe-se que, a cada 5 transplantes de rim, 3 envolviam doador cadáver e 2, doador vivo. Com a promulgação da nova lei de transplantes, o número de doações inter vivos ultrapassou em muito o percentual de doações post mortem, o que deu ensejo à suspeita de que a nova disciplina legal estaria fomentado, desinteressadamente, o comércio ilegal de órgãos e tecidos, possibilitando a pessoas ricas oferecerem dinheiro aos vulneráveis em troca de uma parte de seu corpo58.

Assim, é importante, a partir desse ponto, estudar as nuances que permeiam o tráfico de órgãos humanos para que se possa concluir quais seriam as medidas combativas mais eficazes para por fim à exploração da miséria humana.

56 "Art. 9º (revogado) É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos,

órgãos ou partes do próprio corpo vivo para fim de transplante ou terapêuticos." (BRASIL, op. cit., 1997).

57 "Art. 9o (redação dada pela Lei nº 10.211, de 23 de março de 2001) É permitida à pessoa

juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização

judicial, dispensada esta em relação à medula óssea." (BRASIL, op. cit., 1997).

(28)

CAPÍTULO II

TRÁFICO DE ÓRGÃOS HUMANOS

A comercialização de órgãos humanos representa um dos mercados ilegais mais rentáveis da atualidade, ficando atrás apenas do tráfico de armas e de drogas59.

O desenvolvimento das técnicas cirúrgicas e o sucesso dos transplantes contribuiu para o aumento de pessoas à espera de um órgão, ao passo que a disponibilidade de órgãos transplantáveis é insuficiente para atender a todas elas. Essa desproporção contribuiu para a propagação do tráfico de órgãos, cuja dinâmica passará a ser estudada neste capítulo.

2.1 Noções introdutórias

O tráfico de órgãos, de acordo com o conceito dado por Volnei Garrafa60,

importa genericamente em benefício para o receptor, que se sustenta pela perda e sofrimento do vendedor, e se caracteriza pelo incentivo financeiro que envolve essa troca. Invariavelmente, os perfis dos sujeitos envolvidos nesse processo são bem delineados e acentuam-se em dois extremos, por um lado, pela condição de riqueza e, por outro, pela extrema pobreza.

Prova disso reside na diferenciação que se faz no preço dos "produtos" quando se leva em consideração o país do qual provêm. A antropóloga americana Nancy Scheper-Hughes, fundadora da organização Organs Watch61, que investiga

casos de tráfico internacional de órgãos, explica que um rim pode chegar a custar

59 ÁVILA, G. N. de; GAUER, G. J. C.; GAUER, R. M. C.; ÁVILA, G. A. de; DRAGO, G. D. Comércio de

órgãos humanos: até onde vai a autonomia do indivíduo? Diário & Justiça. Porto Alegre, v. 34, n. 1, p. 23, jan./jun. 2008. Disponível em:

<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fadir/article/view/5157/3781>. Acesso em: 05 out. 2018.

60 GARRAFA apud BRASIL, 2004, p. 6.

61 A ONG Organs Watch é vinculada à Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos e consiste em

"um projeto formado por uma equipe de antropólogos, médicos e especialistas em medicina social, que se juntaram para pesquisar o contexto socioeconômico do transplante de órgãos", procurando "por pessoas que doaram órgãos ilegalmente para conhecer melhor sua condição. Na persecução desse fim, produzem trabalhos de pesquisa etnográficos e sociológicos, assim como pesquisas sobre direitos humanos: pretendem que haja divulgação ampla de informações, promovendo a agenda dos direitos humanos e o enfrentamento à violação da integridade física de populações humanas vulneráveis. Com isso, traçam e propõem estratégias de enfrentamento a este tipo de crime". (TORRES, C. A., op. cit., 2007, p. 30).

(29)

R$100 mil nos Estados Unidos, enquanto na Índia esse valor cai para R$1 mil62. Esta

apuração basta para evidenciar que as classes sociais mais desprezadas, além de prejudicadas pelas discriminações entre o Primeiro e o Terceiro Mundo, ficam ainda mais expostas ao mercado humano, haja vista que a condição econômica menos desenvolvida de seu país se torna critério de aferição do valor de uma parte insubstituível de seu corpo, acabando por submetê-las a um contexto ainda mais degradante.

