• Nenhum resultado encontrado

A violação ao direito coletivo à verdade: desaparecidos da democracia

4 POLÍTICA CRIMINAL E PESSOAS DESAPARECIDAS

4.4 A violação ao direito coletivo à verdade: desaparecidos da democracia

que torna cogente a atuação diante do desaparecimento “han influído em la formación de los hábitos intelectuales y morales de la classe de los juristas – han revelado sin embargo uma virtualidade autoritária y antigarantists”192.

À vista de todo o exposto, essa tese busca apresentar que, no Brasil, a própria conceituação do desaparecimento de pessoas torna-se complexa pelo fato da estrutura institucional do Estado rechaçar o tema como de direitos humanos, a ser efetivado pelos órgãos sob sua administração. É resquício autoritário também pela própria atividade conceitual mostrar toda uma dificuldade vertical de identificação dos traços de fundamentalidade envolvidos no desaparecimento de pessoas, que circulam por toda a coletividade, que não consegue se desvincular, em termos de verdade e memória, da moralidade presente na aplicação da norma, no Brasil.

Não se trata apenas do direito individual que possui cada vítima ou seus familiares de saber o que aconteceu, enquanto direito à verdade. O direito de saber é também um direito coletivo que encontra sua origem na história para evitar que no futuro as violações se reproduzam. Ele tem por contrapartida, a cargo do Estado, o ‘dever de memória’, a fim de se precaver contra essas distorções da história.

Essas são as principais finalidades do direito de saber enquanto direito coletivo194.

Embora muito utilizado quando da transição política numa “direção liberalizante”, como da ditadura para a democracia, todo exercício de poder que viola direitos humanos deve ser conhecido e memorizado, para não ser repetido. Ao mergulhar na dinâmica das buscas familiares de desaparecidos, rapidamente encontra-se o crescente processo de redesaparecimento acima esmiuçado, que costuma ser recebido com surpresa, especialmente por profissionais do Direito.

Sua dinâmica precisa estar detidamente memoriada, para evitar novas vítimas. “Legados que não podem ser simplesmente esquecidos, mas enfrentados”195 não deixam de ser (duros) aprendizados.

A verdade, traduzida em fatos e testemunhos, no presente caso, torna-se memória e, a partir dela, desejamos não repeti-la, inclusive mudando legislações.

Ao longo de nove anos, foi possível mostrar e dialogar no sentido de propor mudanças, através da Portaria DGP 21/2014, para um protocolo de buscas de desaparecidos pela polícia judiciária paulista, a Resolução n. 298/2016 do CREMESP; para um protocolo de colheita e difusão de dados de pacientes não identificados ou desacompanhados; a criação de verdadeiro termo de consentimento de doação de órgãos no SVO paulista e a funcionalidade, ainda parca, de setor de contato do IML com a Delegacia Especializada de Desaparecidos.

Descobriu-se, sobretudo, todas as perdas da sociedade brasileira com a falta de um banco de dados interconectado, ainda que Estadual, o que foi demandado por ação civil pública e é objeto de estudos atuais do governo federal, em meio à organização da Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas.

194 Como ensina Carla Osmo, citando o relatório de Louis Joinet, apresentado em 1997 à Subcomissão Para Prevenção de Todas as Formas de Discriminação e Proteção às Minorias das Nações Unidas (ONU, E/CN.4/Sub.2/1997/20/Rev.1, 1997). OSMO, Carla. Direito à verdade: origens da conceituação e suas condições teóricas de possibilidade com base em reflexões de Hannah Arendt. Tese (Doutorado em Filosofia do Direito). Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2014. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-11022015-144455/publico/TeseCarlaOsmo.pdf. Acesso em: 06 maio 2022.

195 CARNEIRO, Eliana Faleiros Vendramini; HATTORI, Marcia Lika. Políticas neoliberais: o desaparecimento de pessoas na burocracia dos cemitérios. Revista M. Estudos sobre a morte, os mortos e morrer. Rio de Janeiro, v. 5, n.

10, 2020, p. 205.

