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A ZONA DA XÁVEGA: UM LUGAR DE INSTABILIDADE

Os espaços

O interface litoral português pode dividir-se, nos seus traços mais gerais, em dois tipos morfológicos e paisagísticos distintos: aquele onde imperam as falésias, rochedos e arribas entrecortadas de praias pedregosas, e um outro onde, entre mar e terra, se estendem a perder de vista os grandes areais e as dunas moldadas pelos ventos. No primeiro caso, a linha de costa encontra-se, na sua maior parte, fixada há milhares de anos – «desde o fim da última glaciação quaternária», como diz Raquel Soeiro de Brito –, enquanto que no segundo caso estamos perante «um litoral de acumulação instável mesmo nos tempos históricos» (Brito 1981: 19), compre- endendo os troços costeiros entre Espinho e o cabo Mondego e da foz do Mondego a S. Pedro de Moel, entre a foz do Sado e o cabo de Sines e, finalmente, o sotavento algarvio entre Quarteira e a foz do Guadiana.

A estes dois tipos de interface correspondem actividades marítimas distintas, segundo as suas especificidades fisiográficas e haliêuticas. O exercício da arte xávega permite, de forma inequívoca, delimitar uma zona de distribuição abrangida pelo segundo dos dois tipos mencionados. Trata-se de uma faixa de areias quaternárias, com cerca de 100 quilómetros de extensão e largura variável, batida pelo mar e pelos ventos agrestes predominantes de N-NW, a que é comum um mesmo tipo de paisagem, assente sobre características ecológicas peculiares. Destacam-se as inúmeras matas de pinheiro bravo, semeadas com alguma regularidade a partir do século XVIII com o intuito de travar o avanço das areias para o interior, e as dunas de Ovar, Vagos, Mira, Mata do Urso e Lis, que, a par com as grandes dunas do Sudoeste francês, se contam entre as mais altas da Europa. O ritmo da paisagem – pontuado pelos seus extensos areais, pelas dunas cobertas de estorno e pelos pinhais – é interrompido pelos cursos de água dos grandes rios e lagoas, pela serra da Boa Viagem, na margem direita do Mondego e, ainda, por um pequeno afloramento rochoso junto à Praia do Pedrógão. Destacam-se assim, também, os campos do Mondego, do Lis e suas respectivas fozes,

as lagoas, ou barrinhas, de Esmoriz e Mira e, sobretudo, a Ria de Aveiro, que é uma das mais originais regiões naturais do país.

Outrora, os locais mais propícios à exploração dos recursos marítimos situavam-se nas embocaduras dos rios e nas lagoas costeiras em comunicação com o mar. A costa, fustigada pelo mar e pelos ventos, oferecia poucas condições à circulação de embarcações. Os locais mais favoráveis, contudo – as barrinhas de Esmoriz e de Mira, a região lagunar de Aveiro, e as fozes do Mondego e do Lis – estiveram desde sempre sujeitos a enormes transformações de natureza geodinâmica que condicionaram as actividades aí desenvolvidas pelas comunidades humanas. O único destes locais que parece ter permitido alguma regularidade no desenvolvi- mento das suas actividades marítimas é a margem direita do Mondego (Buarcos), que, a despeito do assoreamento, beneficia da protecção dessa imensa barreira natural que é a serra da Boa Viagem e o cabo Mondego 52. Daí para norte até Aveiro, e até ao final da Idade Média, apenas Quiaios e Mira eram habitados (Cravidão 1988).

De facto, durante séculos, esta extensa faixa de dunas impelidas pelo vento e batidas pelas vagas alterosas do Atlântico não foi mais do que um deserto, até ao momento em que se estabeleceram com carácter permanente as primeiras colónias piscatórias, na transição do século XVIII para o século XIX, e que se iniciaram os trabalhos de plantio de pinhais e o aforamento dos terrenos estéreis das praias e charnecas contíguas (Gândaras). Nas imediações da foz do Lis, por exemplo, o areal atingia, em certas zonas, cerca de três quilómetros de extensão – em linha recta perpendicular à costa, desde o mar até se alcançar o arvoredo 53; e antes das grandes sementeiras da segunda metade do século XIX, o Pinhal do Pedrógão, por exemplo, era uma autêntica ilha completamente rodeada de areias 54.

