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7. UM PERCURSO PELO CAMPO PROBLEMÁTICO DA CRISE

7.2 MINHAS EXPERIÊNCIAS NO MULTIFACETADO CAMPO DA SAÚDE

7.2.3 A versão brasileira da reforma e o paradigma psicossocial

Fartamente documentado, o cenário brasileiro na assistência em saúde mental era desumanizante até a década de 1970, organizado em torno de grandes instituições manicomiais de cunho asilar. Impulsionada pelo caráter militante de profissionais, usuários e familiares reunidos em torno das críticas ao caráter científico da loucura como objeto de estudo, a reforma psiquiátrica no Brasil se revelou mais ambiciosa e revolucionária do que na maioria dos outros países. Na conjuntura nacional, os primeiros anos da década de 1980 tinham como pano de fundo o contexto de redemocratização do país, depois de duas décadas de um regime de ditadura civil-militar. Vemos surgir o movimento pela Reforma Sanitária, que culmina com a inclusão na Constituição Federal da saúde como um direito de todos e dever do Estado. Pouco tempo depois, é instituído o Sistema Único de Saúde, pela Lei 8.080, que preconiza uma rede pública/conveniada de saúde visando uma atenção integral à população em todos os níveis de cuidado: prevenção, promoção e reabilitação.

No campo da saúde mental, localizamos as décadas de 1980 e 1990 como marcos teóricos e políticos fundamentais no processo de reestruturação da assistência psiquiátrica em suas diferentes camadas. Neste período, ocorre a 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental (1987), a 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental (1992), e a 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental (2001), esta última culminando na promulgação, no mesmo ano, da Lei 10.216, de âmbito nacional. Esta lei dispõe sobre a

proteção e os direitos das pessoas com transtorno mental e decreta o redirecionamento para o modelo assistencial de natureza psicossocial, normatização que impulsiona e fortalece os novos dispositivos institucionais de base territorial, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), principal equipamento de cuidado e de regulação da rede de saúde mental.

A saúde mental é um conceito incorporado à RPB como um marco da mudança paradigmática do rumo da assistência e da ética, em substituição à referência manicomial, síntese do processo de transformação da loucura e da captura do louco e do seu lugar social pela medicina em torno da doença mental. Figueiredo (2010) afirma que esta referência advém do contexto das amplas reformulações das políticas psiquiátricas que ocorreram ao redor do mundo, inspirada, em parte, no modelo preventivista da psiquiatria comunitária norte-americana, pela ênfase na promoção das ações em saúde visando estabelecer novas relações com a loucura.

Tenório (2002), por sua vez, analisa que o lugar estratégico que a expressão “saúde mental” assumiu no discurso da reforma brasileira se deve a dois aspectos: para indicar o afastamento da figura médica da doença – que negligencia os elementos subjetivos que participam da existência concreta do sujeito em questão – e para afirmar a expansão do campo de práticas e de saberes não limitados à medicina e aos saberes tradicionais da psicologia. Aos poucos e apesar da crítica quanto ao contexto de seus primeiros usos, a definição de saúde mental é positivada pela reforma por sua importância estratégica, transmutando-se em bússola das políticas públicas, conclui o autor. Segundo Noal et al. (2016), o termo saúde mental circunscreve um conjunto denso e complexo de conhecimentos e formas de cuidado que não se restringem à psicopatologia, à semiologia ou ao tratamento dos transtornos mentais, sendo reconhecido como um campo polissêmico, intersetorial e transversal, inserido no âmbito das políticas públicas de saúde e incluindo, na mesma medida e proporção, sujeitos e coletividades.

