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A vida no sertão

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O arrendamento, no entanto foi a forma de posse predominante à revelia da Coroa. Esse sistema se manteve por todo o sertão, beirando a universalidade no interior do continente. Registra-se que a maioria dos que possuíam terras no Piauí viviam em cidades ou vilas afastadas das propriedades ou em geral em Salvador. Resulta daí a autonomia política dos arrendatários da Capitania, ou como já se viu, no conflito, a Coroa procurou vincular essa região à Capitania do Maranhão.

Do ponto de vista dos estudos das “estruturas internas”, uma das maiores contribuições que começou a desvendar o mito romântico do trabalho nas fazendas de gado do sertão, foi feita por Luís Mott (1985), ao comprovar a participação dominante da escravidão na faina das fazendas do sertão, bem como os traços determinantes do cotidiano sertanejo, em detrimento de toda a historiografia tradicional. Em se tratando da terra, afirma Silva (1997, p. 126) que:

Podemos delinear, assim, quatro grandes formas de posse e uso da terra na área de dominância da pecuária sertaneja: a. a grande propriedade, de origem sesmarial, com exploração direta e trabalho escravo; b. sítios e situações, terras arrendadas por um foro contratual, com gerência do foreiro e trabalho escravo; c. terras indivisas ou comuns, de propriedade comum – não são terras devolutas, nem da Coroa–, exploração direta, com caráter de pequena produção escravista ou familiar, muitas vezes dedicada à criação de gado de pequeno porte; d. áreas de uso coletivo, como malhadas e pastos comunais, utilizados pelos grandes criadores e pelas comunas rurais.

Tamanha diversificação das formas uso e posse da terra resulta num grau heterogêneo e dinâmico das relações de produção e base dos conflitos e violência do sertão. Essa diversificação no seu conjunto gera uma grande circulação de recursos, tais como animais, sorte (partilha do gado), dinheiro e crédito na empresa sertaneja. É possível ver ainda no rastro dessa atividade manejos menores, pois quase sempre os fazendeiros e sesmeiros de maneira geral não exerciam controle na “miúnça” (criação miúda) galinhas, porcos e cabras eram criadas livremente e comercializadas, até mesmo cavalos burros e outros animais de cargas ou montarias. Ou seja, os proprietários da terra, naquele momento, por motivos diversos, inclusive talvez, por considerarem o trabalho aviltante, não cuidavam da administração de suas posses. É ainda Silva (1997, p. 31) ao comentar, conclui:

Certo, mesmo, é que a pecuária exigiu muito trabalho: nem sempre são corretas as associações entre criação e ócio, pecuária e fazendeiro absenteísta, gado e estagnação técnica. Apesar de o serviço direto não recair sobre o fazendeiro, cabia ao vaqueiro campear por vastas extensões, dominar muitas técnicas enfrentando uma natureza hostil e incerta. Por isso, nas regiões de pecuária seu ofício deu a base para criar muitas lendas. [...] O vaqueiro é o gerente das atividades econômicas da fazenda de criação e, nesta condição é, ainda capataz. É pago através do sistema de partilha ou sorte [...] neste sentido, o sistema de sorte representava quase um arrendamento do gado do fazendeiro [...] possui ainda o direito de criar seu gado, com livre acesso aos recursos naturais ou não da fazenda.

Nesse contexto, de qualquer forma, o mundo da empresa sertaneja apresenta-se mais aberto e socialmente menos hierarquizado e menos rígido, no entanto os códigos de honra e de ofensa se apresentam à flor da pele.

Em geral a fazenda dispunha de um aglomerado como sua clientela, reunia- se ali em espaços de léguas, meeiros, rendeiros, moradores, agregados, vaqueiros, cabras cujos laços representavam muito, pois a fazenda não controlava o processo produtivo, seu ritmo era definido pelo ciclo da natureza nas estações, inverno e verão, onde tudo se misturava.

Enquanto pastos brotavam, vacas pariam e agregados produziam, o fazendeiro só corrigia. Essa produção por dons da natureza, como mágica, combinava-se com o sistema de negócios, associando comércio e extração, surgindo daí o empresário da mata, produtor aventureiro, o rentista da selva sugando os recursos com que a natureza dotara o meio e que o domínio privado permitia transformar no benefício próprio que foi a fazenda. Mas, porteira afora tudo mudava de figura, e o fazendeiro procurava preço para seu gado, buscava com titubeio e paciência os cruzamentos de raças mais produtivos e maior rentabilidade nas vendas. Os registros de compras e vendas nas contas-correntes das fazendas mostram como eles procuravam organizar aquele caos, conseguir lucros, economizar no que podiam, ganhar nas beiradas dos prazos e nos descontos dos juros (RIBEIRO, 1998, p. 141).

No curral, negociante e senhor tornavam-se a mesma pessoa: um fazendeiro. Na apartação de gado de descarte, em seleção para invernadas, nos negócios de meação de boiada, por cima das réguas de peroba, no batente de cancelas, corrigindo a faina dos vaqueiros, regulando o gado que sai ou fica e, principalmente, negociando a boiada, o fazendeiro fez no curral a síntese das diferenças. Para entender a fazenda do Nordeste não basta ter uma das imagens, mas as duas, negócio e não-negócio; e só é possível compreender sua lógica percebendo a importância das relações que estabelecia com o meio físico, pois foi a partir dele que os homens e o mercado criaram essas relações específicas.

