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Abordagem a partir do Primeiro Testamento

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2.2. A experiência como ponto de partida

2.3.1 Abordagem a partir do Primeiro Testamento

Moltmann, ao recorrer aos escritos do Primeiro Testamento, se depara com a

ruah151 como “força vital de Deus.”152 Primariamente, observa ele, ruah era uma palavra onomatopaica para designar vento impetuoso.153 Com ela deve-se pensar em algo vivo em oposição ao que está morto, o que está em movimento contrariamente ao estático.154 Daí a advertência de Moltmann, porque entender a palavra ruah implica dissociação da expressão ocidental espírito (Geist). Pois, o grego ? ? ? ? ? ? e o latim spiritus (e posteriormente os vocábulos neolatinos correspondentes) expressam a tensão corpo-matéria.155

Diferentemente, ruah significa força vital, é a presença atuante de Deus. Ela é ao mesmo tempo a força criadora de Deus, que é sua orige m transcendente, e a força vital das criaturas, que é a vertente imanente. A ruah está quando e onde Deus quer, mas devido à sua vontade para a criação ela se faz presente em todas as coisas, sustentando-as em vida. Porém, Deus e todas as coisas não se equiparam.156

A dupla dimensão da ruah, a transcendental e a imanente, ainda são insuficientes para abarcar a riqueza que a palavra sugere. Por isso, Moltmann se vale de

151

Para maiores esclarecimentos acerca dos testemunhos do Primeiro Testamento, fontes as quais Moltmann também lança mão, os estudos exegéticos mais recentes de H. Schüngel-Straumann são importantes ferramentas. Cf. HILBERATH, Bernd Jochen. Pneumatología, p. 36-40.

152 MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 49-52.

153 Não obstante, no Primeiro Testamento a palavra ruah, em sentido literal, oferece múltiplas variações e em

diversas épocas de onde procedem os escritos com a palavra. Portanto, é extremamente difícil, ou mesmo impossível, estabelecer um padrão lingüístico para o seu uso, bem como criar um único conceito para as variegadas situações em que está envolvida. Cf. HILBERTH, Bernd Jochen. Op. cit., p. 39.

154

A mesma compreensão tem Gutiérrez, para quem o Espírito deve nos remeter aos fenômenos naturais, como o soprar do vento e o respirar dos seres vivos. Portanto, dá uma idéia de dinamismo e, dentro das possibilidades semânticas, tem um significado de vida. Cf. GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber em seu próprio

poço, p. 79.

155

MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 49.

156 Com isso Moltmann diz superar o risco do panteísmo. Cf. MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p.

Schüngel-Straumann, a fim de haurir desta o conceito de “amplidão”, que procede da palavra rewah.157 Nesta relação de parentesco, ruah/rewah, ocorre a experiência do espírito de Deus como “espaço amplo”158 de liberdade em que pode se mover e se desenvolver a vida.

No contexto do Primeiro Testamento, tanto nos profetas quanto nos reis, o espírito se caracterizava como força transformadora nos processos de mudança. Ele é doado às pessoas a fim de que tivessem um novo coração e se inaugurasse uma nova humanidade (cf. Ezequiel 36; 37).

Moltmann afirma que os líderes carismáticos de Israel são os primeiros em que se pode verificar a atuação histórica do Espírito de Deus. Eles são possuídos e guiados pelo espírito, agem em nome de Deus e guiam o povo rumo à liberdade. Neste contexto há dons, por tempo determinado, nos indivíduos para o bem do povo, que neste sentido são dons corporativos de todo povo. Muito significativo aqui é que Israel sempre atribuiu tais fenômenos ao “Deus Uno”, com isso a ruah Yahweh é a agente das histórias, que vão da conquista à instituição da monarquia.159

Os profetas mais antigos em Israel eram pregadores errantes possuídos pelo espírito de Deus: são arrebatados, são dotados de sabedoria e julgam retamente. Por isso, a profissão de fé niceno-constantinopolitana (381) confessa o Espírito Santo como aquele “que falou pelos profetas”. Cumpre diferenciar os profetas pré-clássicos, que se remetem à inspiração da ruah Yahweh, dos profetas clássicos, que anunciaram o dabar Yahweh.160

Juntamente com os dons corporativos do espírito a Israel por meio dos juizes, dos profetas e dos reis, existe a “experiência interior do espírito”, caracterizada pelo salmo 51.12. Há uma associação entre espírito e coração, que significa doação de Deus à pessoa. Daí vem a observação de Moltmann: “retirar o espírito de Deus equivale a Deus virar e ocultar sua face, e significa a morte do homem, como significa também a morte das criaturas (Sl 104).”161

157

HILBERATH, Bernd Jochen. Op. cit., p. 37-38, também segue Schüngel-Straumann, porém ele desenvolve mais as idéias desta acerca da relação entre ruah e rewah.

158

Este é o significado de um dos nomes secretos de Deus na cabalística judaica: MAQOM. Cf. MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida , p. 52.

159 Moltmann não ignora o fato de a história das religiões dar conta de haver paralelismo no xamanismo, no

contexto do espiritualismo primitivo em geral. Cf. O Espírito da vida, p. 52.

