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No início do capítulo precedente referi-me a um conjunto de temas recorrentes nas escritas sobre a beira-mar – o matriarcado, a endogamia, o isolamento das comuni- dades piscatórias face às populações vizinhas e a determinação dos traços de carácter dos pescadores. A recorrência destes temas não apresenta, contudo, uma distribuição cronológica regular nos textos analisados. Enquanto as tentativas de definição dos traços de carácter do pescador aparecem persistentemente, como vimos, desde o século XIX, o tema do matriarcado – que se revela um importante marcador de alteridade no olhar dos eruditos sobre as mulheres da beira-mar – é muito mais recente e surge, essencialmente, em textos de cariz académico. Os autores que elaboraram esta ideia a partir de contextos marítimos escrevem nas duas últimas décadas, acompanhando a crescente visibilidade do trabalho feminino na sociedade portuguesa, pelo que talvez a necessidade de problematizar a autoridade das mulheres surja, em grande medida, como consequência desta realidade. Assim se poderá depreender, por exemplo, da monografia de Ian Brogger sobre a Nazaré (1992), localidade onde o incremento exponencial do aluguer de quartos particulares (actividade em que a performance de angariação e gestão cabe inteiramente às mulheres) motivado pelo turismo, bem como o decréscimo efectivo da actividade piscatória e a ausência dos homens nas traineiras e “motoras”, entre o mar e o porto de abrigo, faz das mulheres o centro incontestado das atenções. No entanto, como salientou Pina Cabral (1990), já Paul Descamps – um sociólogo da escola de F. Le Play que, a convite de Salazar, estudou a sociedade portuguesa no início da década de trinta (cf. Kalaora 1989) – sustentara que a tendência para o matriarcado resultava da ausência dos homens decorrente da emigração e, concomitantemente, da importância do trabalho feminino – fenómenos cuja incidência, não sendo exclusiva das regiões costeiras foi, contudo, bastante forte nas zonas onde as migrações sazonais e a emigração se fizeram sentir com mais intensidade, entre as quais se conta todo o litoral no Norte e no Centro do país.

Na verdade, ao longo de quase todo o século XX, o papel da mulher em Portugal foi sempre menorizado e relegado para um plano de subordinação aos ditames da autoridade masculina, pois o modelo ideológico dominante tinha expressão jurídica na limitação dos direitos das mulheres e, consequentemente, na

desigualdade entre ambos os sexos perante a lei. A ideologia da superioridade masculina, hegemónica na sociedade portuguesa, foi atestada “cientificamente” e veiculada não só pela Antropologia Biológica de Mendes Correia, na década de trinta (cf. Moutinho 1980: 89), mas também – surpreendentemente – já em finais da década de sessenta, num pequeno volume enciclopédico de proveniência alemã que, na edição portuguesa, contou com a colaboração de Ruy Cinatti e José Cutileiro (Herberer et al. 1979) – ambos diplomados por Oxford em Antropologia Social. Na continuidade da escola de Mendes Correia, pode ler-se no artigo «Antropologia Social» desta enciclopédia – cuja última edição data de 1979 – que «o homem (…) predomina em tudo o que requer genialidade, produtividade artística e capacidade de assumir posições de chefia»; «As mulheres (…) revelam um impulso social menos forte e, portanto, uma escolha social menos marcada do que a do homem» (Herberer et al. 1979: 54-55). Com a progressiva emancipação da mulher e a igualdade de direitos conquistada após a devolução dos rumos do país ao regime democrático, em Abril de 1974, ficaram criadas as condições para a emergência de novas configurações simbólicas nas relações entre homens e mulheres.

Reflectindo sobre comunidades piscatórias, Gísli Pálsson abordou o assunto contextualizando-o de forma mais abrangente, referindo-se, por um lado, à desvalorização e exclusão do papel das mulheres em diversos folk models oriundos dos próprios grupos dependentes da pesca e, por outro, à falta de atenção a estas questões pela parte dos antropólogos (1991: 64-66). Esta tendência veio a alterar-se com o desenvolvimento da Antropologia das Pescas e o aparecimento de trabalhos como, por exemplo, os de Paul Thompson (1985) ou de Jane Nadel-Klein e Dona Lee Davis (1988). De facto, «western tradition has stereotyped fishing as an exclusively male occupation» (Nadel-Klein e Davis 1988: 1), e daí a necessidade de evidenciar o importantíssimo papel das mulheres na economia da pesca, segundo um padrão recorrente um pouco por todo o mundo: «whether in Malaysia, Scandinavia, or Newfoundland, women again and again appear as netmakers, fish sellers, and processors», como nota Thompson (1985: 13). O mesmo autor regista ainda – tal como fez Sally Cole (1994) para o Norte de Portugal – a existência de equipagens femininas na Sardenha e na Irlanda do Norte, sugerindo a necessidade de conhecer as raízes históricas destas variações.