Neste recém constituído universo psicossocial, as ações iniciais foram dirigidas, prioritariamente, aos usuários com longa história de institucionalização, população que sofria no corpo e na alma as consequências nefastas do seu lugar social. A partir dos anos 2000, a ênfase é dirigida à população com uso problemático de álcool e outras drogas e, mais recentemente, o debate se centrou nas questões relativas à infância e à medicalização da mesma. Podemos concluir que, via de regra, hoje em dia não há grandes lacunas para o tratamento dos transtornos acima referidos, cujo acompanhamento é previsto, em tese, pela articulação entre os diferentes equipamentos de saúde e assistência no território dentro da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), instituída em 2011. Em contrapartida, o mesmo não se pode

dizer das experiências de sofrimento moderado e das urgências desta população, que se mostram relegadas e com pouco avanço em termos de políticas públicas.

Para Alberto Diaz (2013), apesar do nível crescente de interesse pela questão da crise, muitas vezes pressionados pelo seu aparecimento, parece surpreendente não que não se encontre muitos estudos sobre o tema na aproximação do que chamamos de clínica da urgência. Já Lobosque (2011) situa o atendimento à crise como nevrálgico para a sustentação do processo reformista. Para ela, não é possível avançarmos sem nos ocuparmos da garantia deste atendimento, ressaltando a importância de avaliar a gravidade da mesma para que os casos possam ser acolhidos em diferentes pontos da rede.

Souza (2008) é outro que faz coro a esta discussão e assinala que a formulação de respostas à crise se mostra um dos principais desafios no atual momento da reforma, na medida em que é uma condição para o prosseguimento das mudanças e da manutenção do ideário reformista. O autor afirma que as respostas à crise funcionam como analisador dos processos implementados pela Reforma, indicação que nos alerta para a importância dos serviços e suas respectivas equipes com relação ao seu manejo. Coerente a este contexto, o tema foi destaque no Relatório Final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial, realizada em Brasília no ano de 2010:

A consolidação da reforma psiquiátrica exige a priorização, por parte dos gestores dos níveis federal, estadual e municipal, da atenção à crise no âmbito da rede substitutiva em saúde mental, considerando sua importância fundamental na implementação de processo efetivo que possibilite a extinção dos hospitais psiquiátricos e de quaisquer outros estabelecimentos em regime fechado (BRASIL, 2010, p. 74).

Temos, portanto, o registro da atualidade política e clínica desta discussão. Em estudo mais recente, Dias, Ferigato e Fernandes (2020) colocam-se a tarefa de desenvolver uma reflexão mais apurada sobre este cenário em relação às políticas públicas brasileiras. Os autores destacam as disputas em torno dos conceitos e dos tipos de intervenção sobre a mesma. Apesar disso, concluem que a expansão da rede de saúde mental no modelo comunitário, e a consequente redução de leitos, promoveu um inovador conjunto discursivo distinto do vocabulário convencional e novas abordagens, diferenciadas daquelas produzidas no âmbito hospitalar.

Contudo, cabe a ressalva de que a maior parte dos estudos e pesquisas fazem alusão aos usuários com transtornos graves, ameaçados pelo circuito tradicional de internação que as eventuais crises poderiam suscitar e que, por conta disso, a rede de saúde deve estar preparada ao acolhimento. Contudo, e uma vez mais, faz-se necessário ratificar a presença de uma outra parcela da população, que não corresponde ao segmento anterior, que se encontra suscetível a impasses subjetivos durante a vida e que não tem, até o presente momento, projetos de cuidado

definidos na RAPS. Relembremos que a qualificação de crise que nos orienta remete a um momento específico da vida (e não a uma condição permanente) e à forma como o sujeito neurótico se inscreve e circula no laço social e nos serviços de saúde em distinção aos demais usuários com transtornos graves. Ou seja, a condição de “autonomia” do sujeito com sofrimento moderado em relação aos serviços é distinta da condição daqueles. Tais apontamentos são fundamentais na discussão deste segmento na atenção psicossocial, que não passa pela generalização do modelo destinado à população com transtornos graves e de longa história de tratamento.