Scheper-Hughes observa, ainda, que os vendedores mais frequentes costumam ser

pobres, soldados ausentes do serviço sem permissão, refugiados políticos e econômicos, desempregados, endividados, pequenos empresários falidos, políticos fracassados, empregados domésticos que se solidarizam com o patrão, prostitutas envelhecidas e sem recursos, pessoas já envolvidas em outras atividades ilegais.63

Essa realidade se amolda ao contexto fático nacional na medida em que é justamente dessa população paupérrima, e por isso mais propensa a sucumbir ao comércio de partes humanas, que as organizações criminosas se aproveitam. No Brasil, segundo os dados coletados por Scheper-Hughes, o tráfico de órgãos existe, possivelmente, desde o final da década de 70:

Pelas indicações que temos, o comércio para transplantes [no Brasil] vem do final dos anos 70. De acordo com os cirurgiões que entrevistei, no final da ditadura militar era flagrante o tráfico velado de cadáveres, órgãos e tecidos retirados de pessoas das classes sociais e políticas mais desprezadas, com o apoio do regime militar. Um médico veterano, agregado a um grande hospital acadêmico de São Paulo, revelou que cirurgiões como ele próprio recebiam ordens para produzir cotas de órgãos de qualidade. Às vezes, eles aplicavam injeções de barbitúricos fortes e em seguida chamavam dois outros médicos acima de qualquer suspeita para testemunhar que os critérios de morte cerebral haviam sido preenchidos e que os órgãos podiam ser retirados.64

De lá para cá, se impôs uma realidade de desrespeito à fila única de espera para transplantes, de atuação da criminalidade organizada, não raro integrada por médicos, na captação de órgãos humanos para venda no mercado ilegal e, ainda, de

62 BURCKHARDT, Eduardo. Tráfico de Órgãos no Brasil: íntegra da entrevista com a antropóloga

Nancy Scheper-Hughes. Revista Época. Ed. nº 290, 5 dez. 2003. Disponível em:

<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG61649-5856,00-iNTEGRA+DA+ENTREVISTA+COM+A+ANTROPOLOGA+NANCY+ SCHEPERHUGHES.html>. Acesso em: 05 out. 2018.

63 BURCKHARDT, op. cit., 2003. 64 Id., loc. cit.

(30)

pessoas interessadas em vender partes de seu próprio corpo. Com efeito, cumpre-nos, a partir de agora, desvendar e enfrentar os possíveis motivos legitimadores da mercantilização de órgãos e tecidos humanos.

2.2 Possíveis justificativas à comercialização do corpo humano

Com o intuito de suprir o desequilíbrio entre a disponibilidade e a demanda por órgãos transplantáveis, há quem defenda a legalização do comércio de órgãos humanos, acreditando que a regulamentação estatal da prática inibiria o mercado ilegal, fazendo crescer o número de transplantes. Contudo, focando apenas no pragmatismo da hipótese, deixam de lado os aspectos éticos e morais inerentes à questão, mormente levando-se em consideração a vulnerabilidade daqueles que se submeteriam ao procedimento em relação àqueles que se interessariam apenas pelo lucro do negócio, dando pouca atenção ao bem-estar do doador65.

Em termos de origem, é possível elencar diversas vertentes que justificariam a comercialização do corpo humano, tais quais: o desejo de vender qualquer coisa que se mostre propícia à comercialização, as descobertas científicas que permitiram a troca e o uso de partes do corpo, o desequilíbrio entre a oferta de órgãos e a demanda por transplantes66, a necessidade para o bem comum, a pluralidade moral

e o respeito à autonomia e à liberdade do indivíduo67.