52 – Veja-se a descrição do meio físico desta zona nas páginas introdutórias da monografia de Maria Helena da Cruz Coelho sobre O Baixo Mondego nos Finais da Idade Média (1989: 1-5). 53 – Ver a «Carta Topografica do Pinhal Nacional de Leiria», de 1841, reproduzida na monografia de Arala Pinto (1938: 163-165); e também o «Mappa dos Pinhaes de S. Magestade (…) feito de baixo das Ordens do Ten. Coronel Guilherme Elsden pelo Discípulo do Número Maximiano José da Serra a 1 de Julho de 1769» (cota CA 112 IGP, cartoteca do Instituto Geográfico Português).

54 – Diz o engenheiro-silvicultor Henrique de Mendia, em 1881, referindo-se às areias: «a acção do vento as levanta, impelle e molda nas mais variadas formas, operando a formação de uma série importantíssima de dunas, que se ligam, continuam e avançam incessantemente para o interior das terras, esterilisando importantes propriedades agrícolas, determinando o alagamento pantanoso dos plainos de Coimbrão e Amor em resultado do alteamento do leito do rio Lyz e obstrução da sua foz e mergulhando dia a dia na onda insaciável os pinhaes do

Uma das razões que explicam, também, o povoamento tardio da beira-mar prende-se com a pirataria, sarracena e normanda, que constituía uma ameaça permanente às populações que habitavam perto da costa 55. Estabeleceram-se assim, em muitas destas localidades, meios de comunicação à distância – as almenaras ou fachos (e, também, talefes ou talegres, em linguagem popular) – que, com sinais de fogo e fumo, permitiam dar o alerta sempre que era detectada a presença de embarcações inimigas. A partir de finais do século XVI, este sistema de comunicações teve o seu Regimento legal e era mantido por uma Companhia às ordens de um capitão, ou tenente, e ordenanças encarregues da vigilância (Aires de Amorim 1986: 450). Houve fachos na Granja, em Espinho, Paramos, Esmoriz, Cortegaça, Ovar (Carregal), Vieira e, certamente, em muitos outros pontos do litoral. Consta que durante o cerco do Porto, em 1832, «uma mensagem chegava do Porto a Sintra em três quartos de hora» (Brandão 1991: 22) 56. Nos séculos XVII e XVIII, corsários mouros e

Urso, Pedrogão, Correntes, Sismarias e Conselho, verdadeiros oasys onde o viajante, que abrazado nas ardencias de um sol de estio, se dirige com pezado passo da Figueira ao porto da Vieira, affrontando a monotona aridez d’este deserto de areia, se acolhe de longe a longe» (Mendia 1881: 54). Note-se, portanto, que a mancha florestada não era ainda contínua, como actualmente. Era o caso, por exemplo, do Pinhal do Pedrógão, «que reveste 121 hectares de antigas dunas e que inteiramente isolado no meio dos vastos areaes se eleva como uma ilha perdida n’um oceano» (1881: 75).

55 – Diz o capitão F. Gomes Pedrosa nos seus Subsídios para a História de Buarcos que «Em carta de 2/4/1630, Fernão Gomes de Quadros, capitão-mor de Buarcos e Tavarede, informa que Buarcos se está a despovoar por temor dos corsários. Um documento de 14/4/1657 relata a petição elaborada por moradores de Buarcos e Figueira, alegando que no verão sofrem grandes danos de turcos e mouros “que não saiem nunca daquela costa roubando e levando gente e barcos… e com o terror não ousam pescar…”» (s/d: 13).

56 – Lê-se no vol. V da Etnografia Portuguesa, de J. Leite de Vasconcelos, que «o facho era o antigo telégrafo para dar conhecimento de tropas ou sublevação popular. Era uma caldeira grande, contendo breu, resina, etc., que se acendia quando era preciso e fazia muito fumo. Guindava-se, por cordas, ao cimo de um torreão de pedra e madeira muito alto…» (1982: 162). Descrição semelhante é a do Vocabulário Portuguez e Latino de Bluteau (1713), citada por Benjamim da Costa Dias no n.º 11-12 do Boletim Cultural de Espinho: «nas torres e atalaias o facho é um pau alto com outro em cima atravessado, em cuja ponta está uma cadeia de ferro, e no fim dela, uma caldeirinha vasada, aonde se põem o fogo, quando parece o inimigo, de noite, ou de dia, por tempo de seis meses, que correm de Maio até fim de Outubro» (Dias 1981: 232). Esta referência provém de uma compilação de artigos publicados entre 1943 e 1946 no jornal de que Benjamim da Costa Dias foi director – Defesa de Espinho – e onde um seu amigo leitor explicou a implantação das almenaras, ou fachos, no século XV e na «segunda metade do século XVI o seu estabelecimento com carácter de permanência» (1981: 231); veja-se também Aires de Amorim (1986: 450). A Monografia da Gafanha do Padre João Vieira Rezende cita palavras de um seu informante que associa o talefe ao antigo costume de amentar as almas: «alta noite, havia pessoas que subiam ao talefe e, com voz espaçada, muito comovente e dolorida, pediam Padre Nossos, orações e outros sufrágios pelas almas do Purgatório, sendo correspondidos no outro talefe» (1989: 128).

