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2 ABORTO, SEUS CONTEXTOS E SEUS TEMPOS COMO EXPRESSÃO DE

3.1 O ABORTO EM MINHA VIDA

Escolhi investigar as múltiplas variáveis sociais e subjetivas relacionadas à decisão pelo aborto em Curitiba para entender como as mulheres de camadas médias percorrem o caminho por uma decisão feita em extrema situação de emergência. Ouvi os relatos dessas mulheres e suas experiências, para entender como se sentiram frente a um fato que eu tomo como doloroso e traumatizante, e o tomo assim somente do ponto de vista de um aspecto do seu conteúdo possível, e como apoio para pensar, dadas as circunstâncias em que é executado. Deste modo

persigo um dos principais objetivos que fez encantar-me cada vez mais com este tema, que é o de oportunizar que falem as mulheres que efetivaram o aborto, porque as vozes da sociedade, da Igreja, do Poder Judiciário podem ser ouvidas, e se essas vozes, mesmo quando discriminam e punem podem ser ouvidas, devemos também ouvir quem efetivamente abortou.

Como advogada, especialista em Direito Processual Civil e por alguns anos trabalhando na área de Direito de Família, percebi claramente a atuação concreta das questões de relações de gênero, poder e dominação nas demandas judiciais propostas na área Cível e de Família, relativas à guarda de filhos/as, pensões alimentícias, violências de toda sorte contra mulheres somente por serem mulheres, assim, a Sociologia responde a muitas dessas perguntas. Pela minha experiência, consolidou-se o entendimento de que essas relações de gênero, poder e dominação, pelas quais indiscutivelmente se passa, nas questões de corporalidades, cristalizam o aborto como um dos principais e menos visíveis meios de controle das mulheres e de seus corpos.

Como mulher que fez um aborto, e, que passou por experiências de abortos de amigas, interessei-me pelo tema. Ao nele adentrar percebi que as pesquisas feitas intensamente no âmbito das camadas populares, colocavam o aborto como problema capital de saúde pública. Senti frente a este quadro a necessidade de entender os abortos feitos nas camadas médias, sobretudo com o foco nas experiências relatadas pelas mulheres que o efetivam principalmente como decisão acerca do exercício de suas sexualidades, como projetos de vida profissional ou de ideias de maternidade nas quais elas se julgam não pertencentes. A partir dessas hipóteses, iniciei o Mestrado em Sociologia na UFPR, na linha de pesquisa Gênero, Corpo, Sexualidade e Saúde, com o objetivo de entender os processos reflexivos de tomada de decisão e os intermediadores da experiência de mulheres de camadas médias em Curitiba.

Foi imprescindível, portanto, pensar nas mulheres que pesquiso sem me colocar como uma delas, ainda que fazendo parte desse grupo de mulheres que abortou, ao mesmo tempo considerando que talvez elementos de minha própria experiência poderiam ser uteis para abordá-las e entrevista-las, e para melhor entender os conteúdos que emergem dessas narrativas, sem contudo reduzi-los à minha experiência.

Como Fernanda Tussi (2010) discute em sua dissertação, não há como escapar de questões acerca de nossa posição frente às pessoas, sobre eu e as mulheres entrevistadas e como isso aparece na pesquisa de campo. Assim, abertas as possibilidades que o campo me traria, coloquei-me em atitude reflexiva. Por um lado, a questão de já ter feito um aborto, e de ter participado de alguma forma dos processos de aborto das entrevistadas, poderia facilitar o alcance de determinados contextos, uma vez que é uma abordagem que envolve temas profundamente marcados por intimidades e necessita confiança entre as partes, antes, durante e depois dos relatos. Por outro lado, esta mesma posição poderia restringir o olhar em situação de entrevista, reduzindo-o ao meu próprio, e, assim, reduzir a produção deste trabalho a um trabalho situado a partir de quem o realiza.