Quem defende a legalização da mercantilização de órgãos humanos como ato impulsionador do bem comum baseia-se na expectativa de redução de receptores em lista de espera e dos custos para o seu tratamento, bem como na diminuição dos transplantes clandestinos e dos problemas por ele gerados. Isso porque o incentivo financeiro legalizado aumentaria a quantidade de transplantes e, por consequência, reduziria a taxa de mortalidade. No entanto, percebe-se que o enfoque dessa teoria reside apenas no paciente que necessita do transplante, relegando o doador a segundo plano e reduzindo-o a um simples valor monetário sem se preocupar com as

65 GARCIA, C. D.; GARCIA, V. D.; PEREIRA, J.P., op. cit., 2015, p. 507. 66 BERLINGUER; GARRAFA, op. cit., 2001, p. 157.

67 HELLMANN, Fernando; FINKLER, Mirelle; VERDI, Marta. Mercantilização de órgãos humanos para

transplantes intervivos sob a ótica da bioética social. Revista Internacional Interdisciplinar, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 123-138, jul./dez. 2012. Disponível em:

<https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/view/1807-1384.2012v9n2p123/23518>. Acesso em: 28 out. 2018.

(31)

consequências que o sacrifício de sua saúde em prol de alguém mais abastado poderia gerar.68

Dentre os argumentos favoráveis ao comércio humano, há também aqueles que costumam envolver o direito de propriedade e de disponibilidade total do próprio corpo, bem como a ótica econômica utilitarista69. Essa lógica parece bem

representada na monografia "O transplante de órgãos humanos à luz do Direito", defendida por Freitas Nobre70 no Instituto dos Advogados de São Paulo. O autor

entende existir um "estado de necessidade" do paciente que espera por um transplante, o que colocaria a doação de órgãos em posição de "absoluta supremacia do interesse público". Nesse sentido, haveria um real direito ao transplante como corolário do direito à saúde, que se sobreporia ao direito de quem morreu de escolher a destinação a ser dada ao seu corpo.

Na mesma linha de raciocínio, Antônio Chaves acredita que o cadáver não deve ser objeto de disposição voluntária por parte da pessoa enquanto viva ou de sua família após sua morte, mas deve ser considerado "domínio comum", o que permitiria a sua utilização primordialmente em favor do interesse coletivo. Na visão do autor, a titularidade do corpo deveria ser transferida da pessoa, após seu falecimento, para o Estado, que lhe daria a destinação mais condizente à promoção da saúde de sua população.71

Outro ponto justificador do mercado humano foi impulsionado pela propagação do discurso que envolve a autonomia individual, que foi o grande responsável por quebrar as limitações religiosas e jurídicas que inibiam a livre manifestação dos desejos humanos, avançando-se à máxima de que tudo que era possível era também lícito, de forma que a autonomia da vontade superaria qualquer questão ética que viesse a ser enfrentada.72

Hugo Tristam Engelhardt Jr., um dos principais expoentes da Bioética norte-americana, ao tratar do assunto,estima a livre escolha que deve ser conferida ao indivíduo no que toca à disposição de si próprio, entendendo que o corpo, os talentos

68 HELLMANN; FINKLER; VERDI, op. cit., 2012, p. 126-128. 69 BERLINGUER; GARRAFA, op. cit., 2001, p. 85.

70 NOBRE apud TRONO, op. cit., 2013, p. 6. 71 CHAVES apud TRONO, op. cit., 2013, p. 10-11. 72 BERLINGUER; GARRAFA, op. cit., 2001, p. 173.

Referências

Documentos relacionados

Por otra parte, la página corporativa constituye el punto de referencia que permite acceder a los sitios nacionales, específicos para cada país donde Valtellina está presente con

O emprego de um estimador robusto em variável que apresente valores discrepantes produz resultados adequados à avaliação e medição da variabilidade espacial de atributos de uma

Os profissionais da medicina do trabalho que preenchem a ficha de aptidão do trabalhador, ao assinalarem se o trabalhador se encontra apto, apto condicionalmente

3 O presente artigo tem como objetivo expor as melhorias nas praticas e ferramentas de recrutamento e seleção, visando explorar o capital intelectual para

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

O valor da reputação dos pseudônimos é igual a 0,8 devido aos fal- sos positivos do mecanismo auxiliar, que acabam por fazer com que a reputação mesmo dos usuários que enviam

A versão reduzida do Questionário de Conhecimentos da Diabetes (Sousa, McIntyre, Martins &amp; Silva. 2015), foi desenvolvido com o objectivo de avaliar o

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,