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Grupo II – Este grupo contou com a participação ativa de diversos

Parte 3: A “eróptica” como método de interpretação

IX. A visão dionisíaca de mundo e a origem da tragédia, segundo Nietzsche

Na edição brasileira de A visão dionisíaca do mundo (1870, 2005a) 116, encontram-se reunidos três artigos, a partir dos quais se pode delinear o surgimento do pensamento filosófico do autor. Conforme esclarecem os editores, todos os três foram concebidos por Nietzsche quase que simultaneamente, pouco tempo antes de O nascimento da tragédia (1872, 2008a), onde expõe suas ideias sobre o dionisíaco e o apolíneo, assim como sobre a arte de um modo mais amplo. É preciso observar, no entanto, que a primeira conferência, O drama musical grego (1870, 2005a), está muito colada à concepção de Wagner sobre a arte, enquanto que na segunda, Sócrates e a tragédia (1870, 2005a), já se esboça, segundo os editores, um pensamento mais genuíno do autor.

Esses escritos tiveram a influência decisiva tanto de Schopenhauer, quanto de Richard Wagner, como sustentam diversos comentadores. Na segunda conferência, onde expõe suas ideias com maior autonomia, analisa a obra de Eurípedes e de como o pensamento de Sócrates teria contribuído para a decadência da arte grega ao substituir a “hegemonia do espírito da música” pela lógica do racionalismo. Uma crítica que se insere na mesma linha do pensamento nietzschiano sobre a filologia (tendo sido professor desta disciplina) e, como

116 A visão dionisíaca de mundo foi publicada pela primeira vez no terceiro Anuário da Sociedade dos Amigos

do arquivo Nietzsche, em Leipzig, em 1928. A conferência O drama musical grego foi publicada em Leipzig, em 1926, no Primeiro Anuário da Sociedade de Amigos dos Arquivos Nietzsche. E Sócrates e a tragédia, no Segundo Anuário da Sociedade de Amigos dos Arquivos Nietzsche, em Leipzig, 1927.

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vimos, no conjunto do pensamento filosófico do autor, segundo o qual seria impossível tocar no “cerne da força vital da humanidade grega” pela via do racionalismo.

Seria interessante ressaltar que essa observação de Nietzsche sobre a importância do espírito da música como forma de romper com as amarras que o racionalismo teria imposto à tragédia grega, associada às críticas do autor sobre o papel do Estado no sistema de ensino, pareceu-nos bastante pertinentes e atuais para se analisar a crise do ensino público hoje no Brasil. Nietzsche, como vimos no início deste trabalho, no artigo O futuro de nossos estabelecimentos de ensino (2004a) 117, sustentou a ideia de que a verdadeira tarefa da educação seria a de propiciar ampla formação cultural, compreendendo desde uma educação estética até a formação do “espírito livre”, para o qual contribuiriam filósofos e artistas no sentido de despertar os sentidos dos alunos em prol da elevação da cultura. Mas, para tanto, seria importante o retorno à cultura clássica da Antiguidade grega, que deveria ser conduzida por mestres capazes de fazê-los (aos alunos) estetizar e filosofar por si mesmos, enquanto ouvissem os grandes pensadores. Perguntamo-nos se não seria imprescindível desenvolver um raciocínio semelhante, quanto à importância do “espírito da música” para se tocar no “cerne da força vital da humanidade”, que, no caso de nossa pesquisa, equivaleria a tocar no “cerne da força vital” da comunidade escolar por meio das culturas juvenis, com seus ritmos e letras irreverentes, capazes de fazer ressurgir o recalcado de nossa cultura afro- indígena. São ideias que acrescentam, a nosso ver, aos postulados de Arendt (1992) sobre a importância de se reatar o fio da tradição (greco-romana), diante da lacuna criada pela modernidade entre o passado e o presente, a dimensão dionisíaca da arte (de viver...) – ou mais especificamente de uma “estética do excesso”, como assinalara Heidegger (2007), como forma de repensar a tradição e a autoridade na escola. É preciso retomar, no entanto, o que há de mais avançado na concepção de vida democrática da pólis, como sustentara Arendt, para se repensar a escola como espaço de formação e de preparação da juventude para a vida pública, associando a esta ideia a necessária ruptura com a razão ordenadora escolar por meio da arte e da música.