Para a zona da xávega, Raquel Soeiro de Brito, na sua monografia de 1960 sobre Palheiros de Mira, salientou que ao «ao mar vão apenas os homens, mas a

gente antiga recorda o tempo em que, por haver muito peixe e ainda pouca gente, as mulheres ajudavam os homens, quer remando nos barcos, quer alando as redes na praia. Um dos períodos áureos foi o de 1912 a 1920» (Brito 1981: 60). As causas prováveis desta variação – para além das que são apontadas pela autora – estão também associadas às dificuldades deste período em que as migrações de populações piscatórias do litoral central para o Tejo são muito intensas, devido à crise precipitada pela especulação capitalista no mundo da pesca e às condições de vida miseráveis, com a fome, as sucessivas epidemias e as elevadas taxas de mortalidade infantil, o desemprego…

O reconhecimento da importância das mulheres nas economias piscatórias e do seu papel de destaque na vida social destas comunidades surge, de forma muito expressiva, na prosa dos escritores que, por experiência directa, conheceram a realidade quotidiana dos universos marítimos. Autores como Raúl Brandão, Alves Redol, José Loureiro Botas e António Vitorino evidenciaram a dimensão feminina da luta pela sobrevivência e deixaram-nos narrativas impressionantes acerca da vida árdua das mulheres dos pescadores, escravizadas pelo trabalho e marcadas, sempre, pela tragédia da pobreza ou pela vertigem do afastamento e da perda dos que lhes são queridos. Raúl Brandão, ainda na década de vinte, não hesita em declarar: «tive sempre a ideia de que quem manda em todo o país é a mulher. (…) Valem mais que o homem, sacrificam-se mais que o homem» (s/d [1923]: 87). Mas os desafios colocados pela questão da autoridade feminina, do importante papel económico das mulheres e das inúmeras ambiguidades suscitadas pela prevalência simultânea de um modelo de “masculinidade hegemónica” (Almeida 1995) dominante na sociedade portuguesa não parecem, contudo, ser problemas que digam apenas respeito aos contextos marítimos, como se depreende, por exemplo, da análise de J. Pina Cabral (1989) em torno da sociedade rural minhota e do seu universo simbólico. Vejamos, primeiramente, o que nos dizem alguns dos proponentes do matriarcado.

Jan Brogger pugna pela «sobrevivência na Nazaré de um número de traços culturais atávicos», afirmando estarmos perante «uma cultura comunitária mais reminiscente dos tempos medievais que dos tempos modernos» (1992: 13). O arcaísmo, segundo Brogger, decorre directamente da supremacia feminina (1992: 13), vindo o antropólogo a reconhecer que na Nazaré existe uma cultura mais matriarcal do que a dos dobuanos de Reo Fortune ou a dos yao de Clyde Mitchell (1992: 57). Mas a credibilidade da existência de um sistema linhageiro matrilinear na

Nazaré (e em todo o Oeste europeu, aliás) foi prontamente criticada por João de Pina Cabral num texto de 1990, inédito, intitulado «Permanence et Changement dans les Roles Masculin et Feminin au Nord-ouest du Portugal» 171, que alerta para o facto de o matriarcado ter mais adeptos.