De alguma maneira, a secundarização desse grupo descreve um mecanismo de recalque do ideário reformista cujo enfrentamento precisa ser feito buscando alternativas condizentes a esta parcela da população. De maneira geral, as soluções indicadas não tiveram o alcance esperado nem foram bem-sucedidas em relação aos serviços de natureza territorial e interdisciplinar, como o CAPS e demais dispositivos clínico-políticos. Esta dificuldade aponta a inexistência de um lugar simbólico dentro da RAPS para essa demanda e favorece a ampliação do discurso médico psiquiátrico, que a acolhe e a ela responde com seus mecanismos tradicionais – como os ansiolíticos e antidepressivos –, fazendo com que a rede básica de saúde seja responsável por número significativo de prescrições e pelo aumento do consumo desses medicamentos em nosso país.

A RAPS foi instituída pela Portaria 3.088, de 23 de dezembro de 2011, abrangendo sete componentes: Atenção Básica em Saúde, Atenção Psicossocial Especializada, Atenção Residencial de Caráter Transitório, Urgência e Emergência, Atenção Hospitalar, Estratégias de Desinstitucionalização e Reabilitação Psicossocial. Com as mudanças editadas pelo novo governo, através da Nota Técnica 11/2019, do Ministério da Saúde, são incluídos o Hospital Psiquiátrico, o ambulatório multiprofissional de Saúde Mental e as comunidades terapêuticas. Antes disso, a Portaria 3588, de 21 de dezembro de 2017, fez adendos à RAPS, incluindo leito em hospital psiquiátrico especializado como parte da RAPS e alterando os modos de financiamento para leitos hospitalares (tornando mais interessante financeiramente a internação de longa duração). Com estas inclusões, a nova Política agride frontalmente a pauta de conquistas obtidas com a Lei 10.216, ao definir que o princípio orientador do redirecionamento do modelo de cuidado deixa de ser substitutivo e passa a ser alternativo.

Em meio a tal retrocesso, essa mesma portaria incluiu o financiamento para Equipe Multiprofissional de Atenção Especializada em Saúde Mental/Unidades Ambulatoriais Especializadas (AMENT). Muitos municípios que não haviam desativados seus ambulatórios de saúde mental, apesar de não terem financiamento para os mesmos, agora estão buscando sua habilitação. Nesse sentido, o atendimento ambulatorial reaparece como serviço e passa a

receber incentivo de custeio. Esta mudança, sob certo ponto de vista, parece representar um avanço ao prever uma modalidade de cuidado que não estava adequadamente contemplada na versão anterior da RAPS e que não se percebia acolhida, nem na atenção básica e nem nos CAPS. Contudo, o fato de incluir uma equipe multiprofissional especializada não garante, a

priori, nenhuma mudança significativa no modo de cuidado. Pelo contrário, o que se pode

depreender desta decisão, e que hoje já temos elementos concretos para afirmar, é que a mesma tenta dar novas roupagens ao antigo ambulatório reintroduzindo o modelo privado de cuidado, que resulta nos mesmos problemas que forçaram o seu fechamento: consultas burocratizadas, filas de espera, incremento da prescrição medicamentosa e provável tendência de cronificação do doente pela identificação e submissão às novas formas de captura do sujeito, referido aos códigos diagnósticos de transtornos.

Frente a esta realidade, impõe-se um trabalho árduo de afirmação do modelo, disseminação de informações e qualificação dos serviços, usuários e trabalhadores, em especial na atenção básica, que mantem uma estreita dependência em relação ao código médico para o acolhimento aos casos de saúde mental. Neste ponto, fica nítido que o agenciamento e a produção de novas respostas destinadas às situações de crise precisam contar com a participação ativa da rede de assistência da saúde, sem a qual pouco se conseguirá avançar na direção de mudanças paradigmáticas. Esse desafio passa também pela inclusão de temas que atravessam estruturalmente as possiblidades de acesso e a qualidade do cuidado, como a população negra, indígena, LGBTQ+ e moradores de rua.