Foi pensando nesse distanciamento da escola pública em relação à multiplicidade de expressões da cultura juvenil, é que ficamos atentos às observações de Bataille (2006), de que a Filosofia deveria recuperar o poder de transgressão do erotismo e do próprio Nietzsche, de

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Nietzsche, F. (1872) Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino. In: Escritos sobre Educação. Tradução, apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Ed. PUC-Rio, Ed. Loyola, 2ª ed., 2004a, pp. 41-137.

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que se teria que ir ao encontro da mais viva expressão da Filosofia, presente, a seu ver, na arte dionisíaca. Mas no que consistiria esta arte dionisíaca? A conjunção das diversas formas de expressão plástica do homem, tal como teria sido observado na Antiguidade, na qual, associado ao canto, havia o gesto da dança, que se combinava com a potência da harmonia, da dinâmica e da rítmica, atingindo o êxtase sentimental na lírica e evocando imagens, como na epopeia e, desse modo, envolvendo o conjunto de todas as formas de expressão simbólica.

Analisemos mais de perto esta obra. A visão dionisíaca de mundo (2005a) foi escrita enquanto Nietzsche servia à Prússia na Batalha em Maderanerthal, em agosto de 1870, anunciando-se nela os alicerces de sua mais conhecida obra − O nascimento da tragédia (1983a). Segundo os editores, no entanto, embora aquela seja considerada um esboço preliminar desta última, Nietzsche faz determinados desenvolvimentos que estão ausentes de O nascimento da tragédia. Daí termos nos detido na leitura desta versão inicial, para depois adentrarmos nesta última.

Comenta-se que Richard Wagner, com certa perplexidade, fez restrições às duas conferências, de uma maneira, digamos, bastante paradoxal, ao afirmar que Nietzsche teria se referido a alguns dos “gigantes do pensamento clássico grego” de maneira tão breve e tão moderna, esperando que fossem objeto de um desenvolvimento mais amplo por parte de Nietzsche (o qual teria sido contemplado em O nascimento da tragédia).

Para que tenhamos uma ideia a respeito das discussões feitas por Nietzsche em A visão dionisíaca do mundo (2005a) a respeito das duas concepções sobre a arte vigentes na tragédia ática – apolínea e dionisíaca – e de sua forte crítica às teses socráticas acerca da música, sustentadas por Platão, sobretudo em A República118, seria interessante fazermos um contraponto, apresentando as ideias socráticas descritas por Platão nesta última obra, mesmo

118 Platão, no livro terceiro de A República (Atena Ed., 1956) – onde reproduz um diálogo entre Sócrates,

Adimanto e Glauco –, deixa claro o que deveria ser expurgado dos textos épicos de Homero, assim como da

tragédia, para o bem do Estado, visando, em última instância, conforme deixa claro no livro sétimo, a “felicidade pública”, contribuindo, assim, para o bem comum da sociedade” (Platão, 1956, p. 294). Exorta, por

exemplo, que sejam retirados do texto homérico toda ideia que possa “quebrantar o ânimo dos guerreiros”. Também o riso deverá ser banido, não sendo recomendável aos jovens que sejam “propensos ao riso”, nem

tampouco que se represente os “deuses, como dominados pelo riso irreprimível” (Platão, 1956, p. 103). Ou seja,

torna-se recomendável a moderação em tudo que possa ser motivo de prazer, ou melhor, de excesso de prazer, incluindo os prazeres da carne. Mas também não se pode representar os deuses e heróis como sendo capazes de fazer o mal, deixando-se dominar por paixões, como a volúpia, a ira, a avareza, o orgulho e, nesse sentido, sugerir que os deuses sejam capazes de promover práticas perversas ou que os heróis não sejam melhores do que os homens. Por fim, depois de criticar as epopeias, atém-se às tragédias, que assim define, por intermédio de Sócrates: “É quando o poeta, suprimindo tudo o que poderia introduzir em seu nome nas falas dos interlocutores, não deixa senão o diálogo” (Platão, 1956, p. 110).

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que a título de nota, para que tenhamos uma ideia de com que força se esboça o predomínio da tendência apolínea da arte desde a Antiguidade, o que segundo Nietzsche marcará a metafísica ocidental.

É preciso observar que Platão, ao teorizar a respeito do papel da música na tragédia, em sua obra A República, dando ênfase à concepção apolínea da arte, teria, de acordo com Nietzsche, pautado suas observações sobre a arte trágica por uma ética moralista. Uma leitura que nos parece bem próxima da interpretação que Agnes Heller119 apresenta a respeito da filosofia platônica, contrapondo-a ao desenvolvimento sobre a ética apresentada por Aristóteles 120.

