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2.1 Cultura: da visão tradicional à contemporânea

2.1.1 A visão tradicional de cultura

Contra o “universalismo uniformizante” do iluminismo – que ele considerava “empobrecedor” –, segundo Cuche (2002), foi Johann Gottfried Herder, em 1774, ainda de forma relativamente isolada, que tomou partido pela diversidade de culturas, riqueza da humanidade. Para Herder (1774 apud Cuche, 2002), cada povo, através de sua própria cultura, tem um destino a realizar, pois cada cultura exprime, à sua maneira, um aspecto da humanidade. Sua concepção de cultura era caracterizada pela descontinuidade (vácuos/fronteiras), que não excluía, no entanto, uma possível comunicação entre os povos. Assim, ele pode ser considerado o precursor do conceito relativista de cultura.

Janzen (2005) mostra que, para Welsch a visão de Herder tem o sentido cultural estruturado em três eixos: homogeneização social, fundamentação étnica e delimitação intercultural. Nessa perspectiva, a ideia de que a cultura deve impregnar a vida do povo no todo e nas particularidades – que o conceito de cultura deve ser associado ao povo, delimitando-o em face do mundo exterior – é separatista e as definições de povo são fictícias e contrárias às evidências históricas das miscigenações.

Essa visão tradicional de cultura, caracterizada pela homogeneização interna e delimitação externa é, segundo Welsch, insustentável e perigosa sob a perspectiva normativa. Isso porque, em uma visão moderna de cultura, há múltiplos e diferenciados modos de viver, diferentes culturas, que são multiculturais entre si.

Na França, a evolução da palavra cultura no século XIX foi um pouco diferente. Inspirada nos alemães, enriqueceu-se com uma dimensão coletiva e, assim, passou a designar também um conjunto de caracteres próprios de uma comunidade, mas em um sentido geralmente vasto e impreciso, ainda muito próximo do conceito de civilização – marcado pela ideia de unidade do gênero humano.

Na visão tradicional de cultura, assim, há uma ideia de homogeneização, de generalização, com um enfoque monocultural, isto é, nessa perspectiva, entende-se, etnocentricamente, que há uma cultura evoluída, em relação a qual todas as outras deveriam caminhar para atingir o mesmo nível de evolução, como se os valores e atitudes fossem inerentes ao poder e apenas assimilados pelos outros, o que implica a ausência de outras vozes sociais.

Essa homogeneização, feita a partir de um discurso-mestre elaborado com funções de caráter prescritivos, segundo Janzen (2005):

tem a intenção de produzir uma solidez sociológica, evitando o estranhamento, que é constitutivo da alteridade. A percepção monológica da cultura tende a produzir um discurso unitário de refletir uma realidade fechada ou parcial e com fortes tendências ao etnocentrismo.

A ideia da homogeneização do discurso, o fragmento assumindo a representação discursiva do todo e os valores orientados para uma unidade pré-estabelecida conduzem a uma compreensão parcial/falsa, dificultando o diálogo cultural mais amplo. (JANZEN, 2005, p. 34-35)

Assim, de acordo com este autor, a perspectiva etnocêntrica impõe – no sentido de considerar apenas as suas categorias como válidas – normas e valores da própria sociedade ou cultura. Dessa forma, essa perspectiva pode gerar uma visão distorcida e parcial ou mesmo assimétrica da cultura-alvo, podendo desencadear um movimento de rejeição.

A atitude etnocêntrica, segundo Janzen (2005), a partir da leitura de Lewinson (1964), pode explicar a forte tendência ao pensamento unitário. Ou seja, um pensamento que não enxerga indivíduos, mas apenas grupos. “A diluição do outro/do sujeito, ao ser percebido apenas como grupo, indica a representação generalizante/homogeneizante do outro, que caracteriza a visão tradicional de cultura” (p. 36), embora o autor faça questão de salientar que, em que pese a confluência entre a visão tradicional de cultura e o etnocentrismo, eles são de esferas e tonalidades diferentes. Para título de organização, vamos considerar, aqui, o etnocentrismo como pertencente a uma visão tradicional de cultura.

Nessa orientação, percebe-se um entendimento maniqueísta em relação ao outro, com claras delimitações entre bem/mal, certo/errado. Focalizando a questão do estrangeiro, Janzen (2005), apoiado em Hinderer (1993), aponta uma visão generalizante, que flerta com a percepção de entendimento do outro como uma variação da própria cultura. Isto é, a ação de fazer uma leitura da cultura do outro – a cultura-alvo (por meio de análise textual, por exemplo) – a partir da nossa própria.

