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Capítulo IV – Os manuscritos dos escritores e a crítica textual como instrumentos

IV. 2 – A visita à oficina do escritor Vergílio Ferreira

Como referi anteriormente, em conjunto com a Professora Olívia Reis, levei a cabo uma atividade no âmbito do tópico de reflexão deste relatório. Embora tenha decorrido como um evento de natureza informal, esta atividade permitiu-me chegar a diversas conclusões.

O conto “A Palavra Mágica”, de Vergílio Ferreira está previsto, pelo Programa de Português como um dos conteúdos literários para o 9º ano de escolaridade. Estava, assim, encontrada uma circunstância que me permitia introduzir os alunos numa visita à oficina deste escritor.33 Num primeiro momento, apresentei o escritor aos alunos, através de uma espécie de fotobiografia, complementada por excertos textuais biográficos, retirados de

Conta-Corrente e do romance Manhã Submersa. Os alunos mostraram muita curiosidade e

simpatia pelo escritor. Num segundo momento, dei a conhecer aos alunos o método de trabalho do escritor, referenciando os materiais e métodos utilizados: 1) os materiais de escrita (tintas, papéis); 2) a caracterização do suporte textual, as folhas brancas, preenchidas

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Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e

tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim (Pessoa; 1999:343)

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A propósito deste passo célebre, deve-se referir o importante estudo de Ivo Castro (Editar Pessoa) para a desmistificação desta ideia, nomeadamente o capítulo intitulado “O corpus de O Guardador de Rebanhos, depositado na Biblioteca Nacional.”

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Os materiais utilizados para esta sessão pertencem ao espólio do escritor, que está depositado na Biblioteca Nacional, sob consulta reservada, cuja reprodução tem de ser autorizada pelos detentores do espólio. Por este motivo, não será possível incluir, nos anexos deste relatório, as imagens e outros documentos referenciados nesta oficina.

48 por uma letra minúscula, sem margens, que o escritor apelida de chuvinha de palavras

microscópicas, em que uma face era deixada em branco, deixando espaço para intervenções

futuras; 3) a criação de desenhos, listas, esboços; 4) uma foto do seu ambiente de trabalho, reconstituído na Biblioteca Municipal de Gouveia, onde estão expostos os objetos que rodeavam o escritor (a poltrona, a tábua, a manta e o candeeiro), referindo a sua antipatia por máquinas de escrever e secretárias (Cf. Anexo 30). Partindo de uma perspetiva mais familiar, os alunos foram introduzidos no processo de criação do escritor. Foram dados vários exemplos em que o escritor se socorreu da fotografia e outros suportes visuais e auditivos que o ajudavam na descrição do espaço e das personagens. A partir da observação de uma fotografia de uma casa junto à praia das Azenhas do Mar (Cf. Anexo 30), que ainda hoje se conserva, os alunos foram confrontados com a leitura de um excerto do romance

Cântico Final, ficando impressionados com as semelhanças existentes. Para a escrita desse

romance, cuja protagonista é uma bailarina, o escritor sentiu necessidade de assistir a um espetáculo do Lago dos Cisnes, em cujo panfleto surgem vários rabiscos e notas, o que poderá ter contribuído para uma descrição mais viva dos movimentos da personagem. A escolha dos títulos dos romances constituía-se também como uma tarefa complicada para o escritor, tendo algumas folhas de rosto sido completamente preenchidas por hipóteses de títulos. Os alunos ficaram bastante impressionados com estas revelações, supondo que a tarefa de escrita para estes “escritores conhecidos” fosse algo mais automático e menos trabalhoso. Julgo que o interesse excecional destes alunos durante a sessão foi motivado pela prática frequente de escrita a que a Professora Olívia os tinha vindo a habituar no decurso das suas aulas, revelando estes alunos um fascínio pela escrita bastante invulgar nos adolescentes.

Após esta visita, foram mobilizados os conhecimentos dos alunos da sua leitura do conto “A Palavra Mágica”, para os introduzir numa pequena tarefa de edição crítica (Cf. Anexo 29). Comparando o manuscrito do conto com a sua versão final, os alunos fizeram o levantamento de algumas diferenças registadas: substituição de nomes de personagens e outras expressões que foram melhoradas para uma linguagem de registo menos regional. Curiosamente, os alunos verificaram que o vocábulo-chave do conto “mágica” fora substituída, no decurso do texto, pela palavra “milagrosa”. Os alunos analisaram ainda a frase final em que o escritor substituiu “uma desforra integral” por “ter mais tento na

língua”, que acaba por se adequar mais ao conteúdo da narrativa. Para esta tarefa, os alunos

49 de Vergílio Ferreira, que dei a mostrar os alunos, nomeadamente as edições críticas de A

curva duma vida (Ferreira; 2010) e Promessa (Ferreira; 2010).

