• Nenhum resultado encontrado

A violência de gênero: percepções da realidade no território

5.3 A VIOLÊNCIA E AS PRÁTICAS EM SAÚDE PARA AS

5.3.1 A violência de gênero: percepções da realidade no território

O grupo foi unânime quanto à existência da violência contra a mulher no Distrito do Capão Redondo, inclusive identificando algumas de suas formas.

Violência contra a mulher aqui no Capão acontece no espaço doméstico (inclui verbal, física, emocional, moral, psicológica, sexual), no trabalho (assédio moral, sexual, psicológico, etc.) e na vida social (nos transportes públicos, na condução de um automóvel).

Agressão verbal - maridos agridem as esposas com palavras; agressão física - pai que bate nas mulheres e filhas; agressão psicológica; agressão sexual (abuso e estupro); agressão por omissão (quando a mulher se cala perante a violência sofrida e cada dia sofre mais).

Nas falas, o grupo elencou algumas formas de violência que entrelaçaram os limites de sua definição, ou seja, não definiram claramente

sua tipologia. O conhecimento dos tipos de violência é condição para a realização da notificação compulsória além de facilitar a tomada de decisão com vistas à intervenção.

O Ministério da Saúde construiu uma linguagem comum para a violência doméstica/intrafamiliar, reunindo os conhecimentos de saúde ao de outras áreas como a social e a jurídica, para que profissionais de saúde possam identificar com maior clareza a abrangência da violência. As principais formas de violência, que na íntegra, podem ser caracterizadas como:

Violência física: ocorre quando uma pessoa, que está em relação de poder com a outra, causa ou tenta causar dano intencional por meio do uso da força física ou de algum tipo de arma que possa provocar ou não lesões externas, internas ou ambas. Esta violência pode ser manifestada de várias formas: tapas; empurrões; socos; mordidas; chutes; queimaduras; cortes; estrangulamento; lesões por armas ou objetos; obrigar a tomar medicamentos desnecessários ou inadequados como álcool, drogas ou outras substâncias, inclusive alimentos; tirar de casa à força; amarrar;

arrastar; arrancar a roupa; abandonar em lugares desconhecidos; danos à integridade corporal decorrentes de negligência (omissão de cuidados e proteção contra agravos evitáveis como situações de perigo, doenças, gravidez, alimentação, higiene, entre outros). Violência sexual: é toda a ação na qual uma pessoa em relação de poder e por meio de forca física, coerção ou intimidação psicológica, obriga a outra ao ato sexual contra a sua vontade, ou que a exponha em interações sexuais que propiciem sua vitimização, da qual o agressor tente obter gratificação. A violência sexual ocorre em uma variedade de situações como estupro, sexo forçado no casamento, abuso sexual infantil, abuso incestuoso e assédio sexual. Inclui, entre outras: carícias não desejadas; penetração oral, anal ou genital com pênis ou objetos de maneira forçada; exposição obrigatória a material pornográfico; exibicionismo e masturbação forçados; uso de linguagem erotizada em situação inadequada; impedimento ao uso de qualquer método contraceptivo ou negação por parte do parceiro (a) em utilizar preservativo; ser forçado (a) a ter ou presenciar relações sexuais com outras pessoas além do casal. Violência psicológica: é toda ação ou omissão que causa ou visa a causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa. Inclui: insultos constantes; humilhação; desvalorização; chantagem; isolamento de amigos e familiares; ridicularização; rechaço; manipulação afetiva; exploração; negligência (atos de omissão a cuidados e proteção contra agravos evitáveis como situações de perigo, doenças, gravidez, alimentação, higiene, entre outros); ameaças; privação arbitrária da liberdade (impedimento de trabalhar, estudar, cuidar da aparência pessoal, gerenciar o próprio dinheiro, brincar, etc.); confinamento doméstico; críticas pelo desempenho sexual; omissão de carinho; negar atenção e supervisão (Brasil, 2002, p. 16-21).

A Lei Maria da Penha no Art 7º itens IV e V inclui a violência patrimonial e a violência moral caracterizando-as como:

A violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; [...] a violência moral, entendida

Resultados e Discussão 90

como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (Brasil, 2006b).