Com esses dilemas reflexivos, e também no processo da pesquisa, durante o curso do Mestrado, aprendi que, para Michel Foucault, o corpo, juntamente com a história, é superfície de inscrição dos acontecimentos marcados pela linguagem, é uma estratégia histórica e discursiva (FOUCAULT, 1988). Ao articular corpo, poder, história e subjetividade, Michel Foucault permite-nos o desenvolvimento de uma perspectiva analítica que dá materialidade, ‘corporalidade’ a temáticas antes tidas como exclusivas do campo da psicologia ou da metafísica (FOUCAULT, 1988). Ao pensar o corpo como uma superfície em que se inscreve o poder, estamos nos inscrevendo na afirmação a respeito da instituição de discursos, práticas, representações e normatizações sobre os corpos e sobre discursos. Além desse aspecto, estou me inserindo no modo como os sujeitos são instituídos e instituem suas práticas, à medida em que se tornam eles próprios partícipes desses processos, assim sendo, também entendi que não seria possível separar em situação de entrevista minhas experiências das narrativas das entrevistadas, e minhas relações com elas dos contextos imbricados com essas narrativas.

Essas mesmas narrativas seriam, seguramente, tributárias da compreensão de corpos que são marcados e produzidos pela cultura (LE BRETON, 2010), assim como pela experiência reflexiva com moralidades, culpas, normatizações e projetos de si, que são expressões de socialização e, em boa medida, resultantes de diferentes processos culturais e históricos. Assim, eu me encontrei frente ao desafio de entender que os corpos não são apenas construções da cultura, mas são igualmente agentes da cultura (BORDO, 1997). Deste modo, estas mulheres com quem eu falava eram pessoas que analisavam suas decisões reprodutivas,

possuidoras de corpos e de sexualidades inseridas em dinâmicas culturais, marcadas pelos sistemas de um biopoder (FOUCAULT, 1979) como marca de um poder que se dá sobre a vida, que a governa; mas, por outro lado, exige decisões em contextos coercitivos.

Dessa forma, mesmo se elas se instituíram e eram instituídas por práticas culturais expressas em estratégias de institucionalização de moralidades, de projetos sobre filhos e de como educá-los, de visões de família e sobre corpos

‘saudáveis’, ‘patológicos’, ‘férteis’, ‘inférteis’, adequados ou não aos seus projetos pessoais, profissionais, familiares e/ou sociais. Elas também são sujeitos auto-reflexivos. Fui compreendendo que neste campo existem corpos que amam, ou seja, corpos ‘projetados’, moldados, para o desenvolvimento de uma performance amorosa, uma performance da mãe, a qual se desenvolve dentro de um modelo de inteligibilidade que é construído historicamente pelo que compreendemos do amor materno como essencializador do feminino e do cuidado. Constituiu-se aí uma performance de gênero, compatível com as ideias sobre o feminino (BUTLER, 1998).

Assim sendo, o aborto poderia ser entendido como agressão a esta institucionalização de poder, uma vez que, contrariando a lógica da maternidade como fim último da mulher, as entrevistadas deste trabalho tinham decidido, frente a certas circunstâncias de suas vidas, não serem mães, por diversos motivos, em diversas fases de suas vidas. Este sujeito mulher, que fazia de sua história em relação à decisão por interrupção da gravidez uma escolha, selecionava possibilidades, agindo de maneira estratégica, contrariamente à essencialização do amor materno como característica feminina. Elas tomavam decisões constituídas por posições, não eram portanto meros produtos da coerção dos valores e das práticas de maternidade. Suas decisões continham princípios organizadores de suas vidas e de modos pelos quais se tornavam viáveis à medida em que viviam seu processos de decisão e se auto percebiam ou montavam suas estratégias. Esse ponto do campo de pesquisa foi se revelando para mim à medida em que eu buscava entender o conteúdo do que me era narrado. Deste modo entende-se a afirmação de Butler:

Com efeito, esse eu não seria um eu pensante e falante se não fosse pelas próprias posições a que me oponho, pois elas, as que sustentam que o sujeito deve ser dado de antemão, que sustentam que o discurso é um

instrumento ou reflexão desse sujeito, já fazem parte do que me constitui.

(BUTLER, 1998, p.24).

Costumamos nos fixar na ideia de que a essencialização do amor materno se produz através dos modelos de maternidade como algo naturalizado da mulher, através dos séculos (BADINTER, 1985). Porém, a tensão do sujeito em relação à moral do aborto pode ser encaixada entre a “insistência quanto a uma especificidade feminina”, e isto continua sendo uma estratégia contra a dissipação da mulher dentro dos sistemas de poder da cultura ocidental contemporânea (COSTA, 2002). No campo da experiência sobre aborto não se trata de apagar as decisões tomadas pelas mulheres para dar peso e vazão à moral e à recriminação do aborto. Estas mulheres tomam decisões que não correspondem necessariamente à moralidade da criminalização.