De uma maneira geral, as tentativas no sentido de definir o tipo psicológico das populações marítimas referem-se, inevitavelmente, não aos pescadores desta ou daquela praia numa dada época, mas a um pescador idealizado, ficcionado nos discursos de quem tipifica e estandardiza para poder tomar posse discursiva de um objecto. Por isso, estes discursos são diversos, contraditórios, ambíguos e algo vagos. Em certos casos, contudo, o registo primitivista assume formas radicais, como nas teses de Moisés Espírito Santo, que procura inspiração nalgumas correntes da Psicanálise para converter a interpretação etnográfica numa psicologia popular ilustrativa do carácter nacional – do volkgeist. Como ponto de partida para uma interpretação da história nacional, Moisés Espírito Santo diz-nos que «os psicólogos explicam a atracção pela água a partir dos símbolos maternais. A água é o líquido amniótico e tudo o que vive provém do oceano» (1990: 77). No entanto, esta atracção é perversa, já que «a familiaridade com o oceano acentua nos portugueses a psicose da instabilidade» (1990: 79). A propósito das comunidades piscatórias, em geral, o autor refere-se a uma «cultura específica deste meio, de tendência ginocrática» e garante que as mulheres dos pescadores «são particularmente viris, adoptam comportamentos masculinos e uma linguagem grosseira com acentos fálicos» (1990: 106).

Assim, baseando-se em Kérenyi, Jung, Ferenczi e Rank, Moisés Espírito Santo propõe uma leitura das profundezas do carácter português revelado na História da nação e do seu povo: «os sobressaltos revolucionários esmorecem depressa na indiferença geral e na espera de um messias ou de um “general sem medo” que os há-de libertar de novo do seu torpor fatalista. A história do país é marcada por uma sucessão de altos e baixos, de entusiasmo e desencorajamento. Esse traço cultural, que conduz à inacção, reflecte-se na mediocridade inventiva e criadora dos portugueses. Ele deriva do seu sistema educativo familiar, assente exclusivamente no proteccionismo maternal e na correlativa ausência do papel emancipador do pai, ou no medo do pai» (1990: 79). Esta interpretação surge como uma forma profun-

damente negativizada e pessimista de vincular a identidade nacional a um determinado entendimento da cultura popular, à semelhança do que aconteceu com a geração de 1890 (Leal 1995; Dias 1977). O recalcamento – que poderia ser simbolizado na imagem patriarcal do ditador que durante quase cinquenta anos governou este país de rurais – liberta-se agora das suas amarras nas margens da terra firme e securizante, em perigosa contiguidade com os abismos marinhos; e, nesta nova versão do mito, revela-se um povo cujas características são, afinal, de sinal contrário às que haviam sido identificadas pelas efabulações nacionalistas.

Esta intrigante correlação entre a familiaridade com o oceano e a “mediocridade inventiva e criadora dos portugueses” assenta, pois, numa psicologia popular de matriz edipiana que, do ponto de vista de Moisés Espírito Santo, se manifesta no decurso da história um pouco à semelhança da imagem da roda-da- -fortuna, como “altos e baixos” pontuados por uma sucessão de surtos messiânicos alternados com “torpor fatalista”. Nesta óptica, o carácter nacional decorre de um princípio geral que assenta no “sistema educativo familiar” dos portugueses: «estando o pai ausente e constantemente ameaçado, as crianças fazem incidir a sua atenção exclusivamente sobre a mãe» (1990: 106). Com pais ausentes e mulheres viris, o estranho mundo dos marítimos – perdoe-se-me a ironia – serve, para este autor, de modelo exemplar para a decifração da omnipresença feminina na religião popular portuguesa. É de salientar também, o eixo de semelhança e continuidade entre esta weltanschaung e as razões da tendência matriarcal da sociedade portuguesa apontadas por P. Descamps, a que me referi acima. Para mais, como salienta Pina Cabral, este último acreditava que o matriarcado era um traço cultural de origem e características mediterrânicas (Pina Cabral 1990: 6).

Eis um segundo exemplo. Em 1982, no Colóquio Santos Graça de Etnografia Marítima que teve lugar na Póvoa de Varzim, a comunicação apresentada por Celeste Malpique avançava uma imagem precisa do carácter do pescador com base nos seus estudos psicológicos sobre a comunidade piscatória da Afurada: «O pescador em terra é um homem rude, inábil, dependente, que está melhor na taberna com os companheiros do que em casa com a mulher e os filhos» (1986: 106); «a mãe tem um papel dominante até tarde e a sua figura recebe um investimento bastante mais forte do que a do pai, em qualquer dos sexos» (1986: 107). Assim, «estão presentes mecanismos psicológicos que tendem a manter os estereótipos sexuais, e a colocar o grupo dos homens face ao grupo das mulheres, numa complementaridade funcional

que os fortalece na luta pela sobrevivência, mas não lhes dá acesso à verdadeira genitalidade. Em termos de maturidade psicológica, diríamos que a mulher é sempre mãe e o homem é sempre filho. (…) O homem vai no grupo dos homens a que fortes laços homossexuais dão a força da luta contra o destino incerto, o Mar, o Estrangeiro. Na terra ele tem de entregar o “phalus” à mulher e reduzir-se ao filho dela, ao filho que foge para a taberna, continuando o único prazer que conhece, o do convívio unissexual» (1986: 108).

