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Os parceiros como intermediadores e destinatários de expectativas

4 ABORTO: TOMADA DE DECISÃO E REFLEXIVIDADE NAS FALAS DAS

4.1 OS INTERMEDIADORES DA EXPERIÊNCIA

4.1.1 Os parceiros como intermediadores e destinatários de expectativas

O homem, em situação de aborto, é invisível em razão da preeminência da mulher, segundo Ramírez-Gálvez (1999). O trabalho desta pesquisadora tem dentre seus propósitos, reconhecer o outro ator social no interior de uma dinâmica que envolve um sujeito masculino e feminino, sendo o primeiro excluído do campo, o que, segundo ela, pode estar prejudicando a compreensão de sua atuação no mesmo e, por sua vez, reproduzindo e delimitando dinâmicas específicas de poder nas quais se fixam categorias de poder dominador/ dominado. Aqui nesta pesquisa considero neste tópico a participação dos parceiros, pois ela veio espontaneamente nas falas de todas as entrevistadas.

Bom, além dos pais, o cara também... o cara, meu parceiro, nossa...

totalmente, ele influenciou de maneira direta minha decisão, direta. Eu tinha uma coisa muito clara na minha cabeça: não quero nenhum vínculo eterno com ele, não quero nenhum filho e nenhum vínculo eterno com ele. Nesse ponto eu acho que eu era bem consciente, sabe, e sobre o que você tinha perguntado antes, nossa, pensando agora, foi uma decisão bem reflexiva sim, foi. Eu tinha muito claro pra mim: olha, eu tenho problema com meus pais, não quero que eles saibam, tenho esse cara que é um lixo e não vai me trazer nada talvez me dê só problema... não dá. Numa dessa ainda ia ter que parar de estudar e tal, como eu via com minhas amigas, isso não era minha linha, na verdade, nunca quis parar de estudar. A gente...

conversou entre aspas, porque eu informei ele dessa decisão: preciso da tua ajuda pra dinheiro. (...) teve até um dia que ele me propôs ter essa criança. Você não tem essa opção, então ele nem discutiu mais comigo. Ele ficou um pouco afetado... durante alguns dias... eu não, eu particularmente eu não fiquei afetada, eu queria era me livrar desse problema (Andreia).

Quando Andreia diz que considerou de forma “reflexiva” a participação de seu parceiro na sua vida futura, ela está também considerando todos os planos futuros de estudo que ela tem, acreditando não ser possível ter um filho e continuar a estudar. Giddens (1993, 2002) usa a expressão projeto reflexivo do eu, que caracteriza bem essa busca de Andreia por uma auto-identidade dentro de um

processo intencional e refletido. Lembrando que Andreia abortou aos 15 anos e que, atualmente com 31 anos, terminou seu Doutorado na Itália, realizando seus planos.

Andreia exemplifica bem a negação através do aborto de viver o fato de que a maternidade parece ter-se constituído no determinante mais forte da identidade feminina, não ocorrendo o mesmo com a paternidade para os homens. Derivado disto, a contracepção, concepção e aborto aparecem basicamente como assuntos das mulheres que ficam sob sua responsabilidade:

Enquanto a paternidade depende de ligações que tem de ser declaradas ou provadas, a relação entre mãe e filho apresenta-se como um fato natural da vida (...) os pais podem na verdade abandonar os filhos desde o nascimento sem serem vistos como monstros desnaturados ou ameaças ao sistema social (...) o homem que abandona os filhos nega as implicações reprodutivas da relação sexual que os gerou (...) É culturalmente concebível, portanto, o homem desejar uma relação, mas não o filho que dela resulta. (STRATHERN, 1995, p. 312).

Chamou a atenção de Ramírez-Gálvez (1999) a importância do parceiro na decisão sobre o aborto. No entanto, a autora observou que mesmo assinalando-se sistematicamente tal relevância, estes dados foram ignorados ou subestimados na interpretação e discussão dos resultados. Esta ausência levou-a a refletir sobre as teorias e vieses dos enfoques que orientam as pesquisas neste campo, que focalizam o processo na mulher, elaborando um modelo baseado em relações de gênero para pesquisar aborto, sem a devida dimensão ao papel masculino. O que quero demonstrar é a posição das entrevistadas sobre seus respectivos parceiros, e como a posição deles em relação às gestações delas e o consequente aborto pode ter ou não influenciado a decisão, de maneiras direta e/ou indireta.

Naquela época, se ele tivesse dito: tenha, eu teria tido, eu acho. Contaria pros meus pais, enfrentaria eles, sei lá... mas teria o pai do filho comigo.

