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3. DA MONTAGEM DA TRADIÇÃO DA MODERNIDADE AO INTERREGNO

3.4 SINCRETISMO TERAPÊUTICO: O APELO À RELIGIÃO E À CIÊNCIA

Um homem de 32 anos, separado há poucos meses e com um filho de cinco anos, chega ao Acolhe Saúde em companhia da mãe. Bacharel em filosofia, recentemente desempregado, havia feito duas tentativas de enforcamento e, na segunda vez, foi levado ao hospital e de lá encaminhado ao serviço. Está num processo recente de separação depois de 16 anos de relacionamento e foi denunciado pela ex-companheira, que solicitou medida protetiva. Foi afastado de casa e está morando com a mãe, que relata que o mesmo passa a noite acordado e que teme que ele possa se matar. Sobre isso, durante a entrevista de acolhimento, o paciente descreveu que estava em queda livre. Algumas sessões depois, recuperou esta fala e disse que segue em queda, não livre, mas que não poderia garantir nada. Relata que cursou algumas disciplinas de psicologia e que gostava de Jung. Descreveu a vida como um continuum de sofrimento, mencionando vários sinais que confirmariam que este seria o seu destino, do qual a morte seria a saída. Fala da sua indignação com a realidade e afirma não acreditar mais em utopias, embora tenha alguns autores que gosta de ler. Sente interesse por coisas de natureza mística e, apesar de ter restrições à escuta psicanalítica, disse no final que poderia mudar de ideia. Na consulta psiquiátrica, mencionou uso de álcool e maconha e, por essa razão, foi encaminhado ao CAPS ad. Em discussão clínica, esta decisão foi revista e o paciente seguiu no Acolhe. A assistente social compôs o projeto terapêutico vinculado à pauta das visitas ao filho e das repercussões judiciais. Além disso, incluiu banho de sal grosso, que ele fazia sozinho, sem contar para ninguém.

Dentre vários temas desenvolvidos para delinear a discussão sobre o mal-estar, Freud aborda a função da religião na comunidade humana em O futuro de uma ilusão (1927/1996). Neste artigo, discorre sobre a origem psíquica das ideias religiosas que se fazem presentes desde sempre em qualquer registro da civilização. Tributário do espírito científico que o formou, Freud orienta sua interpretação a partir de uma abordagem antropológica e o sentimento religioso é descrito como “ilusão”. Identificada como estando presente desde os tempos primevos, a religião seria uma construção da cultura de caráter compensatório e para consolo diante da finitude e da impotência humana. O argumento define que as necessidades de cunho religioso seriam derivadas do estado de desamparo infantil, ao qual todo o ser humano é submetido em momentos iniciais da vida, e que é neutralizado pela identificação dos pais como fonte de segurança. Dentro desta perspectiva, Freud não hesita em definir a religião como uma neurose universal (ibid.).

O tom crítico deste ensaio, datado de 1927, permanece, mas em O mal-estar na cultura, a reflexão ganha contornos menos críticos, revelando o desencanto de Freud com as expectativas de substituição da religião pela ciência. N’O mal-estar, a definição de religião não se altera significativamente, mas ela agora ocupa a mesma série de dispositivos culturais de amparo social para fazer frente à angústia e ao sofrimento. Freud (1930/1996) reconhece a dificuldade do abandono deste sentimento por parte da comunidade humana, visto que, embora a ideia religiosa seja a menos fundamentada, ela seria, ao mesmo tempo, a mais sólida no pacto social, ao forjar uma verdade transcendental sobre o desamparo. Na contramão da ciência, a religião afirma o “sentido”, oferecendo respostas aos desejos, aos enigmas e às dúvidas que, sendo insolúveis, atravessam os tempos e as gerações. Nessa lógica, a religião seria um engenhoso mecanismo de produção de sentido que cumpre sua função de dispor discursos aos sujeitos. Tal premissa tornaria o apego humano à religião mais compreensível, de maneira que o termo “ilusão” assume, desde então, o modelo de “fantasia”, retirando o viés de primitivismo emocional que a qualificava até então.

Distintamente da religião, a ciência não dispõe de verdades absolutas e transcendentais, permanecendo sob efeito de acontecimentos e achados vindouros. Apesar disso, nenhum pensamento lúcido tem dúvidas de que a ciência se constitui como um dos mais altos êxitos da atividade sublimatória humana (BAUMAN; DESSAL, 2017). Contudo, é digno de preocupação quando a ciência ou, mais especificamente, o acontecimento histórico da técnica moderna associada ao capitalismo, se imiscui e invade o terreno da subjetividade, destruindo o capital simbólico e colocando em suspensão a eficácia da operação simbólica. De acordo com o autor, o advento do discurso da ciência e sua oferta de objetos incidiram drasticamente nos processos de subjetivação e da organização social, marcados pelas promessas de felicidade

que os mesmos portam. Esse movimento engendraria o esvaziamento do capital simbólico, o que, por sua vez, desautoriza o sujeito a buscar em sua história e em sua vida os apoios necessários à travessia da existência. Frente ao desamparo atualizado em alguma contingência da vida, lhe é ofertado um objeto concreto ou uma narrativa exterior ao sujeito para a elucidação do quadro.

Segundo Lebrun (2010), as modificações introduzidas no social por intermédio do discurso da ciência forçam o sujeito a buscar no logos as condições de sustentação daquilo que lhe ocorre. Neste modelo, o ser humano coloca-se em relação ao vazio de sentido, afetado pela redução do estoque de saberes transmitidos, incluindo valores estéticos, morais e religiosos (SOLER, 2012). Nessa linha, Bauman (1998) comenta que redes de segurança tecidas e sustentadas individualmente ou, numa segunda linha de trincheira, oferecidas pela família e pela vizinhança, se não se desintegram, ao menos se enfraquecem. Dito de outra forma, o sujeito deixa de contar com o suporte narrativo que constitui a materialidade simbólica e passa a depender exclusivamente de si para produzir o amparo necessário ou, em último caso, recorrer a um objeto alheio à realidade subjetiva.