turcos continuam ainda a assolar a costa portuguesa, havendo notícia de combates, pilhagens e naufrágios em Buarcos, Figueira da Foz, Esmoriz e Ovar 57.

Os constrangimentos impostos pelas características do meio moldaram tipos de adaptação peculiares, inclusivamente no que concerne à exploração dos recursos marítimos e silvícolas e, também, ao tipo de habitação construída em madeira – os palheiros – utilizado pelos pescadores que, a partir do século XVIII, foram colonizando os areais. E porque a construção de palheiros em madeira caiu progressivamente em desuso a partir de meados do século XX, até ser abandonada nas décadas de sessenta e setenta – restando hoje apenas alguns (poucos) palheiros dispersos – a arte xávega, que é a principal modalidade de pesca praticada nesta faixa costeira, constitui actualmente a melhor aproximação, do ponto de vista etnográfico, às diversidades decorrentes dos processos históricos na origem da formação das várias localidades que integram o litoral central português.

A faixa costeira onde é exercida a pesca da xávega é, portanto, uma zona de povoamento recente (séculos XVIII-XIX), onde a prática da recolecção de madeiras, caruma, pinhas, camarinhas, medronhos, etc. se manteve até meados do século XX como um recurso necessário à subsistência, um complemento à pesca e aos trabalhos agrícolas possibilitado não só pelos estrumes, moliço da Ria e pela “manta morta” dos pinhais, como também pela utilização de caranguejo, vísceras e excedentes de peixe para fertilização dos solos arenosos das dunas e charnecas da Gelfa e das Gafanhas, na região de Aveiro, e das Gândaras do centro-oeste, a norte e a sul do Mondego.

Dos vários aspectos gerais a considerar na delimitação desta área deparamos, em primeiro lugar, com a necessidade de equacionar contextualmente o significado a atribuir à possível existência de uma, ou várias, linhas divisórias norte-sul, confrontando-a com o modelo proposto por Orlando Ribeiro em 1945 (no sempre

57 – Já no início do século XI os normandos assolavam estas costas, fazendo prisioneiros que poderiam ser resgatados contra entrega de determinado valor de sal (Aires de Amorim 1989: 396). Ainda no século XVIII, os corsários argelinos faziam muitos estragos nesta região (Lamy 1977: 160); em 1754, capturaram na costa de Ovar 17 embarcações, nenhuma com menos de 17 tripulantes (Pedrosa s/d: 13); do mesmo autor, veja-se «Inventário de Alguns Naufrágios Ocorridos na Costa Adjacente à Foz do Mondego, até aos Fins do Século XIX», in A Voz da Figueira de 15 de Maio de 1980. Veja-se, também, o interessantíssimo documento transcrito pelo Padre Aires de Amorim referente à acostagem de piratas argelinos em Esmoriz, em 1738. Ao palco dos acontecimentos compareceram não apenas os homens mas, também, mulheres «carregadas com cestos de pedras, por não as haver na praia, que hé toda de area, e até entre ellas concorreo huma com a pá do forno para entrar na peleja» (cit.

actual Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico) e adaptado por Jorge Dias a partir do seu estudo sobre os arados portugueses (cf. Mattoso 1991). A presença do oceano, contudo, como factor estruturante do território nacional, «moldou ao longo dos séculos uma outra distinção fundamental: aquela que opõe entre si as regiões litorais, ou alcançáveis por um rio navegável, e o interior, mais isolado de contactos com o exterior» (Fabião 1992: 80).

