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CAPÍTULO 1 – ABORDAGEM TEÓRICA: A SOCIOLINGUÍSTICA

1.4 A SOCIOLINGUÍSTICA INTERACIONAL

1.4.4 Os footings

Ao estudar o discurso oral e analisar a interação entre integrantes de uma conversa, é fundamental o conceito de enquadre e footing, desenvolvido por Goffman (2002).

Para viabilizar um ato de fala (oral ou escrito), são necessários recursos comunicativos, gramaticais, lexicais e retórico-discursivos, que facilitem a interação entre os interlocutores, e a noção de enquadre e footing está entre tais recursos. Consoante Sousa (2006, p. 27), “a interação organiza-se em enquadres, formas como os discursos realizam-se e tornam-se inteligíveis em diferentes contextos.” De acordo com Goffman (2002, p. 107),

O enquadre situa a metamensagem contida em todo enunciado, sinalizando o que dizemos ou fazemos, ou como interpretamos o que é dito e feito. Em outras palavras, o enquadre formula a metamensagem a partir da qual situamos o sentido implícito da mensagem enquanto ação. [...] em qualquer encontro face a face, os participantes estão permanentemente propondo ou mantendo enquadres, que organizam o discurso e os orientam com relação à situação interacional. Indagam sempre “onde, quando e como se situa esta interação?”, em outras palavras, “O que está acontecendo aqui agora?”

Ao falar em enquadre, é necessário mencionar a metamensagem, como vimos acima, pois esses dois aspectos estão inter-relacionados para que se processe a compreensão da mensagem entre os interlocutores. Consoante Bateson (1972, apud Sousa, 2006, p. 27),

Nenhum enunciado do discurso pode ser compreendido sem uma referência à metamensagem do enquadre (frame). O enquadre contém um conjunto de instruções para que o/a ouvinte possa entender uma dada mensagem (da mesma forma como uma moldura em torno de um quadro representa um conjunto de instruções que indicam para onde o observador deve dirigir o seu olhar). O enquadre delimita, pois, figura e fundo, ruído e sinal [...] o enquadre delimita ou representa „a classe ou conjunto de mensagens ou ações significativas‟.

Como um desdobramento do conceito de enquadre no discurso, Goffman (2002) formula o conceito de footing, o qual é definido como o alinhamento, a postura, a posição, a projeção de um participante da interação face a face em relação a outro participante, a si mesmo e ao discurso que se constrói nessa interação. Os footings dos integrantes, na interação face a face e na organização de enquadres, gerenciam a produção ou a recepção de elocuções e podem sinalizar, também, aspectos pessoais, papéis sociais e discursivos. Os footings são, pois, “estratégias verbais e não-verbais que sinalizam um início, a mudança, e o término de enquadres, isto é, quando começamos e finalizamos um assunto ou, simplesmente, quando mudamos de assunto sem concluí-lo.” (SOUSA, 2006, p. 28). Cumpre ressaltar que os footings revelam, ainda, as identidades que os participantes de um evento de fala assumem no momento da interação, sem delimitar os papéis fixos de falante e ouvinte.

Para ilustrar o conceito de footing e sua mudança, Goffman (2002) dá um exemplo em que o presidente dos Estados Unidos, Nixon, em reunião com funcionários do governo e representantes da impressa, reunidos por razões profissionais para testemunhar a assinatura de um documento, resolve, ao final da reunião, caçoar de uma jornalista que usava calças compridas na Casa Branca, deixando bem claro que preferia vestidos. Nesse episódio, houve uma mudança de enquadre do presidente e da jornalista, em que aquele assume um postura menos séria e formal para evidenciar seu poder ao forçar um indivíduo do sexo feminino a passar da sua capacidade profissional para a sexual e doméstica. Além disso, em sua análise, Goffman (2002) afirma que, por trás desse fato ocorrido na Casa Branca, há um pressuposto social contemporâneo (a nosso ver, ideológico) a respeito das mulheres, segundo o qual, estas devem estar sempre prontas a ouvir comentários sobre a sua aparência física, bem como devem estar sempre prontas para que os outros alterem o chão onde pisam, uma vez que estão sempre sujeitas a se transformarem em objeto de atenção e aprovação e não apenas em

assumirem a postura de participante de um dado evento. O autor diz, ainda, que tal episódio pode evidenciar, também, que toda vez que duas ou mais pessoas se encontram para tratarem de assuntos profissionais pode haver uma conversa informal antes ou depois do evento. Podemos dizer que esse deslocamento de Nixon foi intencional, e que ele o fez não apenas para mostrar que a parte séria da reunião tinha acabado, mas para mostrar que era espirituoso e descontraído.