Deste ponto de vista caracteriológico, os pescadores seriam todos, portanto, potencialmente (ou fantasmaticamente) homossexuais, dada a impossibilidade de aceder à “verdadeira genitalidade” que lhes é imposta na “luta pela sobrevivência”. A mesma autora, no seu interessantíssimo estudo sócio-psicológico sobre A Ausência do Pai (Malpique 1990), debruça-se de forma mais intensa sobre a comunidade piscatória da Afurada, afirmando que é na taberna que os homens encontram a «satisfação oral compensatória» para o risco que enfrentam no mar (1990: 150). «O prestígio social do homem», continua Celeste Malpique, «mergulha as suas raízes na idealização de um pai ausente e fraco, satisfaz um narcisismo fálico (o que se vê, o que se mostra)» (1990: 153). E se, por um lado, «a religião popular é ginocrática», a autora reconhece, por outro lado, que «não nos parece que esta sociedade seja de tipo matriarcal ou ginocrático. Os lugares de maior prestígio são ocupados por homens» (1990: 152). No entanto, na comunidade piscatória da Afurada, «as tradições matrilineares desempenham um papel importante», do que é exemplo, para a autora, o «casamento endogâmico» (1990: 152).

Não querendo pôr em causa a validade desta análise no contexto disciplinar que lhe é próprio, não posso deixar de verificar, no entanto, que este tipo de abordagem, para além de pouco esclarecer em matéria sociológica, suscita ainda inúmeras dúvidas de natureza ética. Dificilmente fará sentido qualquer esforço para corroborar etnograficamente afirmações tão peremptórias acerca da “maturidade psicológica” dos pescadores como aquelas que venho de citar. Opinião semelhante – de que a dependência da figura materna se prolonga no casamento, determinando o padrão das relações de complementaridade e oposição entre os sexos – é veiculada por Carlos Diogo Moreira na sua obra consagrada às Populações Marítimas em Portugal (1987: 34). Segundo as sugestivas insinuações de M. Espírito Santo e de Celeste Malpique, os comportamentos dos pescadores podem, portanto, ser classificados simbolicamente num espectro que varia entre a homossexualidade

(Malpique 1986: 108) e o sadismo (Espírito Santo 1990: 105-106). Nos anos cinquenta, de acordo com Acheson (1981: 297), houve quem avançasse com a mesma hipótese defendida por Celeste Malpique – de que os filhos dos pescadores, crescendo na ausência do pai, tenderiam a desenvolver traços femininos, compensando-se através de comportamentos de masculinidade exacerbada e agressiva. Raoul Anderson e Cato Wadel, por exemplo, afirmaram a propósito da pesca de alto mar na Terra Nova que a vida a bordo por longos períodos «often led to undesired behavioural anomalies, in particular, homosexual behaviour» (1972: 144). Fazendo eco das palavras de Marilyn Porter, Gísli Pálsson constatou, porém, que «anthropologists who have worked in Newfoundland fishing communities have hardly talked to women» (Pálsson 1991: 66).