No final da sessão, lancei um desafio à turma, embora sem perspetivas de que os alunos o viessem a aceitar de forma tão entusiasta. Um pouco espontaneamente, propus- lhes que tentassem eles próprios elaborar um pequeno conto, para o qual construíssem o seu dossiê genético, conceito que engloba todos os materiais de escrita preparatória de um texto final. Esta proposta não apresentava nenhum objetivo formal de avaliação, pois apenas visava sugerir uma nova metodologia de escrita como processo e não como produto automático da imaginação. Os resultados foram impressionantes e até hoje ainda não tive capacidade de valorizar, tal como mereciam ser valorizados, os manuscritos dos alunos, através da sua análise e edição crítica. Os alunos destas duas turmas escreveram cerca de cinquenta e cinco contos, alguns deles com dezenas de páginas, onde, para além da versão final, incluíram rascunhos, fotografias, imagens e desenhos, imitando um pouco o que viram do escritor Vergílio Ferreira. Os suportes eram variados e alguns dos alunos não incluíram nenhum rascunho. Esta diversidade de suportes comprova a diversidade de métodos individuais e subjetivos que estão implicados num ato de criação como é o da escrita. Pelo resultado final, pude constatar que os alunos se empenharam muito nesta atividade, chegando alguns a fazer pesquisas exaustivas sobre locais e personagens.

Entretanto, perdi o contacto com esses alunos e também com a Professora Olívia. Desde a realização desta atividade, passaram dois anos letivos, o que me leva a supor que a maioria dos alunos esteja a frequentar o 11º ano. Com certeza, seria curioso observar a forma como os alunos reagiriam ao lerem novamente os seus textos. Como salienta Read (2010: 148), à medida que a criança cresce, vai reprimindo a sua criatividade, tentando fazer corresponder a sua criação aos modelos aceites e propostos pelos adultos. Esta quebra da “inocência”, que acontece em tão pouco tempo, levou-me a concluir que a infância é o melhor estádio para a aprendizagem; é na infância que a imaginação, a criatividade e a espontaneidade se manifestam mais, fecundando abundantemente a semente da aprendizagem que o professor lança, esperando criar uma árvore frondosa que dê mais vida ao mundo.

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CONCLUSÃO

Neste relatório, procedi a uma descrição dos trabalhos que envolveram a minha prática letiva quer no estágio de Português quer no estágio de Latim. Para além disso, incluí ao longo da escrita deste trabalho uma reflexão acerca das metodologias e estratégias utilizadas, dos materiais didáticos concebidos e das circunstâncias em que decorreram as atividades. Escrever permitiu-me organizar, fundamentar, delinear ideias para o futuro e, sobretudo, desenhar uma prática reflexiva docente.

Através do aprofundamento das leituras e pesquisas, foi possível corroborar com mais firmeza a articulação que se pode estabelecer entre a crítica textual e a didática, concluindo que os manuscritos dos escritores e todo o trabalho preparatório que antecede um texto final podem ajudar os alunos não só a ter uma relação mais consistente com o ato de escrita, bem como a aprofundar os seus conhecimentos linguísticos e literários. No momento inicial deste projeto, julguei que a crítica textual se poderia constituir como instrumento didático, apenas pelo facto de permitir aos alunos um desenvolvimento da sua competência no ato de escrever. No entanto, ao longo da minha pesquisa, pude verificar que a crítica textual não deve servir como uma receita que garante a eficácia absoluta dos alunos, mas antes os envolve numa dimensão crítica e reflexiva do ato de escrever. Para além disso, se no início julguei que a crítica textual se relacionava apenas com a escrita, uma pesquisa mais aprofundada permitiu-me verificar que, pelos problemas teóricos que colocam, os manuscritos e as versões de um texto constituem-se igualmente como uma ilustração cultural e como um objeto de estudo da poética dos autores e da história da literatura.

Através da reflexão que envolveu a produção deste relatório, foi possível proceder a uma autoanálise, tarefa que deve sempre envolver a prática docente, na medida em que me permite refletir sobre os erros cometidos, reforçar as estratégias eficazes e atualizar, constantemente, os conhecimentos, construindo qualidades do ponto de vista profissional, científico e humano.

Este trabalho serviu também como um balanço de toda a minha atividade académica que decorreu durante o ano letivo 2010/2011, podendo concluir e reconhecer as excelentes condições de que usufrui no estágio de Português, na Escola Secundária José Gomes Ferreira.

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