Podemos ilustrar o deslocamento do presidente Nixon com a “alternância de código” (língua ou dialeto). Vejamos um exemplo de Gumperz e Blom (2002), ao estudarem os padrões de fala e das relações sociais dos falantes de uma pequena cidade da Noruega, Hemnesbergt. De acordo com os autores, em um mesmo cenário, quando há uma mudança na definição que os participantes dão ao evento social, essa mudança pode ser sinalizada por pistas linguísticas e não-linguísticas, conforme mostram os exemplos abaixo:

Certa vez quando nós, na condição de forasteiros, nos aproximamos de um grupo de residentes que conversavam, nossa chegada produziu uma alteração considerável na postura descontraída do grupo. As mãos foram retiradas dos bolsos, as expressões faciais mudaram. Como se poderia prever, nossas observações ocasionaram uma mudança de código, marcada simultaneamente por uma alteração nas pistas do canal (ou seja, velocidade de enunciação das frases, ritmo, maior número de pausas de hesitação, etc.) e por uma mudança de (R)7 para (B)8 em termos gramaticais. Da

mesma forma, os professores locais também relatam que as aulas expositivas formais – em que se desaconselham as interrupções – são proferidas na variante (B), mas que, quando querem encorajar a discussão aberta e livre entre os alunos, os palestrantes mudam para a variedade (R). (GUMPERZ; BLOM, 2002, p. 68).

Vimos que a mudança de footing está relacionada a aspectos sociais do evento de fala, posto que, nos exemplos acima, os atores alternam o código de acordo com o contexto comunicativo, sendo que em conversas mais informais e/ou entre pessoas do mesmo grupo a variante não padrão é utilizada, e em eventos mais formais e/ou em presença de pessoas de fora optam pela variante padrão. Esse aspecto é vislumbrado na linguagem dos reeducandos e do mundo do crime, já que os falantes assumem (ou dizem assumir) posturas diferentes com relação ao uso das gírias, procurando evitar seu emprego na conversa com a pesquisadora e quando estão fora da prisão, conforme veremos nos exemplos citados no capítulo de análise dos dados.

Podemos afirmar que uma mudança de footing implica “uma mudança no alinhamento que assumimos para nós mesmos e para os outros presentes, expressa na maneira

7 Dialeto regional do norueguês.

como conduzimos a produção ou a recepção de uma elocução. Uma mudança em nosso footing é um outro modo de falar de uma mudança em nosso enquadre dos eventos.” (GOFFMAN, 2002, p. 113).

Dado o exposto, podemos concluir que, em suas interações face a face, os participantes das conversas mudam constantemente seus footings, sendo tais mudanças, conforme afirma Goffman (2002), uma característica intrínseca à fala natural. Essas mudanças de footings, como já exemplificamos acima, estão comumente ligadas à linguagem ou a marcadores paralinguísticos.

Goffman (2002) desconstrói as noções clássicas de falante e ouvinte (segundo as quais, em uma conversa só existem duas pessoas), acrescentando que em um evento de fala, ou “encontro social”, podem existir participantes ratificados e não ratificados, sendo os primeiros aqueles para quem é endereçada a enunciação, e os últimos, aqueles ouvintes para os quais a enunciação não é dirigida, mas que acabam ouvindo uma conversa entre participantes ratificados, por acaso ou por intromissão. Tais ouvintes podem ser chamados de “circunstantes”.

Em alguns encontros sociais podem existir, também, mais de dois participantes oficiais (ratificados), sendo que o falante do momento pode se dirigir a todos por meio do olhar, mas pode também, em determinados momentos de sua fala, se dirigir a um ouvinte em especial. Tal direcionamento pode ser feito por meio de pistas visuais ou de vocativos (pistas audíveis). Assim, a partir desse conceito mais abrangente de falante e ouvinte, Goffman (2002) introduz o conceito de “comunicação subordinada”, em que os protagonistas podem interferir, de forma limitada, na “comunicação dominante”. A partir disso, o autor postula que temos “o jogo paralelo: a comunicação subordinada entre um subgrupo de participantes ratificados; o jogo cruzado: a comunicação entre participantes ratificados e circunstantes [...]; o jogo colateral: palavras respeitosamente murmuradas, trocadas entre os circunstantes.” (GOFFMAN, 2002, p. 120).

Nas interações face a face que estabelecemos com os reeducandos em nossa pesquisa de campo, percebemos, conforme mostram as entrevistas apensas a essa dissertação, que os mesmos, devido a sua situação de reclusão, tentavam, quando a oportunidade permitia, incluir participantes não ratificados (servidores da casa de detenção) no evento de fala, a fim de obterem informações sobre o andamento de seus processos ou a respeito de seus familiares.

Parece claro para nós que, consoante a análise de Goffman, falante(s) e ouvinte(s) alteram suas posições constantemente em um evento de fala e, com as próprias palavras do autor: “parece rotina durante a fala o fato de que, enquanto firmemente plantados sobre os dois pés, saltamos para cima e para baixo com outros dois.” (GOFFMAN, 2002, p. 147).

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