Retomando a dualidade entre a arte apolínea e a dionisíaca

Assim Nietzsche inicia essa obra extraordinária de sua juventude, propondo uma leitura muito própria da relação entre a visão de mundo sustentada pelos gregos na Antiguidade e a concepção de arte destes últimos, ao mesmo tempo em que anuncia a antítese que lhe parece ser constitutiva da arte trágica:

Os gregos, que nos seus deuses expressam e ao mesmo tempo calam a doutrina secreta de sua visão de mundo (Weltanschaung), estabeleceram como dupla fonte de sua arte duas divindades, Apolo e Dionísio (Nietzsche, 2005a, p. 5).

119 Heller, A. Aristóteles y el mundo antiguo. Barcelona, Ed. Península, 1983.

120 Heller (1983) sustenta o seguinte a esse respeito: Até se avizinhar a crise social em Atenas, havia íntima

relação da liberdade moral relativa e a phrónesis (prudência) com a comunidade. Este vínculo orgânico se explica pelo fato de, em Atenas, a ética ter se desenvolvido antes da atitude moralista. A autora explica, então, na mesma linha sustentada por Aristóteles e depois, por Kant, que a ética constitui uma relação social e, como tal, tem duas facetas. A primeira é representada pelos imperativos exteriores, tais como: os costumes, o sistema de normas concretas e abstratas, a opinião pública, enfim, o que Kant chamava de legalidade. A outra refere-se à relação do sujeito com o sistema de imperativos gerais e sua remissão consciente, podendo resultar em aceitação ou negação dos mesmos. Este seria o campo da moralidade. Estas normas gerais encontram-se em harmonia com as exigências individuais sempre que a sociedade for sólida e o indivíduo a reconheça enquanto tal. No entanto, quanto mais débil e desorganizada for a comunidade em que vive o indivíduo, a faceta moral tende a se desenvolver mais rapidamente e, com isso, a moralidade domina a ética. Fala de moralidade pura quando a unidade entre ética e moralidade encontra-se gravemente ameaçada, momento em que o campo da ética se transfere totalmente para o sujeito individual. A autora salienta, ainda que se na vida social em Atenas a ética se desenvolveu antes da moralidade, na Filosofia, as categorias morais se desenvolveram inicialmente do ponto de vista da moralidade (como em Sócrates e em Platão) e só posteriormente segundo a perspectiva da ética (como em Aristóteles). Na verdade, no momento crítico em que vivia a Pólis, apenas aqueles que superaram a consciência da crise é que puderam ir mais além da atitude moralista.

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Esclarece, entretanto, que embora essas duas tendências − que correspondem a estilos distintos no campo da arte − tenham se colocado, na maioria das vezes, em campos opostos, encontram-se reunidas em um único domínio: “... no momento de florescimento da ‘Vontade’ helênica, aparecem fundidas na obra de arte da tragédia ática” (Nietzsche, 2005a, p. 6).

Uma observação que parece anunciar de onde deveria proceder o “valor dos valores” – da vontade (helênica) de poder121

.Uma noção que envolve a ideia de força, ou como afirmara Deleuze (s/d), uma pluralidade de forças associadas à explosão suscitada pela arte dionisíaca à individuação.

Mas, acompanhemos o desenvolvimento de suas ideias nesta obra, a propósito da intrincada trama entre a arte dionisíaca e a arte apolínea.

São dois os estados da alma sugeridos pelo filósofo que corresponderiam a cada um desses estilos: o sonho e a embriaguez.

O mundo onírico – tanto em sua bela aparência, quanto “o grave, o triste, o baço, o sombrio” – alimentam toda arte plástica e “metade” da poesia [deixando espaço, aqui, para o dionisíaco]. Adverte, entretanto, que quando cessa o sentimento de aparência, surge a patologia, ou seja, o delírio. Em seguida, faz uma observação interessante sobre o que distingue o sonho da obra de arte:

Enquanto, portanto, o sonho é o jogo do homem individual com o real, a arte do escultor (em sentido lato)[referindo-se aqui a todo artista plástico], é o jogo com o sonho (Nietzsche, 2005a, p. 6).

Sugere, neste trecho, que a arte apolínea é um jogo entre sonho e realidade, mas com uma tarefa específica que envolve ambiguidades: ou seja, fazer o real parecer com o sonho, ou melhor, fazer as matérias plásticas se “conformarem ao sonho” (Nietzsche, 2005a, nota 4, p. 6).

