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Crítica filosófica à política criminal: irracionalidade das justificações externas oferecidas

4 POLÍTICA CRIMINAL E PESSOAS DESAPARECIDAS

4.3 Crítica filosófica à política criminal: irracionalidade das justificações externas oferecidas

órgãos de segurança pública, no sentido da busca. Fala-se, aqui, da política criminal enquanto “um conjunto de opções políticas dentro da esfera criminal”186. Isso porque o termo política criminal é equívoco e não está sendo abordado o estudo científico da postura política do Estado, assumida em todas as fases relacionadas ao crime.

De qualquer forma, não há como deixar de constatar que, se o ordenamento jurídico apenas autoriza prestações positivas e não negativas frente ao tema, as justificativas para esse não fazer só podem ser respondidas por razões de cunho pessoal dos agentes, isto é, razões morais, que pertencem à lógica da filosofia política, como se exporá a seguir.

chegar a seus elementos. Assim, em regra, se não descoberto um crime, como o homicídio, o feminicídio ou a extorsão mediante sequestro, o caso pode ser recambiado a rede de proteção de direitos humanos e servirá para restituir a ordem pública.

Apesar que natural certa divergência entre norma e efetividade, “la proclamación de los derechos fundamentales, como por los demás del principio de igualdad y por otro lado de la representación, equivale a la estipulación de valores”187 deveriam servir ao juízo de atuação dos agentes públicos. As promessas brasileiras quanto a um Estado Democrático de Direito possuir ao menos alguma tentativa de execução.

Ao mesmo tempo em que o Brasil mantém sua estrutura conivente com o desaparecimento, em termos de não evitação, a Polícia Judiciária Portuguesa possui legítima identificação do tema, não existindo discussão, por exemplo, acerca do desaparecimento de pessoas estar no rol de atribuições policiais. Em contato com o Inspetor Sr. Fernando Santos e Sr. Armando Machado, em outubro de 2019, questionou-se acerca de como a polícia portuguesa entendia sua atuação quando descoberto que determinado desaparecimento foi voluntário.

Referidos inspetores, lotados respectivamente na polícia judiciária portuguesa e na INTERPOL, surpreenderam-se com a dúvida, esclarecendo que “o desaparecimento não criminal traz alegria aos policiais, por nada de ruim ter ocorrido ao desaparecido”. Ademais, esclareceram que a polícia portuguesa entende como de maior gravidade um registro de desaparecimento de pessoas, ao ponto da própria polícia formular um “Manual de Procedimentos de Investigação de Pessoas Desaparecidas”, cuja essência adveio da própria constatação daquela estrutura policial quanto à

necessidade de, ainda que de forma sintética, ser elaborado um manual de procedimentos a serem desencadeados pela Polícia Judiciária (PJ), em matéria de investigação de pessoas desaparecidas. Este manual de procedimentos vem enquadrar legalmente o procedimento de investigação policial de pessoas desaparecidas e estabelecer um conjunto de orientações e método e investigação de desaparecidos, que deverá ser adotado pelas unidades orgânicas da PJ quando confrontados com uma notícia de desaparecimento188.

É interessante notar que houve toda uma preocupação de fundamentar a atribuição da investigação de pessoas desaparecidas pela polícia judiciária portuguesa, independente de uma

187 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Rázon. Teoria del garantismo penal. 10ª Ed. 3ª Reimp. Tradução espanhola de

IBÁNEZ, Perfetco; et. al. Madrid: Trotta, 2018, p. 866.

188 PORTUGAL. Manual de procedimentos de investigação de pessoas desaparecidas da República Portuguesa.

Inspetores Fernando Santos, Armando Machado e Cristina Santos, 2019, p. 05.

legislação nacional específica, como a nossa Lei n. 13.812/2019. Vale a transcrição do manual da polícia portuguesa a esse respeito:

Perante a ausência injustificada de uma pessoa coloca-se a questão sobre a legitimidade legal da polícia intervir na esfera privada da pessoa através de uma investigação policial, uma vez que a ausência de uma pessoa pode não significar que a mesma tenha sido vítima de qualquer crime, podendo tratar-se de um ato voluntário da mesma.

2. Com que legitimidade a Polícia investiga pessoas desaparecidas?

Prevê o texto constitucional, no seu art. 24, que a vida humana é inviolável, podendo, no caso de desaparecimento de uma pessoa, esse direito fundamental estar em causa. Cabe à polícia, nas suas funções de defesa dos direitos dos cidadãos, a função de intervir recolhendo e confirmando informações suspeitas, no sentido de salvaguardar a integridade da vida de pessoas desaparecidas e evitar a ocorrência de crimes, bem assim como descobrir provas do cometimento de crimes e seus autores, cf. art. 55 do CPP.

Considerando-se os direitos fundamentais como “condiciones constitutivas de la igualdad y al mismo tiempo del valor de la persona”189, as situações jurídicas caracterizadas pela não atuação do Estado violam aspectos substanciais da própria democracia190, pois a violação dos direitos envolvidos no desaparecimento atinge não só aos direitos fundamentais do desaparecido, como os direitos de toda a coletividade. Não à toa, mais um dos efeitos da ausência do Estado nos espaços em que deveria atuar, está no

sentido de que su violación justifica la violencia: la violencia individual de la legitima defesa o del estado de necesidad como causa de justificación de actos que de otro modo serían punibles como delitos; la violencia colectiva de la resistencia y violación proviene de las autoridades públicas191.

Ora, se a violação dos direitos fundamentais pelo Estado é capaz de ocasionar violência, segundo o aporte teórico garantista, não há como concluir que o comportamento brasileiro não seja autoritário, na medida em que o desrespeito ao próprio ordenamento codificado

189 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Rázon. Teoria del garantismo penal. 10ª Ed. 3ª Reimp. Tradução espanhola de

IBÁNEZ, Perfetco; et. al. Madrid: Trotta, 2018, p. 909.

190 “Lhamaré democracia sustancial o social al << estado de derecho>> dotado de garantias efectivas, tanto liberales como sociales, y democracia formal o política al <<estado político representativo>>, es decir, basado em el princípio de mayoría como fuente de legalidade.” FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Rázon. Teoria del garantismo penal. 10ª Ed. 3ª Reimp. Tradução espanhola de IBÁNEZ, Perfetco; et. al. Madrid: Trotta, 2018, p. 864.

191 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Rázon. Teoria del garantismo penal. 10ª Ed. 3ª Reimp. Tradução espanhola de

IBÁNEZ, Perfetco; et. al. Madrid: Trotta, 2018, p. 911.

que torna cogente a atuação diante do desaparecimento “han influído em la formación de los hábitos intelectuales y morales de la classe de los juristas – han revelado sin embargo uma virtualidade autoritária y antigarantists”192.

À vista de todo o exposto, essa tese busca apresentar que, no Brasil, a própria conceituação do desaparecimento de pessoas torna-se complexa pelo fato da estrutura institucional do Estado rechaçar o tema como de direitos humanos, a ser efetivado pelos órgãos sob sua administração. É resquício autoritário também pela própria atividade conceitual mostrar toda uma dificuldade vertical de identificação dos traços de fundamentalidade envolvidos no desaparecimento de pessoas, que circulam por toda a coletividade, que não consegue se desvincular, em termos de verdade e memória, da moralidade presente na aplicação da norma, no Brasil.