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Para Berger & Luckman (2010), o ponto de partida para a reflexão sobre o conhecimento é a vida quotidiana, o universo do conhecimento do senso comum. Este tipo de conhecimento tem pressupostos sobre a realidade que derivam da vivência empírica acerca deles. A realidade da vida quotidiana acentua-se como uma certeza que invade as pessoas e lhes torna os objetos e as situações familiares e significativos. A propósito destes autores, diz Riutort, que um dos seus contributos se situa na formulação de um conceito, o de tipificação, que significa as formas mentais que “ordenam as representações da realidade elaboradas pelo indivíduo” (1999: 85) e que afetam de forma muito significativa os pensamentos e as atitudes das pessoas a esse respeito. Assim, Riutort (op. cit.) salienta que, para Berger & Luckman, o processo de tipificação orienta as condutas e determina os comportamentos que se desenvolvem para com os outros sujeitos na vida quotidiana.

Assim, Berger & Luckman (2010) consideram que, embora as outras realidades sejam horizontes dominados por outros tipos de conhecimento, o pensamento quotidiano é ainda o mais comum, pois

«Comparadas à realidade da vida quotidiana, as outras realidades aparecem como regiões delimitadas de significação, enclaves dentro da realidade dominante, marcados por significados e modos de experiência circunscritos. A realidade dominante envolve-os por todos os lados (…) e a consciência volta sempre para a realidade dominante como se regressasse de uma excursão.» (2010: 37).

A este propósito, também Perrenoud destaca a importância da sociologia da educação que se articula com a vida concreta e os problemas reais das organizações, alicerçada nos papéis e nas funções dos seus diversos atores “…tentarei apresentar uma sociologia da educação mais centrada na vida quotidiana, nas práticas, nas atividades e estratégias dos alunos e dos professores no seio de uma organização” (1995: 13).

Sendo a Filosofia uma atividade decorrente da vida e do pensar humanos, não pode ser dissociada desses aspetos. A compreensão da Filosofia como indissociável da vida e dos problemas concretos de cada pessoa é fundamental para que os alunos entendam a sua necessidade e a sua atualidade. Na parte empírica deste estudo, auscultaram-se opiniões atuais de alunos e de professores sobre a importância da Filosofia e a sua relação necessária com a vida e com os problemas concretos da realidade. Ao apreender o modo como os alunos despertam para a Filosofia, urge descobrir que papel é atribuído ao

42 professor nesse processo, que interpretação fazem os alunos desta disciplina, de que modo é que a veem, se percebem ou não a sua dimensão e aplicação práticas, para além das especulativas que necessariamente referem, como sinónimo das teorias.

Na vida quotidiana, nos problemas diários, face aos problemas que surgem, a Filosofia pode e deve ser uma forma de reflexão, de ponderação e de procura das soluções mais viáveis, mais justas e mais humanas. A Filosofia pode ser um instrumento do pensar, uma ferramenta imprescindível aos alunos e às pessoas de uma sociedade em geral. Daqui surgem inevitáveis questões (Será realmente assim? Deixará a disciplina de Filosofia marcas nos alunos que se possam tornar significativas na resolução dos problemas do quotidiano?) Outras questões prendem-se com os professores, ou com os alunos, ou com ambos. A este propósito, Goffman diz que “Quando um indivíduo se apresenta diante dos outros, consciente ou inconscientemente projeta uma definição da situação, da qual uma parte importante é o conceito de si mesmo” (1999: 221-222). Riutort (1999) diz sobre Goffman que este assemelha a vida social a um palco e a um conjunto de representações, onde cada indivíduo interioriza e se apropria do seu papel de tal forma que o pode ir alterando e corrigindo no decurso do tempo e das ações sociais.

A forma como os alunos contactam com a disciplina de Filosofia (durante dois anos apenas nos cursos Científico-Humanísticos) e o modo como os professores desempenham o seu papel, será tudo isso suficiente para que esta disciplina se torne tão marcante e tão significativa para as pessoas, no contacto com os problemas e as situações concretas? A realidade que envolve os alunos, os seus problemas diários, os seus interesses e motivações poderão relacionar-se com alguns conteúdos e temáticas que são trabalhados nas aulas? Estas e outras questões podem colocar-se sobre o processo de ensino-aprendizagem.

Pais acentua a importância dos aspetos múltiplos a ter em conta na análise social, os quais, aparentemente parecendo descontínuos e desconexos, podem ser elementos esclarecedores e clarificadores das intenções e dos motivos que os originaram: “Os fragmentos de vida, tomados em sua descontinuidade, são partes de um labor sociológico de collage (…). Montagem de fragmentos, de peças soltas, para que sejam legíveis a partir do processo de montagem” (2003b: 100).

Goffman (1999) salienta como a interação entre todos os elementos que interferem nas variadas situações se assemelha de alguma forma a um jogo, em que algumas ações determinam outras, como se ao jogar de uma determinado modo, se condicionassem os

43 elementos restantes, para um rumo e não para o outro. Essa interação entre todos os elementos encontra-se na escola em geral ou nas aulas de Filosofia em particular; em qualquer dos casos, o professor é um ator que se expõe perante uma plateia, apresentando um currículo que seja atrativo e motivador, tornando-se indiciador de capacidades formativas e reflexivas que sejam autónomas. Ainda de acordo com Goffman, ao comparar-se a vida real com um palco ou com um jogo, sabe-se de antemão, que as consequências das ações empreendidas são diversas nos dois casos. No entanto, a semelhança entre eles reside na necessidade de ambos terem de utilizar técnicas verdadeiras para que os resultados possam ser bem sucedidos.