Estudo realizado em São Paulo relata que os companheiros e ex- companheiros foram os principais perpetradores em 77,6% dos casos de violência contra a mulher. As regiões do corpo mais atingidas pelas agressões foram: membros superiores incluindo braço e antebraço (33,6%); face (28,0%); cabeça e pescoço (26,6%); membros inferiores (16,8%); costas (16,8%); barriga (14,0%); tronco (8,4%); seios (8,4%); nádegas (6,3%); e outras regiões (9,8%) (Schraiber et al, 2002).

Na pesquisa recente da Fundação Perseu Abramo (2010), analisando o tipo mais comum de violência física, 84% dos entrevistados (homens que bateram em mulheres ou namoradas) relataram que tapa, empurrão, apertão e sacudidas foram as agressões mais comuns. Espancamento com marcas, cortes ou fraturas foram relatados por 7% dos entrevistados.

O grupo relatou as características de outro tipo de violência muito comum, que na realidade correspondem à violência psicológica, como aquela que produz privação da liberdade e contínuo convívio com ameaças.

Dois tipos de violência que a gente não soube definir muito bem a palavra, mas seria assim restritiva tipo, a pessoa fica privada de estudar e o homem fica fazendo chantagem emocional [...] ela tem medo de fazer alguma coisa por medo das ameaças. E a outra também é contra a liberdade, ela não tem liberdade de certas coisas e o homem tem ciúmes da mulher ganhar mais, da mulher sair pra trabalhar, de ter uma vida social, enfim...

Quanto ao ciúme do homem em relação à posição social e independência da mulher, Beauvoir (1970) entende que a humanidade é masculina e o homem define a mulher a partir dele e não a considera um ser autônomo nem tampouco igual. Para todos que sofrem de complexo de inferioridade diz o seguinte:

Ninguém é mais arrogante em relação às mulheres, mais agressivo ou desdenhoso do que o homem que duvida de sua virilidade. Os que não se intimidam com seus semelhantes mostram-se também muito mais dispostos a reconhecer na mulher um semelhante (Beauvoir,1970, p. 19).

Na pesquisa da Fundação Perseu Abramo (2010), os entrevistados que já haviam batido em mulher ou namorada mais de uma vez referiram que as razões da última violência estavam relacionadas ao controle da fidelidade feminina. Este índice aumentou de 34% em 2001 para 46% em 2010, chegando ao índice de 51% quando a renda da mulher estava acima de 5 salários mínimos.

Considerando os estudos de Jewkes (2002), as mulheres que estão mais capacitadas educacional, econômica e socialmente estão mais protegidas, mas não em todos os casos, porque a violência está associada com o produto da desigualdade, seja na forma de vantagem ou de desvantagem para qualquer uma das partes. A violência é, frequentemente, usada para resolver uma crise de identidade masculina às vezes causada pela pobreza ou por uma incapacidade de controlar as mulheres.

Segundo Foucault (1987), o poder não é sinônimo de posse, de propriedade, mas seus efeitos de dominação são atribuídos a manobras técnicas e disposições que são resistidas ou contestadas, podendo ser aceitas ou não. O poder pode transitar em várias direções como se fosse uma rede que envolve toda a sociedade, em contínua tensão. O exercício do poder acontece entre os sujeitos que são capazes de resistir, caso contrário, seria uma violência.

Todas as mulheres estão expostas à violência, mas nem todas expostas à mesma violência ou à mesma intensidade e gravidade das agressões. Há determinantes diferenciados, potencial de desgaste e potencial de proteção e contextos mais e menos vulneráveis à violência, porque as relações de gênero que fundamentam a violência estão baseadas em contextos históricos e socioculturais que conferem características particulares à violência (Portela, 2005).

Resultados e Discussão 92

Para o grupo desta pesquisa, a violência no Capão Redondo articula-se a outros fenômenos como ao uso de bebidas alcoólicas, drogas e repetição de ciclos doentes de saúde mental.