O arrazoado de inspiração iluminista de Freud previa o declínio de expressões religiosas com o progressivo avanço da ciência no interior da comunidade humana, organizada em torno de instituições de natureza secular, como o Estado. Esta projeção, porém, não se concretizou, e o que vemos ainda hoje é a permanência e convivência destes dois registros, inclusive no campo da saúde mental.

Para Lacan (1960-1974/2005), apesar de opostas entre si, ciência e religião apresentam uma relação dialética em que os limites de cada uma retroalimentam a outra. No artigo O

triunfo da religião, ele profetiza o êxito do discurso religioso que, mesmo acuado pelo avanço

e desvelamento do mundo pela ciência, não sucumbiria. Esta interpretação leva em conta que os incontestáveis benefícios materiais que desfrutamos estão desprovidos de sentido e carecem de efetiva assimilação por parte do sujeito, quer dizer, fracassam na tentativa de fazer Um (que seria o equivalente da felicidade). Como consequência, o sujeito será empurrado a buscar apoio, de forma permanente ou ocasionalmente, em alguma espécie de código religioso (espiritual) que forneça bordas significantes ao mesmo, tal como observamos nas situações de crises individuais ou coletivas nas quais se endereçam apelos de escora e proteção projetados na figura de uma liderança ou na referência religiosa/espiritual.

Contemporaneamente, esta crença se localiza predominantemente no discurso científico, que organiza e propõe formas de ser e de pensar como, por exemplo, em ocasiões de adoecimento pessoal ou familiar ou em situações críticas como a pandemia, em que sobressai a confiança nos métodos científicos. O apelo religioso se secundariza para o

protagonismo dos cientistas, explicitando a transformação e o reposicionamento da função religião. Contudo, o grau de indeterminação de qualquer fenômeno abre brechas para a retomada das narrativas espirituais que, em nosso país, não respondem à hegemonia de um único sistema de crença.

Segundo Lacan (ibid.), o fato da religião ser uma categoria fundada pela autorização da criação de sentido para toda e qualquer coisa, da mais lógica à mais inverossímil, da mais banal à mais terrível, concede-lhe respaldo para, no limite, desprezar a racionalidade. A despeito da pluralização das formas religiosas, a fé, compartilhada ou individual, enquanto salvaguarda de sentido e de consolo à solidão, se manteria como triunfo do aparato religioso. Esta realidade se confirma pelo acolhimento de portas abertas das instituições religiosas neopentecostais, como uma espécie de pronto-socorro “espiritual” na crise.

Nessa direção, as práticas de cura têm assumido, cada vez mais, uma composição sincrética. Para o sujeito em crise, ciência e religião (fé) coexistem e convivem sem conflitos e contradições, mescla de postulados e princípios contraditórios que se equivalem. Esta conformação caleidoscópica ganha maior relevo no campo da saúde mental, cujo modus

operandi deixa em aberto um grau de indeterminação relativo à origem e ao tratamento da

experiência de sofrimento. Nesta conjuntura de imprecisões estruturais, associada à queda das narrativas universais, acompanhamos o advento de um fenômeno que se caracteriza por descrever o modo particular com que cada sujeito inventa e compõe o seu modo de tratamento, no qual inclui ou exclui componentes conforme os valores que o sujeito e sua cultura atribuem. Esta composição é sempre provisória, com elementos novos combinando com outros tradicionais. Nomeamos esta realidade de “sincretismo terapêutico”, para descrever a configuração que resulta do ato de escolha que o sujeito exerce para seguir, desmontar, incluir ou interromper a relação com os dispositivos de cura e de vida disponíveis na sua cultura.

Deste modo, verificamos que o projeto terapêutico (PTS) é cada vez mais singular, não apenas porque é construído para cada paciente em função da sua demanda e do que o serviço e a rede têm disponível. A atribuição do sincretismo ao PTS sinaliza o caráter híbrido, vivo, provisório e por vezes contraditório que inclui elementos que estão fora das combinações realizadas com a equipe. Frente ao desamparo e à urgência que a angústia impõe, o sujeito se desobriga da fidelidade a qualquer filiação epistemológica, lançando mão daquilo que lhe pareça como proteção ao desamparo. Esta decisão carrega um saber que é do próprio sujeito, aprendido nas escolhas, perdas, dificuldades e êxitos que teve, demonstrando um protagonismo necessário e intransferível.

Especificamente no campo da saúde mental, esta é uma realidade comum entre os usuários e demarca a especificidade dos atuais tratamentos em saúde mental pela

ultrapassagem das fronteiras e prescrições formais que constituem a atenção psicossocial. O cuidado à crise, assim como qualquer cuidado na saúde mental, é uma prática customizada que inclui as escolhas do sujeito em mediação com a dos serviços: CAPS, medicação psiquiátrica, escuta, terreiros de candomblé, ioga, uso de remédios alternativos, chás, sessões espíritas, missa ou culto, internação e outros tantos métodos. Dessa forma, configuramos que o acolhimento à crise também pressupõe que a equipe esteja atenta e porosa à diversidade social, cultural, racial e étnica que marca a realidade brasileira.

4. A VIDA EM MOVIMENTO: OS LITORAIS DA MODERNIDADE LÍQUIDA