Poderia afirmar-se que é também nessa certeza que enraíza todo o processo da Educação. Berger & Luckman destacam como o interesse sociológico pelos assuntos relacionados com a realidade e o conhecimento diferem consoante os interesses, as motivações das pessoas e o local e a cultura onde se situam: “(…) defendemos o ponto de vista de que a sociologia do conhecimento se preocupa com a análise da construção

social da realidade” (2010: 15). Os autores acentuam ainda como a realidade da vida

quotidiana é partilhada com os outros e em interação com eles:

«A realidade da vida quotidiana é partilhada com outros. Mas de que modo serão esses outros vivenciados na vida quotidiana? Também aqui é possível estabelecer diferenças entre vários modos dessa experiência. A mais importante vivência de outros ocorre na situação de frente a frente com outro, o protótipo da interação social. Todos os outros casos derivam deste.

Na situação frente a frente o outro é apreendido por mim num vivido presente, partilhado por nós dois. Sei que no mesmo vivido presente lhe sou apresentado.» (op. cit. 40)

Através da linguagem, consideram estes autores, estabelece-se a interação com os outros na vida quotidiana, permitindo estabelecer elos pragmáticos sobre as situações comuns que são decorrentes da vida quotidiana. O conhecimento comum é o mais utilizado porque permite resolver problemas pragmáticos que são derivados da vida quotidiana. Estes autores defendem que existe um conhecimento pragmático do modo de funcionamento dos objetos comuns que serve para resolver os problemas práticos, utilizando-se a linguagem corrente nesse sentido e nada mais. Este é o conhecimento da vida quotidiana, pois não se quer saber detalhadamente como são constituídos os objetos, já que a sua função é, tão-somente, a de servir para resolver determinados problemas práticos, já que o conhecimento específico das situações é do domínio de certos especialistas a quem se recorre quando se necessita de outra opinião mais específica.

44 Para Berger & Luckman (2010), a validade desse tipo de conhecimento só é posta em causa quando surgem situações em que as mesmas são questionadas na sua validade:

«Sendo a vida quotidiana dominada por motivos pragmáticos, o conhecimento prescrito, isto é, o conhecimento limitado à competência pragmática em desempenhos rotineiros, ocupa lugar destacado no património social do conhecimento.» (idem: 53).

Os mesmos autores destacam como a sociedade aparece assim como uma realidade objetiva nas suas instituições, modos e regras de funcionamento, sendo que nas instituições, os comportamentos são tornados coisas habituais, expectáveis e objetivas. A sociedade é apontada como objetiva, enquanto existe em si mesma, sendo prévia e anterior à vontade e à realização do sujeito. Mas a realidade também é subjetiva, enquanto vivida pelo sujeito na sua interioridade. Estes autores apontam a socialização primária como o primeiro momento de apreensão da sociabilidade objetiva na subjetividade de cada ser humano: “(…) na vida de cada indivíduo existe uma sequência temporal no decurso da qual é induzido a tomar parte na dialética da sociedade. (…) Isto não significa que compreenda o outro de maneira adequada” (idem: 137). A compreensão do outro pode ser mal interpretada pelo sujeito por diversas razões. Quanto à socialização secundária, esta implica já outro tipo de conhecimento e outro tipo de relação com os outros. Há aqui uma relação que se torna institucional e já é tão significativa como o era na socialização primária. A este respeito, Berger & Luckman consideram que:

«(…) a realidade da vida quotidiana mantém-se por estar corporificada em rotinas, essência da institucionalização. (…) a realidade da vida quotidiana está sempre a ser reafirmada na interação do indivíduo com os outros. Tal como a realidade foi, no início, interiorizada por um processo social, assim é também mantida na consciência por processos sociais. Estes últimos não são muito diferentes dos da primeira interiorização. Refletem também o facto básico de que a realidade subjetiva deve ter com a realidade objetiva uma relação definida ao nível social.» (idem: 156)

A conversação é o modo como se transmite e mantém o funcionamento da realidade social. A identidade forma-se nesse decurso da realidade social em que o indivíduo está mergulhado, sendo essencial a articulação entre os diversos elementos que interferem nesta interação, acentuam ainda Berger & Luckman, já que “Na dialética entre a natureza e o mundo social construído, o próprio organismo humano é transformado. Nessa mesma dialética o homem produz realidade e assim se produz a si mesmo.” (idem: 188).

45 Maffesoli destaca a ambivalência do ser humano naquilo que designa como “epistemologia do mal” (2003: 23) e que se caracteriza pelas formas de domínio, de exploração e de terror que uns exercem sobre outros. Segundo o autor, são esses aspetos opostos que estão presentes em cada dimensão da realidade que conduzem à tragédia que espreita cada ser humano e que emerge do desenvolvimento do pólo negativo. Para este autor, a vida quotidiana “é atravessada por conflitos que lhe conferem toda a intensidade” (op. cit. 59), embora habitualmente as pessoas se instalem no conforto das suas certezas e pressupostos e esqueçam essa dimensão trágica da realidade e da existência.

Dubet diz a propósito de Berger & Luckman que, para estes autores, a ação humana é sinónimo de conhecimento, já que cada “ator interpreta o mundo e a sua própria história nas categorias que lhe preexistem, as dos papéis e das instituições definidas como maneiras de organizar a realidade” (1996: 81). Desta forma, ainda segundo Dubet, para Berger & Luckman, a condição para que cada pessoa se possa enquadrar e integrar devidamente no sistema social, é o conhecimento comum da realidade e do funcionamento da sociedade e das instituições.

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