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Abordagem tradicional e o Modelo do Novo Consenso

CAPÍTULO 2: ANÁLISE DESAGREGADA SETORIAL DO FENÔMENO

2.1 Análise desagregada teórica

2.1.1. Abordagem tradicional e o Modelo do Novo Consenso

Como vimos, na abordagem tradicional a inflação é resultante de um excesso de demanda sobre o mercado de fatores produção. A política monetária deve manter a economia sobre seu ponto de pleno emprego através da manipulação da demanda agregada, visando apenas a estabilidade de preços. Qualquer tentativa de manter a economia acima do pleno emprego provoca aceleração de preços e instabilidade econômica.

A análise setorial do fenômeno inflacionário na abordagem tradicional está ligada à hipótese de equilíbrio dos mercados. Havendo contínuo market-clearing, o excesso de demanda em um setor provocaria excesso de oferta em outro, dada uma renda nominal, de modo que o ajuste de preços relativos eliminaria tais desequilíbrios. Como a economia

53 tende ao pleno emprego e os mercados dos diversos setores se equilibram, o excesso de demanda é entendido como um fenômeno do ponto de vista agregado, e não setorial. Ou seja, a inflação é resultante de excesso de demanda agregada sobre o ponto de pleno emprego da economia, e não de eventuais excessos de demanda setoriais que possam ser eliminados por ajustes de preços em outros setores, mantendo-se a inflação agregada inalterada.

A persistência de excesso de demanda num determinado setor apenas ocorreria na presença de alguma rigidez de preços e/ou de salários. A rigidez impede o market-clearing

contínuo dos mercados e inviabiliza este equilíbrio. Esta é a base do argumento novo-keynesiano, que procura formular microfundamentos para a rigidez de preços e salários e tenta reintroduzir nos modelos a não-neutralidade da demanda agregada no curto prazo, embora mantendo a neutralidade no longo. Essa rigidez estaria associada à existência de custos de menu e de contratos salariais justapostos, que impedem o market clearing no mercado de trabalho e o livre funcionamento do mecanismo de preços. Quanto mais presentes esses tipos de rigidez nos setores, maiores serão as diferenças do impacto do fenômeno inflacionário setorial. Esses tipos de distorções e de rigidez de preços e salários poderiam perpetuar excessos de demanda setoriais e o fenômeno inflacionário “localizado” não corrigido pelo market-clearing (Ball & Romer 1990; Romer 1993).

Com relação à choques setoriais de custos causados por gargalos setoriais, tal como defendido pela Teoria Estruturalista da Inflação de Custos nos anos 1960-70 (Oliveira, 1964; Pinto 1978), a abordagem ortodoxa a considera como uma confusão entre preços relativos e preços agregados. O raciocínio é igual ao anterior. Uma elevação exógena de custos que aumente os preços em um setor, dado um nível de renda nominal, diminui o poder de compra, provocando excesso de oferta em outro setor. Com isso, este setor sofre uma redução de preços e o nível de preços no agregado ficaria inalterado. Entretanto, a ideia subjacente a este ajuste quase automático entre os setores decorre também da hipótese de que economia tende ao pleno emprego dos fatores de produção, e é justamente essa a diferença com relação àquela abordagem.

Além disso, o aumento de custos generalizado numa economia, dado, por exemplo, pelo aumento dos preços internacionais que encarecem os insumos importados, tal como contemplado pela abordagem da inflação de custos, é tratado, pela abordagem tradicional, como choque aleatório compensado por outros choques na direção oposta no longo prazo; no curto os salários reais cairiam e manter-se ia o pleno emprego com uma menor produtividade do capital. Os impactos setoriais também estariam associados à maior ou

54 menor rigidez de preços e salários em cada um dos setores, que impeçam o market-clearing dos mercados e a absorção homogênea destes choques pelos setores.

Assim, em economias com maior presença do Estado regulamentando o mercado de trabalho e distorcendo o mecanismo de preços, o fenômeno inflacionário tenderia a apresentar maiores impactos setoriais. As idiossincrasias setoriais, como por exemplo subsídios, isenções fiscais, e movimento sindical, impactariam a inflação na medida em que imponham obstáculos à flexibilidade de preços e salários, inviabilizando o market-clearing dos mercados.