A arte apolínea teria inaugurado a noção estética helênica, e somente depois viria o dionisíaco. Segundo Nietzsche, este culminaria em um estilo de obra de arte apolíneo- dionisíaca, anunciando-se aqui a reconciliação entre as duas dimensões da vontade helênica

121 Considerando os diversos sentidos pensados por Nietzsche em seus últimos escritos, segundo Heidegger

(2007), da vontade de poder – a saber, a vontade de poder como conhecimento, a vontade de poder na natureza, a vontade de poder como sociedade e indivíduo, a vontade de poder como arte – estamos nos referindo aqui particularmente à vontade de poder como arte, que inspirada na arte dionisíaca aponta para a abolição dos limites impostos pela individuação e a mergulha, conforme assinalara Deleuze (s/d), no “querer universal”.

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em luta, em que se combinariam o ser da “bela aparência” e o “prazer do querer universal”. Mas, como veremos, uma unidade que se vê rompida pela música – justamente uma dimensão da arte que será banida da tragédia, em seus aspectos mais arrebatadores, pela tradição socrático-platônica.

Começa justificando o motivo pelo qual Apolo teria sido uma divindade artística, descrevendo-o como sendo o deus da aparência, em que sobressaem a beleza e a juventude. E, em sendo o deus da “bela aparência” é também o do “conhecimento verdadeiro”.

Já a arte dionisíaca “repousa no jogo da embriaguez, com o arrebatamento” (Nietzsche, 2005a, p. 8). Seriam dois os fatores que poderiam conduzir o homem ao estado de esquecimento que lhe é característico: a pulsão da primavera (em que se faz sentir a força gerativa) e a bebida narcótica. A festa de Dionísio representa o momento em que se “reconciliam homem e natureza”, em que o princípio de individuação desaparece:

O principium individuationis é rompido em ambos os estados [seja com a pulsão primavera, seja com a bebida narcótica], o subjetivo desaparece inteiramente diante do poder irruptivo do humano-geral, do natural- universal (Nietzsche, 2005a, p. 8, grifo nosso).

Os limites de casta e de classe também desaparecem. E por meio da dança e do canto o homem dá vazão a uma ordem de “comunidade ideal mais elevada”. O homem aqui deixa de ser artista e criador de obra de arte e passa a ser ele mesmo uma obra de arte modelada pelo artista Dionísio. É nesse sentido que se pode entender a seguinte tese proclamada pelo filósofo:

Este homem, conformado pelo artista Dionísio, está para a natureza, como a estátua está para o artista apolíneo (Nietzsche, 2005a, p. 9).

Embora Nietzsche pareça sustentar uma metafísica dualista da essência e da aparência, como assinalara Deleuze (s/d), evidencia-se sua primeira inversão do platonismo, ao acentuar, como vimos acima, a relação entre arte e verdade. Para, em seguida, apontar, por meio da descrição da arte dionisíaca, a pluralidade de forças capazes de fazer explodir a individuação, e assim, conferir ao humano um novo campo de sentidos, criando as bases de uma “estética fundamental” de outra ordem, como afirmara Heidegger (2007). Uma estética fundamental,

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afirmadora da vida, que por meio da dança e do canto faz explodir a hierarquia social, apontando para uma comunidade mais elevada e um homem moldado pela arte dionisíaca. Ora aqui, parece anunciar a (re)fundação da civilização e uma nova genealogia da moral − em oposição tanto ao cristianismo, quanto ao racionalismo socrático-platônico, considerados por Nietzsche como os pilares da suprema negação da vida no seio do pensamento ocidental.E, claro, do que definirá como a “transvaloração dos valores”, da qual se beneficiaria a metafísica ocidental.

É interessante recuperar a observação feita pelo tradutor, no sentido de que o dionisismo grego está muito mais ligado à apreensão artística das “forças gerativas e plasmadoras da natureza” do que como vivência orgiástica (cf. Nietzsche, 2005a, nota 17, p. 9).

E, de certo modo, seja este o sentido que nos interessa no trabalho com os jovens, recuperar o campo artístico e criativo da concepção dionisíaca de mundo, distanciando-os da dimensão propriamente orgiástica – esta, sim, bastante estimulada pela mídia – e, nesse sentido, propiciar-lhes o prazer de ver sem tocar, como forma de permitir o surgimento propriamente do campo do desejo.

