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CAPÍTULO 2 – PROCEDIMENTOS E PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS:

2.2 ABORDAGEM QUALITATIVA

O trabalho em tela adota uma metodologia qualitativa, conforme já mencionamos. Optamos por essa metodologia porque esta se mostra mais adequada às especificidades de nossa pesquisa, pois, de acordo com Brisola (2004, apud Costa, 2008, p. 5), esse método difere dos métodos quantitativos porque não apresenta estatísticas, “sendo uma forma adequada para entender a natureza de um fenômeno social, tendo como base amostras coletas, e confrontadas com o aporte teórico.” Nesse viés, tal metodologia é adequada para o estudo da linguagem gíria do mundo do crime e das prisões, posto que, consoante Costa (2008, p. 5), o método qualitativo “parte de análises de fenômenos que estão acontecendo, caracterizando-o como análise fenomenológica.”

Segundo Bogdan e Biklen (1982, citados por Lüdke e André, 1986, p. 13), a pesquisa qualitativa ou naturalística “envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo do que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes.”

Assim sendo, como o objetivo de nossa pesquisa é analisar o processo de interação entre os policiais e os reeducandos e destes entre si, que se dá por meio dos usos linguísticos, a abordagem qualitativa é eficaz, uma vez que a mesma tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como principal instrumento. Desse modo, os resultados podem ser mais precisos, já que o pesquisador fica bastante tempo em campo, interagindo com os sujeitos pesquisados em seu contexto natural, observando de perto o que se passa na vida social da comunidade estudada. Nesse ponto, a adoção de uma abordagem qualitativa, que permite a imersão do pesquisador no meio social do pesquisado, é importante, pois “é pela observação do comportamento que se descobrem as palavras escritas e faladas que serão estudadas pelo pesquisador. Não há preocupação com números, porcentagens e estatísticas. Importa o que o pesquisador observou e apreendeu em determinado grupo social.” (LOPES, 2003, p. 34)

A pesquisa qualitativa pode assumir várias formas (estudo de caso, etnografia, pesquisa-ação, etc.). Na presente dissertação, optamos pela etnografia, por entendermos que esse método, ao estudar descritivamente vários aspectos sociais e culturais de um povo ou grupo social, poderá responder a muitas interrogações a respeito da linguagem e da forma de vida dos “filhos errantes da sociedade”, nosso objeto de estudo.

2.2.1 Etnografia

O vocábulo etnografia é formado por dois radicais de origem grega: ethnoi, que significa “os outros”; e graphos, que significa “escrita”, “descrição”, “registro”. Destarte, etnografia significa, literalmente, escrever sobre os outros. Esse método qualitativo tem raízes na antropologia, que é definida como a ciência que estuda, descreve, interpreta e classifica culturas ou povos. (SOUSA, 2006)

Inicialmente a etnografia era utilizada apenas por antropólogos, tendo sido os primeiros trabalhos desenvolvidos no final do século XIX e início do século XX. Tais trabalhos tinham como objetivo estudar a cultura de povos específicos, do ponto de vista da antropologia, dando um cunho interpretativista para as análises realizadas. Dentre essas

pesquisas, Sousa (2006) destaca os trabalhos de Bronislaw Malinowski (realizado na Nova Guiné em 1922) e Margareth Mead (realizado em Samoa – Oceania em 1928).

Atualmente, a etnografia é muito utilizada também por sociólogos, educadores e linguistas, pois propõe uma metodologia baseada na observação, descrição, análise e interpretação de aspectos socioculturais de uma determinada comunidade, podendo, pois, servir aos objetivos de todas as áreas supracitadas.

Consoante Wilson (1977, citado por Lüdke e André, 1986), a pesquisa etnográfica fundamenta-se em dois conjuntos de pressupostos sobre o comportamento humano, quais sejam: 1) a hipótese naturalista-ecológica, que preconiza que o comportamento humano é significativamente influenciado pelo contexto em que está inserido, daí a importância de se estudar o indivíduo dentro de seu ambiente natural; 2) a hipótese qualitativo-fenomenológica, que determina ser quase impossível entender o comportamento humano sem tentar entender o quadro referencial no qual as pessoas interpretam seus pensamentos, sentimentos e ações, nessa perspectiva, o pesquisador deve assumir o papel subjetivo de participante e o papel objetivo de observador, a fim de compreender e explicar o comportamento humano.