O uso de bebidas alcoólicas e substâncias psicoativas por parte dos agressores, situação financeira desfavorável [da mulher] pela dependência financeira dos agressores, depender do dinheiro, da moradia; o temor das vítimas em conseguir realizar alguma mudança, de conseguir fazer alguma denúncia, de mudar essa situação. Muitas vezes elas ficam paralisadas diante dessa violência, dessas ameaças e tudo mais.

O uso desenfreado do álcool, desde criança até o adulto. Por mais que existam as leis de proibição da compra e venda, principalmente em bairro a gente sempre vê criança passando com as garrafas de cerveja e já bebendo mesmo.

Convivência com repetições de ciclos doentes de saúde mental, de violência, de drogadição, de inúmeros ciclos. Ciclos doentes a gente vê se repetindo na nossa sociedade, que vem do nordeste, que vem do sul, de gente que está há gerações aqui em São Paulo e talvez com a violência instaurada e a gente tem pouco manejo.

Para Jewkes (2002), a perpetuação da violência na família tornando-a natural aumenta a probabilidade de manter o estado de opressão do homem contra a mulher e a aceitação dela quanto ao abuso sofrido. O ciclo intergeracional da violência tem sido documentado em várias configurações e por vários pesquisadores. Os filhos de mulheres que são espancadas são mais propensos a bater no seu parceiro íntimo. As filhas de mulheres que são espancadas são mais propensas a apanhar quando adultas. Mulheres que são espancadas pelos pais na infância também são mais propensas a serem abusadas por parceiros íntimos na fase adulta.

O consumo de álcool está associado com o aumento do risco de todas as formas de violência interpessoal. O consumo abusivo de álcool pelos homens (e muitas vezes pelas mulheres) está associado à violência por parceiro íntimo. O álcool é usado para reduzir as inibições e prejudicar a capacidade de interpretar os sinais sociais. Alguns pesquisadores observaram que o álcool pode agir como um time out cultural para o comportamento antissocial. Assim, os homens são mais propensos a agir violentamente quando bêbados, porque eles não sentem que serão

responsabilizados por seu comportamento. Em alguns contextos, os homens têm descrito o uso de álcool de forma premeditada para capacitá-los para bater em seu parceiro, porque sentem que isso é socialmente esperado. Parece provável que as drogas que reduzem a inibição, como a cocaína, têm relações semelhantes com as do álcool quanto à violência por parceiro íntimo, mas ainda carece de pesquisas (Jewkes, 2002).

Estudos internacionais da década de 90 apontaram que o álcool, comumente, atua como um desinibidor, facilitando a violência. Os estimulantes como cocaína, crack e anfetaminas estão, frequentemente, envolvidos em episódios de violência doméstica, por reduzirem a capacidade de controle dos impulsos e aumentarem as sensações de perseguição. Homens violentos casados possuem índices mais altos de alcoolismo em comparação àqueles não violentos. Estudos relatam índices de alcoolismo de 67% e 93% entre maridos que espancam suas esposas. Entre homens alcoolistas em tratamento, 20 a 33% relataram ter atacado suas mulheres pelo menos uma vez no ano anterior ao estudo; para elas, os índices seriam mais elevados. Por outro lado, as mulheres, também, podem recorrer ao álcool e drogas para aplacar os danos causados pela violência doméstica (Zilberman, Blume, 2005).

Estudo realizado com estudantes da USP, capital, ocupantes da moradia estudantil, revela que pertencem às classes sociais de baixa renda e recorrem ao uso de drogas ilegais e medicamentos a fim de conseguir alívio quando se sentem emocionalmente afetados por estados de angústia, desânimo, depressão e situações difíceis de sobrevivência. Associado a isso, encontram condições favoráveis de liberdade e facilidade de acesso a esses produtos. Já quanto ao consumo de álcool, 50% dos entrevistados apontaram o início do uso ligado à influência familiar e 75% deles iniciaram o consumo na infância ou na adolescência. Todos os participantes da pesquisa relataram que praticaram ou sofreram algum tipo de violência física, verbal, doméstica, sexual ou contra o patrimônio público enquanto intoxicados (Zalaf, Fonseca 2009).

Resultados e Discussão 94

5.3.2 Características da assistência à saúde para as mulheres que