Propõe, desta feita, não mais um jogo entre sonho e realidade, mas entre, de um lado, o estado de embriaguez e a natureza humana e, de outro, a arte de representar alegoricamente este estado: “Ora, se a embriaguez é o jogo da natureza com o homem, então o criar do artista dionisíaco é o jogo com a embriaguez” (Nietzsche, 2005a, p. 9). E este estado só pode ser concebido, segundo ele, “alegoricamente”, uma vez que no campo dionisíaco joga-se, não propriamente com a alternância entre lucidez e embriaguez, mas com sua conjugação.

Quer dizer, que aqui está se referindo a outra ordem de razão, em que se conjugam os estados de entorpecimento da embriaguez com a lucidez. O que para alguns envolveria uma sorte de metafísica, a metafísica da arte, enquanto que para outros, já se anunciaria, nesse momento, o fim da metafísica.

Atenta-nos, no entanto, para o fato de, após longa disputa entre os deuses Apolo e Dionísio, e apesar destes terem se reconciliado em plena batalha, uma prova de que o elemento apolíneo reprimiu por longa data o elemento “sobrenatural irracional” dionisíaco, seria que, no período mais antigo da música, teria prevalecido o gênero ditirâmbico, feito para “acalmar a alma”.

É preciso observar que teria sido este o único estilo de música admitido no modelo de Estado perfeito exaltado nos diálogos entre Sócrates e seus discípulos, apresentados em A

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República (1956), de Platão. Mas, diferentemente do que previra Platão, Nietzsche denuncia que quanto mais se amplia o espírito apolíneo da arte, mais faz avançar o espírito dionisíaco:

Quanto mais forte medrava o espírito da arte apolínea, mais livre se desenvolvia o deus irmão Dionísio: ao mesmo tempo em que o primeiro chegava ao completo aspecto imóvel da beleza, no tempo de Fídias, o outro interpretava na tragédia o enigma e o horror do mundo, exprimindo na música trágica o mais íntimo pensamento da natureza, o tecer da Vontade em e para além de todos os fenômenos (Nietzsche, 2005a, p. 11).

Daí discordar veementemente de Platão que se devesse suprimir esse estilo de música na tragédia122. Embora reconheça a dimensão apolínea da música, restrita ao que ele denomina de “arquitetura da música”, demonstra que ao se reprimir a dimensão dionisíaca da música, quer-se manter afastado o que há de mais vivo na música: “o poder comovedor do som e o mundo absolutamente incomparável da harmonia” (Nietzsche, 2005a, p. 12).

Na verdade, é o que se pode depreender da exposição de Platão em A República (1956), em que condena toda arte imitativa, referindo-se no caso às tragédias e às comédias, sugerindo a moderação e o comedimento na música, na poesia e na arte dramática 123.

Em realidade, a decadência da tragédia, enquanto drama musical, era “uma fantasmagoria socrática”, de acordo com Nietzsche, evidenciando-se, nesta conferência, sua

122 Platão faz ainda uma ressalva em relação à presença do canto e da melodia na tragédia. Argumenta que,

considerando-se que a melodia se compõe de três elementos – a palavra, a harmonia e o número –, se a palavra deve seguir as leis do Estado, então o mesmo deveria se aplicar à harmonia e ao número. Nesse sentido, “deve-se desterrar do discurso as queixas e lamentações” (Platão, 1956, p. 117). E toda e qualquer harmonia que a elas

faça alusão, ou mesmo que sugira “a embriaguez, a moleza e a indolência” (Platão, 1956, p.117). Também

sugere a eliminação de toda e qualquer “melodia efeminada”, como as que estão presentes nas harmonias consideradas por eles laxa: a jônica e a lídia. Prefere a dórica e a frigia. Sócrates, no diálogo com Glauco, comenta o seguinte a respeito destas últimas: -“Reserva-nos estas duas harmonias, a enérgica e violenta, e a voluntária e pacífica, que expressarão perfeitamente e ao natural o homem corajoso e sábio na boa e na má fortuna” (Platão, 1956, p.118). Para tanto, acrescenta, não seriam necessários instrumentos de muitas cordas e

muitos tons, ou todo instrumento que modulasse em demasia as diversas harmonias. Ou seja, parecia querer retirar tudo que pudesse exprimir os vários estados da alma, uma vez que para bem educar o cidadão era