Depara-se, mais uma vez, com a necropolítica no atendimento policial, agora em face dos familiares vítimas, travestidos de negligentes ou bandidos, a partir das ilações quanto aos seus parentes desaparecidos, na maioria moradores da periferia da capital.

E não mais nos deixemos enganar por normas (sim, normas) inconstitucionais, a exemplo da autorização da incineração de patrimônio social, a bem do “espaço público”, em detrimento de famílias inteiras vagando em busca de seus parentes desaparecidos.

Que a memória não nos deixe esquecer:

Uma das características mais evidentes do regime militar brasileiro foi a sua capacidade de transformar atos de força em figuras do direito. O regime procurou produzir uma certa aparência de legalidade, o que se pode constatar pela existência de atos institucionais dotados de elaboradas exposições de motivos, pela promulgação de emendas constitucionais, pela manutenção da atividade dos poderes legislativo e judiciário (com muitos expurgos, punições e cassações) e pela aprovação de leis ordinárias [...] Para atingir tais objetivos, o regime precisou também controlar um elemento crucial: a relação entre regra e exceção, por meio da hábil manipulação de vários tipos de normas jurídicas196.

Vive-se outro momento histórico, mas os relegados permanecem.

A propósito, precisou a Corte Constitucional decidir, com repercussão geral, que não é constitucional o Direito ao Esquecimento, ou seja, o impedimento da divulgação de fatos ou dados verdadeiros por meio de comunicação em razão da passagem do tempo, "não há como extrair do sistema jurídico brasileiro, de forma genérica e plena, o esquecimento como direito fundamental limitador, como forma de coatar outros direitos à memória coletiva”197 (g.n.).

Afinal, “quem vai saber da escravidão, da violência contra mulher, contra índios, contra gays, senão pelo relato e pela exibição de exemplos específicos para comprovar a existência da agressão, da tortura e do feminicídio?”198. Quem vai saber dos desaparecidos, da ditadura à

196 PAIXÃO, Cristiano. Entre regra e exceção: normas constitucionais e atos institucionais na ditadura militar brasileira (1964-1985). Revista História do Direito, 2020, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 227-241, jul.-dez. 2020, p. 229. Disponível em:

https://www.academia.edu/44835023/Entre_regra_e_exce%C3%A7%C3%A3o_normas_constitucionais_e_atos_inst itucionais_na_ditadura_militar_brasileira_1964_1985. Acesso em: 15 jun. 2022.

197 Parte do voto da Ministra Cármen Lúcia no RE 1010606/RJ, com repercussão geral reconhecida. Disponível em:

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=460414&ori=1. Acesso em: 27 jul. 2022.

198 Parte do voto da Ministra Cármen Lúcia no RE 1010606/RJ, com repercussão geral reconhecida. Disponível em:

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=460414&ori=1. Acesso em: 27 jul. 2022.

democracia? “Não cabe passar a borracha e partir para um verdadeiro obscurantismo e um retrocesso em termos de ares democráticos”199.

Até porque, na presente matéria, continua ocorrendo descaso com a dignidade da pessoa humana, que é fundamento do Estado Democrático de Direito, conceito que tomado conforme Kant: característica humana do que não tem preço ou valor, ao contrário das coisas. "Ages de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio"200.

Ora, um desaparecido, a priori, tem seus direitos à vida ou à integridade física violados (se forçado, também à liberdade). Já o familiar, ou interessado direto no desaparecimento, tem, desde logo, sua integridade física violada, tomado pela dor ambígua. Toda a magnitude dos direitos que é tratados aqui é bastante clara.

Vida, liberdade e integridade física não têm valor econômico, pelo contrário, são direitos humanos da mais alta relevância. E independem de origem, raça, etnia, gênero, idade, condição econômica e social, orientação ou identidade sexual, credo religioso ou convicção política.

E, ao Estado, cabe zelar por esses direitos.

199 Parte do voto do Ministro Marco Aurélio no RE 1010606/RJ, com repercussão geral reconhecida. Disponível em:

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=460414&ori=1. Acesso em: 27 jul. 2022.

200 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Guido Antônio de Almeida. São Paulo:

Discurso Editorial, 2009, p. 429.