• Nenhum resultado encontrado

Entre a tutela e a liberdade

No documento Download/Open (páginas 59-64)

O Maranhão foi o berço deste laboratório, pois quatro anos depois (1758) o modelo de Diretório passa a ser estendido para o resto do país, sendo exportada assim a experiência de Belém e Maranhão. Trinta anos depois, em 1798 D. Maria I, com uma Carta Régia prescreve o Diretório e com ele a tutela dos diretores, agravando-se mais a condição indígena, uma vez que eles foram entregues à guarda particular de quem os desejasse organizá-los em colônias, desde que pudesse instruí-los e pagá-los.

Dessa forma, afirmam Cunha et al (1998) os índios saiam da alçada das autoridades centrais e passavam para as locais, no que aumentava a escravidão e arbitrariedades, pois os aldeamentos ficavam muito distantes e quase sempre eram nomeados juízes de órfãos como administradores que usavam do cargo para atender seus interesses imediatos. Eram escravos incompletos nas palavras de Gorender (1988), explorados pela coletividade da vizinhança local.

Passada a desordem do período mariano-joanino (1778-1822) em que a política indigenista esteve mais voltada para os arranjos sobre a terra e índios como estratégia do povoamento das regiões “vazias”, o que conferiu pequeno surto de valorização da terra em algumas regiões. No Maranhão a ação indigenista do governo somente se articula na metade do século XIX, com a criação das Colônias

Indígenas e das Diretorias Parciais, conforme o Decreto de 1845 que somente foi regulamentado em 1854 e pela Lei Provincial de 1870. Ao todo eram sete Colônias e vinte e cinco Diretorias.

O efeito legal da lei era pequeno, visto que numa vasta região, inexistia a presença do Estado. Os Relatórios e “falas” dos Presidentes da Província desde 1862, dão notícia do uso dos índios na construção de obras públicas; e na grande maioria, os Relatórios demonstram desânimo para com a política das Colônias e Diretorias, dados os conflitos permanentes entre os índios e os moradores que viviam próximo às aldeias e apontam as causas da falência da Política Indigenista da Província, (Relatório de 1867) decorrentes dos abusos dos Diretores, uma vez que os poucos que se candidatavam, e ao aceitarem o cargo, o faziam no intuito de lucrar usando o trabalho dos índios em benefício próprio.

Esta desordem das Colônias e Diretórios vai durar por meio século, pois esses órgãos serão abolidos somente em 1889 e daí por diante tudo fica à deriva por mais vinte anos.

Com a criação em julho de 1910 do “Serviço de proteção aos índios e Localização de trabalhadores nacionais”, órgão do governo federal, o título é altamente sugestivo, na parte complementar ao tratar da (localização de trabalhadores nacionais?). Imediatamente, no ano seguinte, (1911), é criado no Maranhão o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Este órgão seguiu o trágico destino dos anteriores, o volume de denúncias, com repercussão internacional de violação de direitos, massacre e corrupção.

Esse órgão terminou por durar pouco mais de meio século, sendo extinto, pouco depois do golpe militar, em 1967, e em ato seguinte, foi criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão que traduzia de forma autoritária o que ficou conhecido como “milagre econômico” dentro de um grande projeto de integração e colonização da Amazônia, resultando na lendária Transamazônica, encalhada ate os dias atuais. A FUNAI, cujas práticas no Maranhão pouco se distanciam das experiências passadas, tem a seu favor o fato de ter largamente se empenhado na luta demarcatória das terras indígenas. Algo substantivo para o que resta destas comunidades.

Resultou do longo processo colonizador, a quase total destribalização dos indígenas maranhenses que haviam se concentrado na ocidental da Província, extremo desarranjo de suas comunidades, cultural e territorialmente. Os indígenas

maranhenses, como afirma Zannoni (1999, p. 21),

ocupam basicamente hoje a Pré-Amazônia do Estado, território abrangido pelos rios Mearim, Grajaú, Gurupi e Pindaré, perfazendo um total de 16 áreas espalhadas pelos municípios de Grajaú, Barra do Corda, Amarante, Montes Altos, Bom Jardim, Zé Doca e Carutapera. Nos últimos cinco anos foi indenizado os fazendeiros das áreas dos Krikati e Guajá e definitivamente demarcada suas terras. Lavradores e criadores do Gurupi, Pindaré, Imperatriz e Paragominas continuam a invadindo as áreas do Alto Turiaçu, Caru e Araribóia.

