• Nenhum resultado encontrado

A vontade, as paixões, o mal e o livre-arbítrio

No documento A ética do amor em Santo Agostinho (páginas 30-32)

1. A CONDIÇÃO HUMANA EM SANTO AGOSTINHO

1.4 A vontade, as paixões, o mal e o livre-arbítrio

Vimos que somente por intermédio das virtudes e na esperança da imortalidade é que se pode conquistar a felicidade, embora relativa, ainda não perfeita; e como o fim da vontade humana é a beatitude, ou a satisfação dos desejos, pois foi impresso no interior do homem o desejo de ser feliz79, passemos

agora a uma breve exposição da conexão que se faz, na filosofia agostiniana, entre vontade e paixões.

A vontade é uma propriedade central do ser humano. Dada a sua relevância, Gilson afirma que, na filosofia de Agostinho, “[...] assim como é a vontade, tal é o homem”80. A vontade é a faculdade que guia os movimentos da

alma, e a força de uma decisão depende somente desse movimento livre. Podemos, então, definir a vontade como aquilo que move o ser em certa direção, levando-o a gozar de alguma coisa81. É ela também a responsável pela escolha humana no que

se refere à adesão ou não às paixões. O desejo, a alegria, o medo e a tristeza são as paixões descritas por Agostinho como resultados da consonância ou dissonância da vontade com aquilo que consiste no seu querer82. Gilson considera que estas são

as quatro paixões fundamentais:

[...] o desejo (cupiditas), a alegria (laetitia), o medo (metus) e a tristeza (tristitia). Ora, desejar é consentir ao movimento pelo qual a vontade se coloca na direção de um objeto; alegrar-se é se comprazer na posse do objeto obtido; temer é ceder ao movimento de uma vontade que recua diante de um objeto e dele se desvia; experimentar a tristeza, enfim, é não consentir a um mal efetivamente sofrido. Assim, todo movimento da alma tende ou na direção de um bem a ser adquirido ou conservado, ou para longe de um mal a se evitar ou descartar.83

Assim sendo, é inegável que, para a antropologia agostiniana, o papel da vontade é essencial. É nela que se reflete o livre-arbítrio humano, pois os movimentos da alma dependem dela, e é com eles que se manifestam os desejos. Desse modo, podemos afirmar que a felicidade está intimamente ligada ao exercício das virtudes e sendo tal exercício uma tarefa que depende de cada sujeito (graças

79 Cf. De Trin., XIII 8, 11.

80 GILSON, Étienne. op. cit., p. 253. 81 Cf. De lib. arb., III, 1, 3.

82Cf. De. civ. Dei, XIV, 6.

ao livre-arbítrio), a vontade, por conseguinte, será aquilo que conduz a vida humana em todos os seus atos.

O livre-arbítrio ou a escolha voluntária reside na decisão de querer, de aderir ao objeto guiado pela vontade. Tanto a vontade como o livre-arbítrio são realidades que procedem de Deus. Portanto, são bens para o homem. Se há uma deficiência na vontade livre esta não vem de Deus, mas do próprio homem. Pois, toda a natureza ou toda realidade procede do criador, e por isso constitui um bem. Observemos o seguinte trecho de um diálogo de Agostinho com Evódio:

[...] todo bem procede de Deus. Não há, de fato, realidade alguma que não proceda de Deus. Considera, agora, de onde pode proceder aquele movimento de aversão que nós reconhecemos constituir o pecado – sendo ele movimento defeituoso, e todo defeito vindo do não-ser, não duvides de afirmar, sem hesitação, que ele não procede de Deus. Tal defeito, porém, sendo voluntário está posto sob nosso poder84.

Logo, o mal no mundo está diretamente relacionado com a ação humana, ou seja, com o livre-arbítrio e a vontade. De acordo com Costa:

No universo criado e governado por Deus não há espaço para o mal físico, e o mal não pode ser definido como uma substância, visto ser toda a natureza um bem. O mal, ao contrário, caracteriza-se por ser uma ausência do que deveria ser, ou pelo que ele não é; é uma corrupção que arrasta ou leva tudo em direção ao não ser. Portanto, o mal é corrupção, e como tal não tem consistência ontológica, é simplesmente “não ser” ou “nada”.85

Visto que não há um mal ontológico, a origem do mal moral está no homem, na sua má vontade. No uso pervertido do seu livre-arbítrio, o homem se afasta da ordem natural estabelecida por Deus e deixa-se guiar pelas paixões, perpetuando o mal no mundo. O autor do mal não é um único ser, mas cada pessoa que o pratica86.

Como dissemos, a vontade é um bem, logo não é ela a causa do mal ou do pecado. Agostinho entende por pecado “[...] as más ações que cometemos por ignorância e as boas que não conseguimos praticar”87. Nesse sentido, não há

espaço para um mal ontológico, o mal está no plano do agir humano, no gozo dos bens temporais, ou seja, no mau uso do livre-arbítrio, que escolhe, inflamado pela

84De lib. arb., II, 20, 54.

85 COSTA, Marcos Roberto Nunes. op. cit., p. 36. 86Cf. De lib. arb., I, 1, 1.

vontade, dá as costas ao bens superiores. É preciso descobrir, já que a vontade não constitui um mal, o que a movimenta, em outras palavras: de onde vem o impulso que a afasta do verdadeiro Bem e a faz procurar os bens mutáveis?

Por causa do pecado do primeiro homem, a natureza humana encontra- se debilitada, sem forças para fazer o bem e inclinada às paixões. Por esse motivo o homem cresce em meio à desordem, carregando a ignorância e a mortalidade, deficiente no seu livre-arbítrio, atraído pelo pecado88.

Pelo orgulho o homem caiu e por suas próprias forças não é capaz de erguer-se novamente. Por ter desejado a independência em relação ao criador o homem foi tomado pelo orgulho e o primeiro pecado teve como consequência o hábito de pecar. Para resgatar o homem de sua condição decaída e derrotar o pecado do orgulho Deus oferece o caminho da humildade. É, portanto, através da humildade, com a aceitação da graça divina, que o homem pode orientar sua livre vontade à contemplação do Bem 89.

No documento A ética do amor em Santo Agostinho (páginas 30-32)

Documentos relacionados