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2 OS 'DOCUMENTOS DA MORTE' COMO UMA ESTRATÉGIA DE

2.2 A verdade produzida pelas formas jurídicas

As artes de governar e os jogos de verdade não são independentes uns dos outros. A partir do que Foucault (2000) discorre sobre a governamentalidade, podemos identificar que o objetivo desta é tornar o espaço do Estado como governo da vida. Considerando que toda regulação está inscrita num jogo de poder e produz verdade, os discursos do Estado e do campo jurídico enfatizam que uma morte ou nascimento só deve ser validado se forem registrados civilmente.

Em conformidade com o que aponta Fonseca (2012, p. 29) sobre a relação entre poder, direito e verdade, “esse triângulo, bem como as relações entre cada um dos seus vértices, é o que estaria em jogo nas artes de governar. Para Foucault, não se pode falar em governo dos homens e das coisas, em governo da vida, e nós acrescentaríamos em governo da morte, sem a consideração das relações entre estes três polos”.

Em sua obra “A verdade e as formas jurídicas”, Foucault explora a formação da verdade em seu jogo com os regimes de poder a partir dos procedimentos judiciários. O autor considera que em nossas sociedades existem alguns lugares que podem ser considerados como formadores de verdade. Nesses lugares, são definidas regras de jogo, certos domínios de objetos, certos

tipos de saber. Podemos considerar como um desses espaços o campo jurídico. Para Foucault (2003a, p. 11), as práticas judiciárias se configuram como:

A maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometidos, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história.

Enquanto prática judiciária, o assento tardio da certidão de óbito parece uma das formas pelas quais a sociedade define tipos de subjetividade, formas de saber e relações entre o homem e a verdade. Foucault (2003a) defende a tese de que todas as práticas jurídicas são práticas sociais que criam novas formas de sujeitos, em função de diferentes regimes de verdade resultados da interação entre relações de poder e formação de saber.

O filósofo explana sobre três formas de relações, definidas ao longo do tempo, entre subjetividade e verdade constituídas a partir das formas jurídicas. A prova é considerada a primeira dessas. Na antiguidade, se alguém discordasse de uma dada verdade acerca de um fato, uma situação ou um depoimento, era exigido a essa pessoa que provasse a veracidade do ocorrido. O indivíduo era, então, convocado a provar a verdade, ficando a responsabilidade aos deuses em deferir ou não a situação. Na Idade Média, a prova passa a estar inserida no direito germânico na reivindicação ou na contestação de uma pessoa sobre outra. Por exemplo, a situação de litígio era resolvida por uma série de provas as quais os indivíduos eram obrigados a apresentar.

Uma segunda forma jurídica definida pela sociedade ocidental ao longo da história para se chegar à verdade era o inquérito, a busca da verdade mediante processo de interrogação por meio do qual a justiça passava do âmbito individual de contestação entre duas partes em conflito para o de um poder exterior, o qual os indivíduos envolvidos deveriam, então, submeter-se. Essa forma de produção de verdade judiciária está relacionada à formação do Estado medieval e foi elaborada a partir dos modelos de gestão e de controle eclesiásticos.

A última forma jurídica de acesso à verdade seria o exame. Enquanto com o inquérito procurava-se atualizar o fato ou o acontecimento em questão por

meio de testemunhos, o exame instaura a vigilância constante e sistemática sobre os sujeitos e seus corpos, numa organização disciplinar.

Perucchi (2008, p. 216) considera que “por meio de múltiplas e diferentes modalidades de exercícios do poder a jurisprudência funciona como um dispositivo, um instrumento de demonstração, elucidação e legitimação, enfim, de acesso à verdade, de constituição de sujeitos”.

Para Foucault (2000, p. 10):

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdade.

Mecanismos de distinção entre os enunciados verdadeiros e os falsos são as práticas judiciárias de assentamento e retificação do registro de óbito e as técnicas utilizadas pelos serviços notariais e de registros. São os magistrados, ou os oficiais de cartórios delegados pelo poder judiciários, quem registram os nascimentos, os casamentos e as mortes e tornam esses acontecimentos verídicos perante a comunidade. A definição legal dos serviços notariais e registrais já enumera suas finalidades principais: “Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos” (Art. 1º da Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994). Além disso, no fim da página de todas as certidões é assinado pelo operador da lei: “Isto é verdade e dou fé”. Dessa forma, embasada em Foucault, Perucchi (2008) considera que os regimes de verdade produzidos no âmbito jurídico estão complexamente relacionados às práticas institucionalizadas de poder. A funcionalidade dessa rede de poder que configura o discurso jurídico é corrigir a existência das anormalidades e ajustar suas potencialidades.

As diferentes formas jurídicas de acesso à verdade analisadas por Foucault (2003a) remetem à reflexão dos diversos elementos que compõem os jogos de poder das regras do direito. Considerando que toda regulação está inscrita num jogo de poder e produz verdade, os efeitos de poder ligados aos discursos jurídicos produzem que só ocorre um nascimento, um casamento e

uma morte, se estas passarem pelo crivo das práticas judiciárias e forem registradas. Assim, a prática judiciária de assentamento e retificação do registro civil de óbito segue os percursos da biopolítica e objetiva controlar os “desvios sociais”, “reprimir os desequilíbrios da vida”, normalizar a vida e a morte.

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