Em relação à questão demarcatória, desde o princípio o Estado Português conduzia de maneira aleatória (pelo conjunto de leis circunstanciadas) e por conveniência, o uso do espaço, a tal ponto que no século XVIII a estrutura fundiária brasileira, até então estabelecida com o sistema de sesmarias, entrara em profunda crise e completa desordem. Dado esse quadro caótico, donatários, arrendatários e posseiros, praticavam todo tipo de irregularidades, uma vez que a regularidade não contemplava a dinâmica do conjunto de relações que fluía no processo de ocupação.

Por conta disso, na primeira metade do século XIX, mais propriamente em 1822 é baixada uma Resolução suspendendo as doações de novas sesmarias e três décadas depois, em 1850, se tem novamente uma lei geral de terras. Esse vazio colaborou ainda mais na liberdade de apropriação do solo, possibilitando inclusive, por toda a fronteira a pura e simples ocupação – no caso do Sul maranhense – sob pretexto de descobrir e conquistar os gentios.

Para Capistrano de Abreu (1988), a documentação oficial não dava conta de historicizar as ações da vertical de Tordesilhas por força de que o jogo predominante nesta região, no geral, pouco há de registro – como já foi frizado. Sendo, por tanto os registros oficiais apenas uma mirada, encenações nas bordas do grande palco da colonização. Para Portugal, encenar esse teatro de defesa e povoamento fazia parte do seu desejo e cobiça pelo espaço negociado no contexto internacional, para garantir estrategicamente a orla marítima do Maranhão e do Pará.

Assim, por modesto que fosse o papel escrito por alguém que esteve na ribalta dos acontecimentos, ou mesmo o “script” de um ator no largo enredo da colonização distante do litoral, era por certo muito valioso. Pelo que se busca quase sempre no texto é a lógica clandestina contido no discurso. Capistrano buscava um material que contivesse a outra lógica clandestina dos que estavam no centro da

outra colonização para além do teatro litorâneo das Cortes.

Prova disto é o valor que se atribui ao Roteiro do Maranhão e Goiaz pela Capitania do Piauhy. Texto anônimo, com data incerta, mas que se presume escrito por volta de1770. Mesmo escrito da ribalta, interessava ao historiador pelas paisagens dos complexos culturais do ambiente, traduzindo espaço em palavras, ao atribuir nomes, cria-se imagens, imagens de quase tudo, imagens que criam espaços, imagens que criam mapas. Texto voltado para uma política de povoamento, superando o propósito de extermínio dos índios, mas adotando fórmula de reutilizá-los no processo de ocupação. O importante roteiro se torna mais significativo por anteceder por 50 anos os escritos do Major Francisco de Paula Ribeiro. O Roteiro (1900, p. 87) diz no seu primeiro tópico:

Capítulo 1º

Em que se propõe hum novo estabelecimento de Povoação, que se comunique pelo interior do Paiz, do Rio Parnaiba da Capitania do Maranhão ao rio Tocantins da Capitania do Pará, como projeto interessante à reducção de Nações silvestres a povoação e cultura das referidas Capitanias. [...] O meio mais fácil de reduzir grande parte das ditas Nações a huma firme e útil sugeição, He procurar do Maranhão dilatar as Povoações de Pastos Bons, buscando o Rio Tocantins, e fazer o mesmo das margens do dito Tocantins por aquella altura mais coveniente ao fim de se unirem e comunicarem as referidas povoações (ANÔNIMO, 1900, p. 86). Para reduzir-se a prática o referido projecto, nada mais seria necessário, do que o estabelecimento de Trez Arraiaes. O primeiro e segundo, pela Capitania do Maranhão nas margens do Rio Parnahiba e Miarim. O terceiro pela Capitania do Pará, nas margens do Rio Tocantins; com a força de oitenta até cem homens, compreendendo-se no mesmo número aquella parte da tropa, que se julgasse necessária para se fazer respeitados, e obedecidos os chefes de huns corpos, que forçosamente serião compostos de Indios, sem disciplina alguma militar, ou de paisanos libertinos e vadios (Idem, 1900, p. 89).

Isto posto, he fácil de conhecer, que cortado todo este Paiz, com uma linha de Povoações nossas, desde os Sertões da Parnaiba até Tocantins, as Nações, que ficassem ao Norte, vendo que nós por toda parte as cercávamos; não só virão com mais facilidade à nossa sugeição, mas sem as largas despesas e funestas enfermidades que padecem os índios nos seus descimentos, ou novos estabelecimentos se poderião conservar no seu mesmo Paiz Natural, aproveitando-nos nós também delles mesmos para continuarmos a cultura das margens dos Rios Miarim, Pindaré, e dos mais que descem por esta parte as referidas Capitanias do Maranhão.