O etnocentrismo está inclinado a ver o outro de forma mais estereotipada e estática. Fixa-se nos valores do próprio grupo, dificulta o diálogo cultural e, desta maneira, intensifica o grau de estranheza (distanciamento) em relação à outra cultura. Pensando na relação intercultural – objetivo do ensino de língua estrangeira na visão contemporânea –, Janzen (2005) aponta que:

O ponto de partida para a relação intercultural pode se configurar como uma tendência inicial ao etnocentrismo, quando alguém parte da própria

percepção/atitude como correta e efetiva, como aquela que deve ser considerada pelo parceiro da interação. Entretanto, estabelecido este contato inicial, os interlocutores podem convergir para um efetivo diálogo intercultural em que elementos conhecidos propiciem a aproximação.

(JANZEN, 2005, p. 37)

Há, então, numa perspectiva tradicional de cultura, um apagamento das diferenças socioculturais. Promove-se uma homogeneização do grupo, o que tende a ocasionar um estranhamento do que é externo a ele e pode gerar, por sua vez, uma negação do outro ou uma abertura para o diálogo – que acontece “quando recorrendo aos sistemas próprios de orientação, os sujeitos buscam aproximações que viabilizam o aprofundamento das relações” (JANZEN, 2005, p. 38).

Sem se considerar o contexto histórico e sociocultural em que o outro se insere, é quase impossível compreender um enunciado em sua totalidade. Dessa forma, de acordo com Janzen (2005), em consonância com Hinderer (1993), “pode-se conhecer a língua, mas mesmo assim não conhecer as pessoas” (JANZEN, 2005, p. 40).

O diálogo, no entanto, só pode acontecer, quando há um mínimo de intersecção entre a nossa e a língua/cultura-alvo. Caso contrário, há uma dificuldade de aproximação e compreensão de textos inseridos na outra cultura.

Mais especificamente no campo da linguística, foi Edward Sapir, com a obra Language de 1921, quem estabeleceu uma relação direta entre cultura e linguagem. Para este autor, a cultura é fundamentalmente um sistema de comunicação. Foi Benjamin Lee Whorf quem ajudou-o a construir o que ficou conhecido como “a hipótese Sapir-Whorf”, que trata da relatividade linguística, segundo a qual “as pessoas falam diferente porque pensam de modos diferentes, e elas pensam de modos distintos porque suas línguas lhe oferecem distintas maneiras de expressar o mundo a sua volta” (SALOMÃO, 2005, p. 368).

A inserção do componente cultural no ensino de língua estrangeira, propriamente dita, ficou mais evidente a partir da década de 1980, mas os trabalhos nessa área se iniciaram antes. Segundo Kramsch (1993, apud Salomão, 2017), nas décadas de 60 e 70 compartilhava-se a premissa de que os aprendizes deveriam ser socializados ou aceitos em uma sociedade linguística estrangeira, portanto, deveriam aprender os padrões de valores e comportamentos de tal sociedade de forma estruturada, o que remonta à concepção de cultura universalista, enfocando sua dimensão coletiva.

Risager (1998, apud Salomão 2017) denomina a abordagem de cultura dominante no ensino de línguas no ocidente, uma abordagem estrangeiro-cultural, que é baseada na concepção de cultura associada a um país (ou países) constituído de um grupo específico de pessoas, com uma língua específica, habitado em um determinado território. É muito comum essa perspectiva ser encontrada no livro didático, em que a cultura aparece como “curiosidade” ou “aspecto exótico”.

Essa é uma visão de cultura em que pode haver variação geográfica, social ou subcultural, mas essa variação é tomada como pertencente a um povo: a cultura espanhola, por exemplo. Nessa perspectiva, Kramsch (2009) concebe a cultura:

(...) como filiação a uma comunidade nacional com uma história comum, uma língua(gem) comum e imaginários em comum está enraizada no Estado- nação, assim como a noção de falante nativo e de comunidade de fala. Essas noções denotam entidades estáveis ou estruturas que têm uma realidade social independente que se referem a elas. (KRAMSCH, 2009, apud SALOMÃO, 2017, p. 372)

O foco recai todo na cultura-alvo, sem se estabelecer relação com a cultura do aprendiz ou a de outros países – caracteriza-se por uma admiração da cultura estrangeira e o encorajamento de estereótipos positivos. Trata-se de uma crença sobre a superioridade de um grupo étnico tomada como a de um outro grupo que não o do indivíduo.

Kramsch (2006, apud Salomão, 2017) aponta que, na década de 1980, surgiu a abordagem comunicativa, dando lugar a um conceito mais pragmático de cultura como “modo de vida”: modo de se comportar, comer, falar e viver do falante nativo, assim como seus costumes crenças e valores. Tal perspectiva, segundo essa autora, reforça a equação uma língua = uma cultura. Nessa perspectiva, há a manutenção – um reforço – das características nacionais e falta profundidade histórica, uma vez que tanto pela literatura e pela arte quanto pelos costumes e tradições busca-se enquadrar a cultura no conceito de nação, o que pode acabar caindo na ideia de “modos de vida bons e apropriados”, que coloca as culturas de forma hierárquica como mais ou menos avançadas.