Segundo Louro (2007), não é adequado supor um único modo de conhecer científico que deva “ser buscado por todos”. O modo como pesquiso e, portanto, o modo como conheço, e também como escrevo, está marcado por escolhas teóricas, políticas e afetivas; afetado por minha história pessoal como advogada, como mulher que abortou e que passou por diversas experiências de abortos de amigas.

A experiência narrada em situação deste campo é uma grande reflexão das mulheres entrevistadas sobre si mesmas. Considere-se neste ponto que as mulheres que praticaram aborto precisaram de um tempo para a tomada de decisão e para a busca de remédio abortivo, ou de uma clínica. Precisaram de acesso e informação a respeito do uso de medicamento ou de um local para realizar o abortamento. Estiveram frente aos conflitos com sua experiência de vida e sobre a decisão de abortar. Estes aspectos podem ter estado em tensão com o seu projeto de vida, com o seu desenvolvimento pessoal e moral, com o parceiro, com o fato de ser solteira, com o mercado de trabalho e com os estudos.

Estas questões me colocaram frente a outras como: que trajetórias são estas? Quem transita por estes processos de decisão? Quem consegue os contatos, os medicamentos? Quem e onde se consegue ter acesso às clínicas? Quem negocia as condições? Se é com misoprostol como ele é adquirido? Quem compra?

Onde compra? Quem consegue o medicamento, já que existe uma importante fonte de ilegalidade na circulação do mesmo?

Ao problematizar a construção do objeto dentro das ciências sociais alguns fatores são muito relevantes. O objeto não é dado, mas construído pelo cientista.

Nesse processo de construção é necessário levar em conta o contexto social do pesquisador do tema, as ideias e ideologias em seu tempo. A construção do objeto, ao contrário do que muitos defendem, não se dá de maneira neutra ou isenta de pré-noções, e o pesquisador é fruto do meio que o produz.

Por estes motivos quando o pesquisador encontra ou é ‘encontrado’ pelo seu objeto, encontra também algumas barreiras a serem transpostas. No meu caso, a primeira reside no fato de me propor a estudar algo que já está carregado de representações preestabelecidas socialmente, existe a grande dificuldade de transpor o senso comum, porém é importante lembrar o reconhecimento do senso comum enquanto conhecimento válido e as propostas de colocá-lo em diálogo com o conhecimento científico (SANTOS, 2003).

Assim, entendo ser parte do mundo social que pretendo estudar, descrever e compreender, e que portanto, como afirma Lenoir (1998) não tenho de saída os meios para estabelecer a relação de distanciamento normalmente associada à ciência: nomenclaturas, apurações, instrumentos de medição, documentos, arquivos. Por isso sou levada a perceber a objetividade como um termo de um processo ativo e metódico da construção do saber que consiste em acumular, classificar informações e fazer a crítica argumentada dos limites inerentes ao meu ponto de vista (LENOIR, 1998).

Sendo parte do mundo social que pretendo estudar, intento analisar o significado de pré-noções como o estigma, estereótipos, culpas, moralidades. O esforço por substituir as impressões particulares sobre um fenômeno por um corpo teórico de conhecimento está no campo da produção sociológica, segundo Lenoir (1998). O conhecimento é construído a partir de representações sociais, contexto histórico, categorias, estruturas metafóricas sobre aspectos sociais.

O processo decisório que faz com que mulheres das camadas médias em Curitiba, na contemporaneidade, optem pela prática do aborto, é o objeto de estudo desta dissertação, dialogando com os estereótipos de maternidade, e com as questões de autonomia e cidadania inerentes à decisão pelo aborto em um Estado democrático de direito, não esquecendo o fator criminalização do aborto pelo nosso Código Penal, o qual data de 1940.

Para Novaes, “a Sociologia que pretende estudar situações nas quais a conduta habitual do ator é questionada deve impor marcos para uma abordagem desse ator como sujeito de reflexão e de decisão.” (NOVAES, 2002, p. 16). Ainda

segundo essa autora, a partir do momento em que o sociólogo aborda os fatos sociais que se relacionam com fenômenos naturais ou sobrenaturais, nos quais o corpo e a alma estão em questão, fica difícil compreender as dimensões sociais dessas experiências, visto que o individual e o singular aí “aparecem em primeiro plano”. É nessa lógica que a presente pesquisa sobre o contexto decisório do aborto para as mulheres de camadas médias curitibanas se faz presente, no sentido de oportunizar as análises das narrativas do processo decisório e tudo que nele está imbricado, primordialmente individual e singular das experiências das mulheres entrevistadas.