De acordo com Erickson (1990, apud Bortone, 1993), na etnografia é crucial que o pesquisador faça uma observação participante a fim de ter uma visão holística do contexto pesquisado, ou seja, o pesquisador deve pautar seu interesse na completude da descrição e análise dos diversos aspectos da vida do grupo humano estudado: sua economia, leis, relações familiares, religião, tecnologia, ciência, magia e rituais, artes, bem como a linguagem como reflexo destas práticas sociais; por isso, geralmente, um estudo etnográfico retrata um ciclo anual de atividade na comunidade, incluindo aí os rituais que acompanham suas vidas.

Desse modo, nas pesquisas etnográficas mais antigas, os pesquisadores permaneciam bastante tempo na comunidade pesquisada, a fim de obter todo o conhecimento possível sobre a organização social e a cultura dos indivíduos. Hoje, contudo, os pesquisadores têm permanecido menos tempo em campo. (SOUSA, 2006). No caso específico de nossa pesquisa, frequentamos o ambiente pesquisado por aproximadamente seis meses, conversando com os agentes prisionais, agentes de polícia, delegados, servidores técnicos administrativos e com os reeducandos a respeito da rotina da vida carcerária e do mundo da criminalidade, e observando a interação entre eles por meio da linguagem. Por isso, devido ao tempo de permanência em campo ter sido relativamente curto12, preferimos utilizar o termo

12 Esse tempo limitado em campo se deu também devido à situação do contexto pesquisado, pois, na época da

pesquisa, o sistema prisional do estado do Tocantins, estava passando por algumas instabilidades, como rebeliões e ameaças de fuga, o que inviabilizou nossa permanência em campo, de forma segura.

“perspectiva etnográfica” e não apenas “etnografia” ao intitularmos o presente capítulo metodológico.

Para a realização da pesquisa de campo de cunho etnográfico, o pesquisador dispõe de vários recursos metodológicos e tecnológicos para a geração de dados. Observação, registros escritos, entrevistas, gravações, fotografias e filmagens, são exemplos de recursos metodológicos. Já os tecnológicos são: gravador, câmera fotográfica, filmadora, blocos de papel ou caderno, caneta, dentre outros. Na realização de nossa pesquisa, utilizamos a observação e a entrevista como recurso metodológico e para registrá-los optamos pelo gravador e blocos de anotações. Cumpre lembrar que, no caso dos reeducandos, só gravamos as entrevistas previamente autorizadas por eles, pois esse público apresenta certo receio com relação à presença do gravador, o que poderia inibir a espontaneidade de suas falas, prejudicando, assim, os resultados da pesquisa. Então, em alguns casos, registramos as entrevistas em blocos de anotações. Além das observações e entrevistas, também solicitamos a alguns reeducandos que fizessem listas das principais gírias (com seus respectivos significados) utilizadas por eles no sistema prisional.

A etnografia pode ser realizada tanto no contexto micro como no macro (SOUSA, 2006). No caso de nossa pesquisa, podemos caracterizá-la como micro, pois focalizamos o trabalho de campo em um contexto menor, dentro do universo do sistema prisional brasileiro, o que não significa que essa escolha por um contexto micro exclua a visão da totalidade.

Um ponto que julgamos relevante mencionar é a questão do papel e da tarefa do observador ao optar por uma abordagem etnográfica. Hall (1978, apud Lüdke e André, 1986, p. 17) cita algumas características essenciais para um bom etnógrafo:

a pessoa precisa ser capaz de tolerar ambiguidades; ser capaz de trabalhar sob sua própria responsabilidade; deve inspirar confiança; deve ser pessoalmente comprometida, autodisciplinada, sensível a si mesmo e aos outros, madura e consciente; e deve ser capaz de guardar informações confidenciais. Desde o contato inicial com os participantes, o observador deve se preocupar em si fazer aceito, decidindo quão envolvido estará nas atividades e procurando não ser identificado com nenhum grupo particular.

No caso da nossa pesquisa com os reeducandos, tais posturas foram fundamentais para obtermos as informações desejadas. Tivemos que assumir um papel de observador- interessado no modo de vida do meio carcerário e, sobretudo, deixar claro para os detentos que não representávamos grupos específicos do judiciário ou da polícia investigativa.