Hoje não, eu nunca, nunca mais faria de novo. Eu teria mesmo que o pai não quisesse, mesmo que minha mãe me odiasse... porque eu acho que tudo isso passa, uma hora essa histeria da família no começo passa, é só no começo mesmo, só ver por tantos outros casos de outras pessoas, que depois os pais aceitam numa boa o filho da filha... (Fernanda)

Nas entrevistas encontramos que a maioria dos parceiros das mulheres entrevistadas tiveram uma participação ativa na procura de informação acerca de onde fazer a interrupção ou conseguir o Cytotec. Somente o parceiro de Fernanda, conforme acima ela refere, foi quem não se posicionou, tendo ela que enfrentar uma viagem à São Paulo, onde reside o irmão do parceiro, para abortar em uma clínica

clandestina lá. Talvez possa arriscar a dizer que o encobrimento (GOFFMAN, 2004) desta experiência pelos homens esteja relacionado com uma menor disposição para falar destes assuntos em função da definição cultural do campo reprodutivo como essencialmente feminino. Ramírez-Gálvez (1999) indaga-se se essa não poderia também ser uma resultante de um envolvimento diferencial na experiência que se reflete no campo linguístico, em suas palavras: “qual seria o equivalente masculino à expressão feminina ‘eu fiz aborto’?”. Os parceiros destas entrevistadas, em sua maioria (em 4 dos 6 casos aqui analisados) auxiliaram na intermediação, seja do remédio, seja da clínica, e também pagaram os abortos realizados.

Ele que foi atrás de tudo, eu falei: eu não vou me incomodar com nada, eu não quero saber de nada, veja tudo você! Eu não vou fazer nada! (Sabrina)

Pelo trecho da entrevista de Sabrina logo depreende-se que a forma como aparece o homem no processo de interrupção é de maneira solidária à decisão delas, concordando em ir atrás do método abortivo; ou excluído do processo, como no caso de Carolina, cujo parceiro de quem ela engravidou sequer soube da gestação, reafirmando a percepção do aborto como sendo uma decisão pertencente à mulher.

Minha experiência prévia com o tema, permitiu-me observar a dinâmica que correntemente se segue após suspeitar ou confirmar uma gravidez não desejada ou inoportuna. De forma paralela ou posterior à decisão, inicia-se o processo de procura de informação ou de contato com pessoas que possam ter conhecimento acerca de métodos e/ou instituições ou centros que ofereçam um serviço ‘adequado’

às possibilidades particulares. O compartilhar da situação não só se limita à procura de informação, mas também, à procura de acompanhamento, conselho ou cumplicidade.

À exceção de Carolina, de quem foi o pai que pagou o aborto, de todas as outras foram os parceiros que pagaram os abortos. O namorado de Mariana à época, segundo ela, demonstrou arrependimento pelo aborto:

Nossa ele ficou muito triste, foi a hora que ele me viu ali no hospital, passando mal, sangrando, que eu acho que caiu a ficha dele sabe, e ele chorou muito, e disse que tava muito arrependido de não ter me impedido...

(Mariana)

Temos então aqui uma participação ativa do parceiro, que não ficou reduzida ao pagamento parcial ou total da intervenção. Os parceiros de Mariana e de Dorothea são os únicos que aparecem envolvidos e comprometidos durante todo o processo que incluiu desde a procura de informação e de recursos para efetivar a decisão, até o apoio posterior:

Dorothea. Eu não tinha grandes perspectivas de continuar aquele relacionamento por mais algum tempo. (...) Ele participou de tudo comigo, tudo, tudo, tava junto, ajudou e tal...

E. E depois do aborto assim, pra você superar o aborto, ou pra vocês superarem, como que foi?

Dorothea. Olha, não teve problema nenhum.

Algumas das mulheres afirmaram que a situação propiciou a consolidação de suas relações ou a proximidade com seus parceiros. Nos casos em que houve uma ruptura da relação foi mais comum, entre elas, interpretar tal fato em função de outros fatores que já estavam se manifestando, e que a situação do aborto teria colocado com maior clareza.

No caso de Mariana, a relação continuou por alguns anos após a interrupção, e ela avaliou inclusive uma melhora na qualidade da mesma. No entanto, ao indagar as implicações do aborto no término da relação, estabeleceu-se uma ligação com o aborto, mesmo que distante no tempo e meramente especulativa:

A gente ficou muito mais responsável, mais unido até, sabe... (...) depois que a gente terminou, eu só falava com ele pra perguntar como estava o filho dele – o parceiro teve filho com outra companheira – talvez se não fosse por tudo aquilo que a gente passou... hospital, psicólogo... talvez a gente estivesse ainda juntos, não sei, não posso afirmar. (Mariana)

Nenhuma das mulheres teve uma ruptura da relação imediatamente após o aborto; nos casos em que uma ruptura ocorreu, após um tempo, esta foi atribuída a outras razões, sendo a perspectiva de análise diferente. Fernanda nunca mais falou com o parceiro, desde quando ele soube da gravidez já não conversou mais com ela, mandava recados por uma amiga em comum; Andreia, Mariana e Dorothea continuaram por mais algum tempo ainda com os respectivos parceiros, Sabrina teve contato com ele enquanto ele intermediava a consulta para o aborto, e Carolina sequer contou a ele sobre a gravidez.

Têm-se que a participação dos parceiros como intermediadores para interrupção da gestação é fundamental para que a interrupção ocorra. A maioria das

entrevistadas demonstram ‘repassar’ a eles a responsabilidade do contato para fazer o procedimento, bem como as despesas financeiras para tanto.