As seis mulheres entrevistadas neste estudo realizaram seus abortos há mais de três anos, o que lhes garante que não podem mais ser processadas criminalmente, uma vez que já houve a prescrição do crime. A prescrição é a perda do direito de punir do Estado em virtude do decurso do tempo. Os prazos prescricionais aplicáveis às condutas definidas como crime no Brasil estão previstos no art. 109 do Código Penal: “Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, (...) regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime (...).”

No caso do aborto praticado pela própria mulher (ingestão do misoprostol, forma que algumas utilizaram), ou com consentimento da mulher (algumas procuraram clínicas para que médicos efetivassem), a pena máxima cominada é de três anos, se não vejamos:

Aborto Provocado pela Gestante ou com Seu Consentimento

Art. 124 - Provocar Aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Aborto Provocado por Terceiro

Art. 125 - Provocar Aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.

Art. 126 - Provocar Aborto com o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

Parágrafo único - Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

Forma Qualificada

Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.

Art. 128 - Não se pune o Aborto praticado por médico:

Aborto Necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no Caso de Gravidez Resultante de Estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o Aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

(CÓDIGO PENAL BRASILEIRO, grifo nosso).

Algumas delas efetivaram seus abortos há mais dez anos, sendo a história contada no presente. A pesquisadora tem consciência de que existe esse distanciamento temporal, o que será objeto de análise através de Norbert Elias (1998, p. 27), para quem “quando necessário, os homens utilizam um processo socialmente padronizado para comparar, por via indireta, processos que não podem ser diretamente cotejados”. No caso desta pesquisa, o distanciamento temporal faz parte do processo de elaboração e entendimento do contexto de decisão pelo aborto nas narrativas das mulheres entrevistadas.

Assim a construção do objeto passa por um questionamento acerca das categorias pré-construídas, para isto é relevante entender o meio social que gerou o objeto, localizar até que ponto o pesquisador está imerso nele. Desta feita, para obter uma melhor compreensão daquilo a ser estudado, é fundamental a adoção de métodos e técnicas que vão colaborar na localização e na tentativa de distanciamento das noções pré-estabelecidas e, com isso, propiciar uma melhor compreensão do problema proposto. A pesquisa de campo deste trabalho foi o momentos mais crítico no que diz respeito a por em prática essas observações (a utilização de técnicas e métodos para o distanciamento das pré-noções), sendo necessária minha auto vigilância constante.

Levo em conta os conflitos morais, éticos, as representações dominantes das práticas legítimas associadas à mãe, família, e intermediadores. Tomando-se em conta que aqui viso superar os limites da minha experiência – relativizando-a com dados estatísticos, comparações e generalizações, conforme já apresentado nos Capítulos 1 e 2. Dessa experiência posso extrair um certo número de saberes que são suscetíveis de serem completados, retificados e interpretados, a experiência das mulheres entrevistadas para esta pesquisa pode também ser tratada à maneira de uma informação, conforme me ensina Lenoir (1998). A experiência é parte do mundo social, deve ser considerada nessa qualidade, como objeto de análise: a adesão, a repulsa, a atrapalhação – que constituem sua coloração singular são características avaliáveis pela compreensão cientifica.

Além disso, considerando-se que as razões da escolha de um tema precisam ser analisadas à luz das próprias representações de mundo do

pesquisador, reporto-me à Foucault (1988), quando aponta que o saber dos homens sobre si mesmos vêm pautado e mediado por jogos de verdade específicos, relacionados com técnicas específicas, seja: a) tecnologias de produção, b) tecnologias do sistema de signos, c) tecnologias do poder, d) tecnologias do eu, que permitem aos indivíduos efetuar por conta própria ou com a ajuda de outros, certo número de operações sobre seu corpo, sua alma e seu pensamento, conduta ou qualquer forma de ser, obtendo assim uma transformação de si mesmo com o fim de alcançar certo estágio de felicidade. Assim ocorre em pesquisa.