Contrariando o sentido desta prática, Sally Cole (1994) realizou a sua pesquisa no litoral minhoto tendo as mulheres como interlocutoras preferenciais e, adoptando uma formulação de Gerald Sider, definiu a comunidade piscatória de Vila Chã como uma “cultura de oposição” – que adquire historicamente o seu sentido de identidade em função de um outro grupo (os lavradores) em relação ao qual se individualizou, por inversão dos valores desse mesmo grupo. Apesar das pertinentes críticas que esta autora dirige aos mediterranistas, o seu modo de problematizar o desempenho dos papéis de género vai ao encontro das questões por eles definidas – daí o seu interesse, por exemplo, na análise da «tensão entre a expressão cultural da sexualidade das mulheres através da ideia de vergonha e a realidade social na qual as mulheres manipulavam e controlavam a sua sexualidade» (1994: 110). No entanto, a expressão social da ideia de “vergonha”, enquanto veículo de moralidade, excede largamente o contexto analisado, esvaziando-se de sentido na própria constatação da sua abrangência semântica (1994: 101) e, seguramente, na extensão e na disseminação do seu uso em Portugal. Ciente de que as opções teóricas e metodológicas de Sally Cole foram devidamente reflectidas, dando lugar a uma das mais interessantes monografias publicadas em Portugal neste período, parece-me apesar de tudo adequado o sentido do alerta expresso por Paul Thompson a propósito da necessidade de compreendermos as razões subjacentes à divisão do trabalho e às relações entre os sexos nas comunidades marítimas: «replacing a female-blind ethnography with a male-blind one will simply create a different problem in interpretation» (1985: 25).

Os sentidos de leitura que a história confere a estas questões clássicas adquire visibilidade no terreno, a partir de um contexto de experiência em que o próprio

etnógrafo se deixa pensar como sujeito produtor de sentidos – ele próprio em processo de permanente reconfiguração, ao sabor dos rumos imprevisíveis do quotidiano e dos encontros que vai mantendo no decurso do seu trabalho. Entre as várias vertentes analíticas susceptíveis de exploração, destaco o facto de que tanto no litoral minhoto como no litoral central ou na costa alentejana as mulheres se reconhecem, identificam e prestigiam por via das suas virtudes de trabalhadoras, ou seja: as mulheres de Vila Chã «consideram-se mais em termos dos seus papéis como trabalhadoras e gestoras da família do que em termos dos seus papéis reprodutores» (Cole 1994: 98), e o mesmo acontece na aldeia piscatória da Azenha, no Alentejo (Mendes e Meneses 1996: 71). Esta perspectiva vai ao encontro do argumento de Trevor Lummis em torno da história das comunidades piscatórias da costa leste da Inglaterra: «occupational identity would determine social being» (1985: I). Em contexto extra-europeu, a monografia de Rita Astuti (1995) sobre os vezo de Madagáscar mostra que não é apenas por nascer no seio dos pescadores que se é um vezo; qualquer um pode tornar-se vezo desde que exerça a actividade que identifica o grupo, isto é, a pesca. Também os clássicos da Etnografia portuguesa parecem ter sido sensíveis a esta questão: entre nós, já Santos Graça com o seu livro O Poveiro, de 1932, havia retratado «de modo pioneiro um mero grupo ocupacional, enquanto comunidade» (Medeiros 1992: vi); e na literatura, Os Pescadores, de Raúl Brandão testemunha idênticas coordenadas. Ora é neste quadro, justamente, que me interessa compreender as questões relativas ao papel fundamental das mulheres no universo da pesca e dos pescadores das companhas de xávega. Assim, a questão da autoridade feminina pode ser lida, num dado contexto de desenvolvimento das técnicas e das relações de produção implícitas, como um aspecto da especificidade ocupacional das comunidades piscatórias, atendendo às características dos recursos e do meio do qual estes são extraídos. Veremos, assim, que não há razões para que o panorama na zona da xávega suscite, neste aspecto fundamental, leituras divergentes das que referi para Vila Chã e para a Azenha, ou seja: o estatuto político e simbólico feminino percebe-se a partir do desempenho laboral das mulheres no processo de existência histórica destas comunidades ocupacionais. O profundo contraste entre o trabalho no mar e o da terra permite evidenciar interpretativamente aspectos essenciais que apontam, também, para diferenças cognitivas vincadas, dado o confronto permanente com o acaso e o imprevisível num cenário que é o do poder esmagador do mar e dos seus ritmos.

Se, por exemplo, no universo rural minhoto o trabalho feminino e a “visão do mundo” que lhe está subjacente contrasta fortemente com os hábitos burgueses (Pina Cabral 1989), nos grupos piscatórios os contrastes são ainda mais radicais, dadas as características peculiares do meio marítimo, entre as quais a natureza aleatória dos recursos e, simultaneamente, dos próprios processos da sua extracção. Assim, se procurarmos comparar, genericamente, a actividade da pesca com a agricultura, que

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