Sobre a divisão norte-sul, comecemos por averiguar alguns aspectos pertinentes da delimitação da zona da xávega pelo topo norte. De Espinho para o sul, a costa rochosa do norte cede lugar às grandes extensões de areia que se prolongam até às arribas jurássicas do cabo Mondego. «A essa fronteira geológica, cerca da foz do Douro, corresponde também», nas palavras de Octávio Lixa Filgueiras, «um nítido corte cultural» (1981: 357), evidenciado pelas técnicas de construção naval: nesta zona «é flagrante a unidade (de estirpe) dos seus barcos representativos, quer os de mar, quer os de rio e lagunas; de fundo chato, sem quilha, designáveis por canoas de tábuas. O sistema de construção utilizado corresponde a uma adaptação da técnica mediterrânica tradicional» (1981: 357). Este autor cita o etnógrafo poveiro António Santos Graça, para quem «duas raças bem distintas e bem características povoaram a costa portuguesa: uma aquém, outra além Douro», e coloca a tónica nos diferentes tipos de embarcações e na origem das técnicas da sua construção – «um dos mais interessantes problemas da Arqueologia Naval». O problema das prováveis origens nórdicas ou mediterrânicas dos barcos de arte xávega, no entanto, não constitui – do meu ponto de vista – uma questão central, até porque, como diz o autor citado, não há conclusões incontroversas nesta matéria.

A delimitação da zona da xávega pelo lado sul (Vieira de Leiria) estabelece-se, uma vez mais, de acordo com condicionantes de ordem geofísica, segundo as características do interface litoral: as areias sedimentares e as dunas antigas que se estendem até S. Pedro de Moel dão lugar, para sul, às aflorações rochosas e às arribas escarpadas, tornando-se impraticável o tipo de pesca de que se ocupa este estudo, dadas as características acidentadas dos fundos marinhos. Em termos globais, a virtual linha separadora entre o Norte e o Sul do território nacional é, como sabemos, bastante imprecisa, variando consoante a perspectiva disciplinar adoptada (cf. Mattoso 1991: 27-47). A Estremadura é, efectivamente, uma zona de transição e de contraste entre influências climáticas, entre o Norte e o Sul, entre a cultura do milho, característica do Norte Atlântico, e a do trigo, caracteristicamente interior e

mediterrânica, para citar apenas alguns aspectos. Em termos linguísticos, a instabilidade lexical do centro leva a considerar uma linha divisória situada a norte do Tejo e a sul da Nazaré, como explica Cláudio Torres ao referir-se a Peniche: «Depois do século XVI, ao aparecer como destacado entreposto pesqueiro, parece ter assimilado, além dos desalojados lagunares [de Aveiro e Óbidos 58], muitos homens do mar oriundos tanto do norte como do sul, pois se tornou numa espécie de ponto de convergência das duas tradições pesqueiras, o que é sensível, nomeadamente, na morfologia naval e na nomenclatura dos peixes» (1992: 366).

Assim, tomando em consideração os diversos factores mencionados, a zona da xávega surge como uma área de características originais cuja situação na fachada atlântica da Península se identifica com essa porção de espaço que – na esteira dos investigadores do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular – se convencionou denominar litoral central português. Um conjunto de circunstâncias geográficas, históricas e sociológicas permite ainda, dentro desta vasta parcela do litoral, diferenciar algumas sub-regiões. O caso mais evidente é o do espaço compreendido a sul da barreira natural formada pelo curso do Mondego, que pode ser identificado, respeitando as suas particularidades, de acordo com a designação popularizada na década de quarenta por um dos escritores vieirenses – José Loureiro Botas: litoral oeste; é o caso, também, mas por razões diversas, do troço nortenho que compreende a Marinha de Silvalde (Espinho), Paramos, Esmoriz e Cortegaça, onde a intervenção humana transformou irremediavelmente a paisagem, provocando o desaparecimento dos grandes areais; finalmente, a área central restante – do Furadouro a Mira, abrangendo a Gelfa e as Gafanhas 59 – distingue-se pela proximidade da Ria de Aveiro e, também, pelas ligações entre a pesca e a agricultura. A relação entre ambas as actividades é, aliás, bastante antiga em vários locais da zona da xávega, como, por

58 – Sobre a importância dos pequenos portos da Estremadura (Óbidos e Salir do Porto) durante a Idade Média, veja-se Manuela Santos Silva (1991); cf. Cortesão (1978).