Deste modo, segundo esta interpretação, os setores deveriam ter mercados de trabalho igualmente flexíveis e seus preços devem ser regidos pelas leis de mercado. Os formuladores de política econômica devem, neste sentido, garantir o livre funcionamento dos mercados e evitar medidas que distorçam os mecanismos de preço entre os diversos setores. A política monetária, através dos juros, seu principal instrumento, deve garantir a manutenção da economia sobre o pleno emprego, corrigindo os excessos de demanda agregada sobre este ponto de equilíbrio.

Assim como as características setoriais podem impactar a dinâmica do fenômeno inflacionário, a política monetária também pode ter efeitos setoriais diferenciados. Esta discussão vem ganhando espaço nos trabalhos mais recentes da abordagem tradicional, sob o tema de “mecanismos de transmissão da política monetária”. Dentre os trabalhos iniciais podemos citar Bernanke & Gertler (1995) e Mishkin (1996) e dentre os mais recentes, Dedola & Lippi (2005), Ibrahim (2005) e Alam & Waheed (2006), que abordam os impactos setoriais da política monetária em diferentes países.

Como o diagnóstico inflacionário da abordagem tradicional é de demanda, a resposta dos setores à política monetária é analisada também pelo lado da demanda, e depende da função consumo dos bens considerados. Conforme Tomazzia & Meurer:

“... espera-se uma resposta maior e mais rápida sobre indústrias produtoras de bens de capital (efeito sobre outras empresas) e de consumo durável (efeito sobre os consumidores), diante do aumento do custo de capital, e uma reação mais baixa de bens de consumo não duráveis, por se tratarem de bens de primeira necessidade e baixo valor unitário, que possuem baixa elasticidade em relação à renda e não dependerem de concessão de crédito para a sua compra. (Tomazzia & Meurer, 2009 p. 373)

55 A ideia é que a política monetária tem efeitos distintos sobre a demanda dos diversos setores, e isso, consequentemente vai afetar mais ou menos os preços de cada um deles.

Com relação ao canal de crédito, por exemplo, setores cuja demanda está muito ligada ao crédito tendem a ter suas demandas mais reduzidas do que outros em que o crédito não é tão importante. O mesmo vale para o investimento: setores em que o investimento é mais dependente de financiamento via crédito tendem a ter sua demanda mais impactada, logo, maior efeito sobre os preços.

O canal preço de ativos, que se refere ao impacto dos juros sobre os preços das ações no mercado financeiro, terá efeitos setoriais distintos na medida em que as empresas investidoras destes setores tenham capital aberto (ou sejam detentoras de ações) e na medida em que o consumo de determinados bens sejam mais impactados pela riqueza financeira das famílias do que outros.

Já o canal do câmbio tende a afetar com mais intensidade os setores mais abertos ao comércio internacional e relacionados a mercadorias cotadas (precificadas) em mercados internacionais, ou seja, commodities. Na abordagem da inflação de excesso de demanda, a ênfase do canal cambial não segue o caminho direto, como ocorre, por exemplo, com os custos associados às commodities na Teoria do Conflito Distributivo e na validade da Teoria do Preço Único, mas atua muito mais pelo lado da demanda. A elevação dos juros, ao apreciar o câmbio e reduzir a competitividade dos produtos nacionais, afeta as exportações líquidas e reduz a demanda pelos produtos nacionais. A partir desse efeito sobre a demanda é que surgirão os efeitos sobre os preços setoriais.

Por fim, os efeitos setoriais do canal dos juros, que se refere à transmissão da variação dos juros de curto prazo para os de longo, dependeriam do impacto do custo de oportunidade do capital nos diversos setores, mas por serem mais difíceis de mensurar, são menos discutidos.

Em suma, podemos identificar dois aspectos da análise desagregada do fenômeno inflacionário na abordagem tradicional. O primeiro refere-se a diferenças setoriais do mercado de trabalho e do mecanismo de preços que obstaculizam o equilíbrio entre os mercados. Esses obstáculos tendem a perpetuar os desequilíbrios e pressões inflacionárias que poderiam ser eliminadas por excesso de oferta em outros setores. O segundo aspecto refere-se a um passo anterior à resposta das empresas, em termos de preços, ao aumento da demanda, ou seja, os efeitos diferenciados da política monetária sobre a demanda dos diversos setores decorrentes de suas funções consumo e investimento.

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