Lopes (2003, p. 36) lembra que “esses princípios etnográficos que evidenciam a necessidade de deslocamento do pesquisador em busca da aproximação e do diálogo com os sujeitos pesquisados é de extrema importância para as pesquisas que lidam com violência.” Embasada nos estudos do antropólogo Luiz Eduardo Soares (1996), Lopes (2003, p. 36) chama a atenção para a responsabilidade ética da etnografia perante a violência, sendo necessário ao pesquisador “metamorfosear-se à procura da perspectiva dos transgressores – aqueles que, por serem designados como dementes, criminosos ou perversos, estão situados à margem das áreas estruturadas da sociedade.”

A nosso ver, a metamorfose é tanto um método quanto uma teoria, pois permite ao pesquisador aproximar-se dos sujeitos pesquisados e refletir sobre a violência, que é o oposto da metamorfose, conforme comenta Soares (1996, p. 19):

[...] enquanto pela metamorfose, o homem ousa [...] transformar-se e converter-se em outro, procurando aceita-lo [...] pondo-se, imaginária e afetivamente, em seu lugar, buscando assumir o seu ponto de vista, o exercício da violência visa a mudar o outro, trazê-lo até o domínio da vontade de quem o exercita. [...] a violência procura transformar o outro em si mesmo, busca absorvê-lo à medida que pretende tornar as ações do objeto da violência extensões de sua própria vontade.

Assim, a metamorfose requer um movimento “generoso” do pesquisador, no sentido de se colocar no lugar do outro, de forma imaginária e afetiva. (LOPES, 2003). De certa forma, em nossa pesquisa, procuramos fazer esse movimento de aproximação com os reeducandos pesquisados, com base nesse princípio da metamorfose.

Cumpre ressaltar que adotamos uma perspectiva etnográfica em nossa pesquisa devido à sua flexibilidade e por oferecer vários recursos de geração de dados; e, principalmente, porque nos permite fazer uma análise mais profunda sobre os fenômenos linguísticos, uma vez que a linguagem é reflexo das ações, do modo de ser e pensar de seus falantes, sendo assim, por meio da investigação etnográfica de uma comunidade é possível compreender aspectos importantes da língua falada pelo grupo, já que esta é uma prática interativa sociocultural e não apenas uma estrutura extracultural localizada na mente humana, como aponta Saussure. (PEREIRA, 2009)

Isso posto, adotamos uma das vertentes da etnografia: a etnografia da fala, sobre a qual passamos a discorrer.

Essa vertente usa os mesmos procedimentos da etnografia convencional, já mencionados nesse capítulo, contudo, o foco central é documentar e analisar aspectos

específicos do processo comunicativo (verbal e não-verbal), bem como contextualizar esse processo na cultura do grupo onde ele ocorre. (BORTONE, 1993). A autora diz, com base em Hymes (1972) e Gumperz (1982), respectivamente, que as unidades de observação na etnografia da fala são:

1. eventos de fala, os quais ocorrem, praticamente, em qualquer comunidade de fala, como, por exemplo: uma consulta médica, uma entrevista para obter emprego, uma aula.

2. atividades de fala, em que o assunto torna-se o ponto central da conversa, tais como: bate-papos sobre futebol, novela, temperatura, etc..

Em nossa pesquisa, observamos atividades de fala dos sujeitos pesquisados, pois nas entrevistas e observação participante procuramos instigar os reeducandos e policiais a falarem sobre suas rotinas, sua vida familiar e social, os desafios encontrados no trabalho (no caso dos policiais), os motivos para a entrada no mundo do crime (para os reeducandos), a rotina do ambiente prisional, etc.. Assim, foi possível obter dados mais precisos sobre a linguagem, já que esta é o reflexo dos aspectos socioculturais do falante. Além disso, os pesquisados se sentiram mais à vontade para falar, posto que os temas das conversas eram afins ao que vivenciam no cotidiano. Para alguns reeducandos as conversas com a pesquisadora eram, inclusive, uma forma de desabafar as angústias que sentiam devido à condição de reclusão e exclusão social em que viviam.

Ao adotarmos a etnografia da fala como metodologia de pesquisa foi possível, então, relacionar a variedade linguística do sistema prisional e do mundo do crime às práticas sociais do grupo, revelando identidades, ideologias, estereótipos, empoderamento e marcas de violência e marginalidade por meio da linguagem, conforme mostraremos no capítulo de análise dos dados.

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