Por a venda uma boiada, era uma tarefa que requeria experiência e exigia paciência e confiança no comprador por ser transação vagarosa e enovelada. O manejo dos negócios era travado uns com os outros misturados de tal sorte que não se resolviam facilmente. Davam-se os negócios de gado no varejo e no atacado por aqueles tortuosos acertos. O empenho determinante dos compradores de gado, que eram conhecidos como os boiadeiros, regavam essas transações com pagamentos vasqueiros e parcelados e na maioria das vezes demorados.

A comprar na “perna” – quer dizer, avaliando “no olho” o peso era costume do boiadeiro. Raras fazendas produziam continuamente grandes boiadas. Por isso era prática comum os fazendeiros negociarem uns com os outros, para formarem lotes maiores para passarem a outros fazendeiros, e formarem grandes manadas. De tal forma, concluíam uma grande rede de vendas afunilando os negócios com os boiadeiros.

Os serviços da viagem de gado eram muitos. O ritmo da viagem destes animais de início era essencial, para não correr o risco da estropia, pois uma vez forçando a marcha a manada estropia, e aí ela não anda; o segredo era “fazer o casco” do gado logo de saída, com os primeiros dias de marcha vagarosa, partindo nas madrugadas e parando antes do meio dia e só retomando no quebrar da tarde duas ou três curtas horas, para o casco endurecer.

A fazenda, em fim, e suas variações – para Silva (1997) era o ponto nodal de uma paisagem aberta que sem cercas predominava os campos tabuleiros e a caatinga onde a inter-relação entre esse sistema produtivo e a plantation, concretizava-se por meios da circulação da renda que ia subsidiando e favorecendo os setores exportadores.

A autonomia e violência do regime de arrendamento e sua rede mercantil entra em conflito com a “rede governativa” no momento do seu amoldamento à rede governamental que se impunha a cooptar e administrar o sertão. Isso exigiria um complexo equilíbrio entre os poderes e entre as duas redes, um claro espaço de negociação entre as partes – no caso – entre os sertanejos e sua rede e as autoridades metropolitanas, entre o poder local e poder central.

No entanto, as práticas militares moldadas pelas guerras e o surto econômico provocado pela Companhia do Comércio no Maranhão na segunda metade do século XVIII, obstruiu o equilíbrio necessário às relações sociais das elites coloniais reduzindo a complexa rede de alianças do espaço negociado.

2 DEUS É GRANDE, MAS O MATO É MAIOR

Reportando-se a acontecimentos, de qualquer tipo, Braudel (1993, p. 10) afirma que de maneira geral “simples fatos podem ser os indicadores de uma realidade de grande dimensão e uma estrutura”.

A afirmação do português no Maranhão se deu com a batalha de guaxenduba, onde definitivamente derrotou os franceses depois de uma tentativa fracassada, dado a inadequação das formas européias de fazer a guerra. O sargento-mor Diogo de Campos Moreno coadjuvante do comandante Jerônimo registrou esse acontecimento, ao escrever a Jornada do Maranhão (1647).

Moreno, um oficial português versado em guerras européia foi dessa vez convocado como auxiliar, uma vez que o comandante foi o mameluco Jerônimo de Albuquerque Maranhão, o herói dessa guerra que pelo feito, foi confirmado governador da colônia e seu primeiro Capitão-mor. Jerônimo (filho de pai europeu e de mãe índia) foi indicado, afirma Moreno (2001, p.33),

Por ser experimentado nas coisas do Sertão e dos índios, como por ser grande truxamante ou língua entre eles e, com nome de seu benfeitor e parente, ser mui aceito e conhecido em toda aquela costa, nas quais qualidades parece que consistiu o maior peso da expedição, que sem índios era impossível fazer-se.

Esta pequena escolha parece que alterou o resultado do acontecimento e foi o indicativo que dimensionou a realidade maranhense como apontou Braudel sobre os “simples fatos”. De certo que o mameluco pernambucano Jerônimo de Albuquerque, um conquistador dos sertões, em inúmeras guerras, familiarizado, sobretudo com as matas e índios, sobrevivendo conforme dava a espingarda, como já se afirmou em momento anterior utilizando-se de táticas e estratégias de guerras diferenciadas incompatíveis com o conhecimento de Diogo de Campos, terminou por vencer os franceses e os expulsar do Maranhão. Em complemento a este simples fato, Lacroix (2006, p.558-559) acrescenta que:

Assim foi colonizado o Brasil, com ações bélicas que adequavam as regras do sistema militar europeu à situação colonial. [...] Foi premido pelas carências militares, de um lado, e as condições difíceis do sistema ecológico, por outro, que se desenvolveu a forma de ‘guerra do Brasil’.

A dimensão dessa experiência resultou numa “estrutura” que durou por mais de dois séculos. Foi no interior deste sistema ecológico que se desenvolveram novos hábito em homens capazes de penetrar todas as matas, todos os sertões e continuamente improvisar seu sustento de caça, bichos, cobras e lagartos, raízes de vários paus e fruta bravas, consagrando, dessa maneira, uma forma específica de mover-se e se manter nas matas. Pois afinal, afirma Laranjeira (apud HOLANDA, 1995, p. 54), “o fruto segue a condição do ventre”. Ou seja, o ventre que gera o fruto, também lhe confere conformação, o molda e determina, pelo menos do ponto de vista das características físicas.

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