O cerco definitivo aos povos indígenas e o povoamento da região, idealizado pelo projeto do autor anônimo se perdera, jamais se efetivou, nem as estradas e menos ainda o povoamento fora feito por mãos dos governos durante o Império. Paula Ribeiro, cinqüenta anos depois reclamava praticamente das mesmas

providências. Tudo se fazia mesmo que precariamente pelas mãos dos criadores sertanejos – caminhos e povoamento eram tocados pela imanência de seus atos.

Somente em 1958, se efetiva o cercamento destes povos, com a construção da rodovia Belém-Brasília. Portanto quase dois séculos depois da sugestão de cercamento proposto pelo Roteiro de 1770, mas que a essência, em linhas gerais era a mesma, visto que com a Belém-Brasília visava o governo, continuar o processo de integração dos espaços considerados “vazios”. Essa linha de força era a mesma que vinha desde os tempos coloniais e que continua pulsando ainda nos tempos atuais.

Ficava assim por completo, encurralado o conflito colocado pelo Roteiro e que permanece até os dias atuais. Todas as práticas exercitadas para lidar com a diferença dos povos naturais que se viu até aqui, constantes nos roteiros dos viajantes, missionários, filósofos e juristas, resultaram quase sempre das diferentes articulações sobre o que era considerada uma aberração e por isso mesmo se procurava ordenar o que não se entendia por intermédio de esquema classificatório sob o efeito dos critérios etnocêntricos, a serem conhecidos como modelo de verdade superior por assim lhes parecer racional.

Essa noção de verdade, como sentido de identidade, também se encontra no interior dos povos naturais. Os Tenetehara, conhecidos como Guajajara (os donos do cocar) circunscrito na região do Município de Grajaú e Barra do Corda, área delimitada da pesquisa, tem no seu nome este sentido. Tenetehara = Tem (ser) ete (verdadeiro, real) hara (nós): “nós somos o povo verdadeiro”. Este nome – Guajajara - lhes foi atribuído pelos Tupinambás ficando assim sendo chamados pelos moradores regionais que se instalavam nas proximidades de suas moradas.

O acúmulo de diferentes grupos num curto espaço de tempo numa mesma região premidos pela violência dos colonizadores que os cercavam tanto pelo litoral quanto pelo sertão fez com que a região fosse palco desse conflito social por um largo período, de encontro e de desencontro de lutas étnicas e sociais cujas temporalidades históricas fizeram um tempo desigual, mas que, no entanto estão juntos na complexidade, somando uma distância, de vários tempos históricos compostos e mediados por um conjunto de relações.

Certo é que a política indigenista da primeira metade do século XIX comporta várias interfaces. A maior das práticas foi a que sintonizava o Estado e a população da Província por meio das guerras justas, descimentos e limpeza das áreas pelo

extermínio executado por grandes proprietários produtores, fazendeiros e populares. Embora o Estado e a Igreja justificassem tais ocorrências com a pretensão de salvação das almas e um pouco mais tarde pretendiam permitirem-lhes a ascensão na escala evolutiva pelo viés da ideologia positivista do estágio do primitivo ao civilizado para depois, no final de tão longo extermínio concluir com a metáfora irônica: “matar nunca, morrer se preciso for” (ZANONI, 1999, p. 25 et seq.).

Se estas práticas foram inspiradas e idealizadas sempre a partir de aportes teóricos cristãos ou racionalistas, cimentados nos arquivos eurocêntricos, não parece ser tão autodestrutiva a idéia apontada por Bhabha (2001, p. 43), de que “a teoria é necessariamente a linguagem de elite, dos que são privilegiados social e culturalmente”. Estes, afirma o autor, “são tidos como eternamente isolados das exigências e tragédias históricas dos condenados da terra”.

Como se percebe, teoria e prática nem sempre estão em concordância. Se a empiria, a realidade, só ser manifesta pela voz de uma teoria, a teoria, quase sempre arbitrariamente, só deixa se manifestar o que de fato lhe interessa, o que interessa à elite racionalista que a tudo submete à lógica de sua teorização e racionalização.

No documento Download/Open (páginas 59-64)