160 MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 53. 161

Na literatura sapiencial a presença do Espírito se estende ao cosmos natural. Moltmann se vale de Von Rad para afirmar que nos poemas didáticos a sabedoria de Deus é definida como um poder ordenador “imanente ao mundo”.162 A origem da sabedoria é transcendente, pois junto a Deus se achava antes da criação do mundo. Na sabedoria de Salomão, ruah e hokma, espírito e sabedoria, estão de tal forma juntas, que é possível haver intercâmbio. Com isso, segundo Moltmann, é possível atribuir ao Espírito divino uma “transcendência imanente”. Na condição de Sabedoria, o espírito é, por assim dizer, um interlocutor de si mesmo, ao tempo em que representa a divina presença na criação e na história.163

Segundo Moltmann, no Primeiro Testamento, a ruah Yahweh é descrita como acontecimento da presença de Deus e não se pode referir-se ao uso específico que os israelitas fazem do termo Espírito Santo, que somente em época tardia aparece, com significado restrito. O que é mais adequado à descrição dos israelitas é a idéia da shekiná. Ela não é um atributo de Deus, mas a sua própria presença em determinado lugar e tempo. A shekiná é o “Deus-presença”164 no tempo e no espaço terreno, identificada e ao mesmo tempo distinta dele em eternidade. Por isso, acerca da mística presença da shekiná, salienta Moltmann que “mais tarde alguns sábios rabínicos e cabalísticos tentaram interpretá-la como uma hipóstase,165 como um ser intermediário ou uma emanação de Deus.”166 Moltmann se mostra inteiramente a favor da expressão hegeliana de “autodistinção de Deus” empregada por Franz Rosenzweig,167 pois assegura a transcendência de Deus sobre a história de sofrimento da sua shekiná.168

162 A obra citada por Moltmann em alemão: Weisheit in Israel, Neukirchen-Vluyn 1970, 204. Mas é possível

consultá-la em espanhol: VON RAD, G. Sabiduría en Israel, Madrid: 1985, 204. Outros e xegetas também são citados como fontes consultadas por Moltmann. Cf. MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 54.

163

Cf. MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 55.

164

Esta expressão não é usada por Moltmann.

165 Este termo grego designa a pessoa divina, assim como o sinônimo prósopon, que, literalmente significa

máscara e também, na linguagem da teologia trinitária designa pessoa. Com este termo procura-se distinguir a linguagem usada para falar da “natureza divina de Deus (ousía, sua essência) e as instâncias concretas da presença de Deus no mundo (as hypostasis, pessoas).” Cf. LORENZEN, Lynne Faber. Introdução à Trindade, p. 21.

166

MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 56.

167

A obra consultada por Moltmann do supracitado autor é La estrella de la redención, Salamanca: 1977, 479ss. Cf. MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 56-59.; também em MOLTMANN, Jürgen. Deus na

criação, p.35.

168

em MOLTMANN, Jürgen. Trindade e reino de Deus, p. 39-43, as doutrinas rabínica e cabalística da

shekiná são tratadas como doutrinas, cujo ponto de partida é a teopatia, que é uma retomada e

Se a pergunta é pela contribuição da teologia da shekiná na compreensão do espírito de Deus, cabe dizer que Moltmann combina a noção de ruah bíblica com a noção judaica da shekiná. O resultado desta combinação é que ruah-shekiná torna-se a “presença de Deus” que segue com povo. Müller-Fahrenholz destaca as três importantes razões da teologia da shekiná: 1) enfatiza o caráter pessoal do espírito; 2) esta tradição enfatiza a sensibilidade de Deus. Pela shekiná ele sofre com o povo e se regozija em suas alegrias; 3) ressalta o aspecto kenótico do suportar. Deus se torna capaz de sofrer, pois abre mão de sua invulnerabilidade. Müller-Fahrenholz já afirmou alhures que a shekiná é a ponte entre o pensamento trinitário bíblico e o judaísmo.169 Assim, Moltmann nos conduz a pensar numa

kenose do espírito, porque quer amor. Contudo, essa teopatia não deve ser entendida como

antropomorfismo, mas é possibilitada pela inabitação nas criaturas.170

Em Moltmann a história, enquanto categoria teológica, deve ser entendida como advento de Deus, tempo messiânico. A raiz profunda da esperança messiânica de Israel está no nexo entre fé em Deus e esperança de futuro, que só se dá nas experiências históricas de Deus. Sendo, pois recordadas, também esperadas e uma vez narradas, floresce a esperança de experiências similares no futuro. A categoria esperança emerge como “o fundamento dos diferentes horizontes das esperanças messiânicas e pneumáticas.”171

efetiva habitação do Senhor no meio de Israel, a modo de condescendência do eterno, e no prenúncio da glória daquele que há de vir. Por meio da sua shekiná , Deus está presente em Israel, sofre com as perseguições de Israel, vai preso com Israel no exílio, sofre com os mártires as dores da morte”, p. 41.

169

Cf. MÜLLER-FAHRENHOLZ, Geiko. Op. cit., p. 185.

170 Cf. MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 59. 171

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