59 – A Gelfa é uma faixa de terreno com cerca de 25 quilómetros de comprimento e entre 1 e 2 quilómetros de largura que separa a ria do oceano, entre o Furadouro e S. Jacinto; a Gafanha é «tôda a região arenosa dos concelhos de Ílhavo e Vagos com cêrca de 25 quilómetros de comprimento por 5 de largura, abraçada do Norte ao Sul (lado poente) pelo rio Mira e do Norte ao Sul (lado nascente) pelo rio Boco, afluentes da Ria-de-Aveiro, e confinando pelo Sul com uma linha que, saindo dos Cardais de Vagos, vai fechar ao Norte do lugar do Poço-da-Cruz, freguesia de Mira. Pela identidade da sua origem, topografia, condições de vida, costumes, etc., consideramos como uma continuação da Gafanha a duna situada naqueles dois concelhos, entre o Oceano e a Ria» (Rezende 1989: 1).

exemplo, no eixo Ovar-Silvalde, se bem que, actualmente, apenas tenha alguma expressão para sul desta mesma zona (do Torrão do Lameiro a Mira, especificamente).

A oposição entre o litoral e o interior, por seu turno, é uma das características estruturais mais marcantes do território nacional. Desde os tempos da formação da nacionalidade que a afluência de populações às regiões do litoral mais próximas das embocaduras dos grandes rios é uma constante, apesar dos flagelos da pirataria e da malária (o sezonismo palustre afectou as gentes dos campos do Vouga, do Mondego e do Lis até ao nosso século XX). As aptidões agrícolas e comerciais das regiões beneficiadas pelas grandes vias de circulação fluvial e, a partir do século XIX, pelo enorme progresso dos transportes terrestres, proporcionaram o crescimento das cidades do litoral e a industrialização. Actualmente, a pressão demográfica e a concentração das actividades económicas na faixa litoral do Norte da zona da xávega, de Espinho a Aveiro, coloca graves problemas à gestão dos desequilíbrios no âmbito dos processos de ordenamento do território, acarretando consequências drásticas para o meio ambiente e, especialmente, para as regiões costeiras. À desertificação de muitas regiões do interior do país contrapõe-se o aparecimento de novas bolsas de pobreza no litoral e a constituição de zonas periféricas que revelam o acentuar das desigualdades – de que, aliás, boa parte das comunidades piscatórias abordadas neste estudo são exemplo.

A sul das Gafanhas, a oposição entre o litoral e o interior encontra também expressão – de acordo com os objectivos genéricos de delimitação contextual propostos – na identificação dessa peculiar paisagem natural e humana que se diferencia do território envolvente e se designa por Gândara (cf. Gaspar 1986: 19). Para Fernanda Delgado Cravidão (1988), Gândara é sinónimo de terreno arenoso e estéril. Enquanto topónimo, encontra-se principalmente na faixa litoral a norte do Mondego – e a uma distância média de 40-45 quilómetros da linha de costa –, descendo ainda até à linha do Tejo, onde desaparece para ceder lugar ao termo charneca. No dealbar do século XX, Paul Choffat delimitou geologicamente a Gândara apontando o Vouga como limite norte; documentos setecentistas relativos à delimitação de freguesias, em Ovar, mencionam igualmente a existência de “gandras” (Pinho 1959: 68) mas, de acordo com critérios próprios à geografia das populações, a citada autora delimita-a entre a serra da Boa Viagem e o limite norte do concelho de Mira.

Na perspectiva histórico-etnográfica, porém – e a despeito das barreiras naturais da serra da Boa Viagem e do Mondego –, a região costeira a sul do

Mondego, outrora rica em salinas (Cintrão 1988: 59-66; Coelho 1989: 255 e segs.), faz parte integrante da faixa litoral mais vasta em que se inclui a Gândara delimitada por Fernanda Cravidão: atestam-no alguns costumes populares hoje desaparecidos, como o uso de canos 60, chapéus redondos de veludo preto (com “espelho” e pena de faisão, nalguns locais), e a utilização de podzol – matéria argilosa escura retirada do subsolo – na construção de habitações, para além dos palheiros e da actividade piscatória. Também os solos de areia, a existência de charnecas e regiões pantanosas em torno do vale do Lis, assim como a ocorrência do próprio topónimo (Gândara dos Olivais, por exemplo) e as migrações de populações de além-Mondego para a Costa de Lavos, Leirosa e todo o concelho da Marinha Grande – motivadas, inicialmente, pela invasão francesa de 1810 – vêm reforçar esta demarcação mais alargada. Assim, teremos não a Gândara, mas as Gândaras – a norte e a sul do Mondego.

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