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Jefferson Drezett

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define por vio- lência sexual qualquer ato sexual tentado ou consumado sem a concordância da vítima, imposto por meio coer- citivo ou intimidatório, com emprego da força física, da ameaça, de armas ou do temor psicológico (WHO, 2002). Ao mesmo tempo, a violência sexual é entendida como grave violação de direitos humanos e importante proble- ma de saúde pública, representando a extrema restrição da autonomia sexual e reprodutiva da mulher (MUGANYI- ZI et al, 2004).

Mulheres que sofrem crimes sexuais apresentam ris- cos expressivos de desfecho letal, traumatismos físicos, transtornos sexuais, doenças sexualmente transmissíveis (DST), hepatites virais, infecção pelo HIV e gravidez for- çada e indesejada (SCHEI, 1997). As consequências psi- cológicas incluem o transtorno de estresse pós-traumá- tico (TEPT), depressão, ansiedade, ideação suicida, dis- túrbios alimentares e do humor. Observa-se associação com maior consumo de álcool e outras drogas, compro- metimento da qualidade de vida, da relação com o corpo e dos relacionamentos interpessoais. Existe significativa relação entre violência sexual e sintomas de dissociação, congelamento e hipervigilância (SOUZA et al., 2012).

Contudo, entre tantas consequências da violência se- xual, a gravidez forçada se destaca pela magnitude e com- plexidade dos agravos psicológicos, familiares, sociais e médicos, muitas vezes sentida pela mulher como uma se- gunda forma de violência (FAÚNDES et al., 1998). Estima-se que a gravidez decorrente do estupro atinja entre 1 a 6% das mulheres em idade reprodutiva que não utilizam algum método anticonceptivo eficaz que independa do agressor (LATHROPE, 1998). Considerando a elevada prevalência de violência sexual contra mulheres jovens em todo o mundo,

termina-se com alarmante número de gestações decorren- tes de estupro a cada ano (BLAKE et al., 2015).

A Assembleia Geral das Nações Unidas estabelece que, nas circunstâncias em que o aborto não seja contrário a lei, os serviços de saúde devem estar preparados para assegu- rar que esse procedimento seja seguro e acessível para as mulheres (UNITED NATIONS, 1999). No Brasil, desde 1940 o inciso II do artigo 128 do Código Penal garante a não puni- bilidade da mulher e do médico que realizam o abortamen- to em caso de gravidez decorrente de estupro (DELMANTO et al., 2010). Nesses casos, a interrupção da gestação não se condiciona à solicitação de autorização judicial, ou apre- sentação do boletim de ocorrência policial ou resultado de exame médico-legal. Portanto, não procede a exigência desses documentos pelos serviços de saúde como condi- ção para o atendimento dessas mulheres (BRASIL, 2010).

Mesmo assim, a interrupção da gestação decorrente de estupro ainda é praticada de forma excepcional pelos serviços públicos de saúde brasileiros (DREZETT, 2013). Por falta de informação sobre seus direitos ou pela recu- sa injustificável dos serviços de saúde, muitas mulheres recorrem ao abortamento clandestino, quase sempre pra- ticado de forma insegura, colocando em grande risco sua saúde e sua vida (DREZETT, 2003).

Ao mesmo tempo, constata-se o descaso de parte dos gestores da saúde ao ignorar ou descumprir leis, políticas públicas e normativas sobre o abortamento. De fato, in- vestigação com mais de 700 cidades brasileiras constatou que quase 40% das Secretarias Municipais de Saúde não sabem sequer responder se contam com algum serviço organizado para realizar o abortamento em casos de vio- lência sexual. Em agravo, menos de 2% dos municípios declaram ter realizado um aborto legal nos últimos anos, mesmo afirmando, paradoxalmente, que contam com ser- viços de saúde para esse atendimento (CEMICAMP, 2006). Nos últimos anos, investigações têm buscado com- preender quem são as mulheres que realizam o aborto legal no Brasil e em quais circunstâncias elas o fazem. Em estudo com mais de 900 solicitações de interrupção da gravidez por estupro, encontrou-se predomínio de mulheres bran- cas, jovens, solteiras, católicas ou evangélicas, com pouca escolaridade, geralmente vitimadas tanto por agressores conhecidos ou aparentados como por desconhecidos. Qua-

se a metade dos casos busca o abortamento tardiamente, no segundo trimestre da gestação (PEDROSO, 2010).

Essa busca tardia pelo abortamento legal em casos de estupro expressa, em parte, os obstáculos enfrenta- dos pelas mulheres para identificar e acessar serviços de saúde que realizem o procedimento. Além disso, há evi- dências de que condições particulares de vulnerabilidade também retardam a busca pelo abortamento legal e segu- ro, como observado entre mulheres mais jovens ou com menor autonomia, entre portadoras de deficiência intelec- tual, naquelas ameaçadas de morte caso revelem o ocor- rido para a polícia, ou nas situações em que o agressor é aparentado ou próximo da mulher (BLAKE et al., 2015).

A segurança do abortamento também deve conside- rar seus efeitos para a saúde mental das mulheres. A cha- mada “síndrome traumática do abortamento” proposta há algumas décadas, buscava atribuir ao aborto induzido danos psicológicos ou psiquiátricos frequentes, graves e permanentes. No entanto, há suficiente evidência cientí- fica de que essa suposta “síndrome” não passa de mito, sem reconhecimento de sua existência pela comunidade científica internacional (STOTLAND, 1992). Por outro lado, acumulam-se evidências consistentes de respostas emo- cionais adequadas e favoráveis quando o aborto é realiza- do legalmente e com os cuidados necessários. Problemas emocionais que resultam do abortamento voluntário são excepcionais e menos graves ou intensos do que aque- les que decorrem da gravidez mantida forçadamente até o termo, contra a vontade da mulher (KERO et al, 2009).

Na gravidez decorrente de estupro esses aspectos são ainda mais evidentes. A interrupção da gestação não acres- centa componentes negativos para as relações interpessoais das mulheres, nem aponta arrependimento por sua prática (DREZETT et al., 2012).Outro aspecto relevante diz respeito à motivação e responsabilidade da mulher frente à decisão de interromper a gestação que decorre do estupro. Em estudo com mulheres brasileiras que recorreram ao aborto obser- vou-se que as principais motivações se relacionaram com o extremo repúdio pela gravidez forçada pela violência, com a violação do direito fundamental de escolha da maternidade, ou com o temor de consequências sociais ou psicológicas futuras para o recém-nascido caso mantivessem a gestação até o termino (DREZETT et al., 2012).

Embora as últimas décadas tenham sido marcas por inegáveis avanços na construção de políticas públicas para a atenção de mulheres em situação de gravidez decorren- te da violência sexual, ainda não estão resolvidos graves problemas de gestão no setor saúde para garantir essa as- sistência. Tampouco se deixou de enfrentar a forte resis- tência de setores conservadores da sociedade que desejam que a mulher seja obrigada a manter a gestação decorrente de estupro, ou que preferem sua morte ao aborto em caso de risco para a gestante. São vários os Projetos de Lei que tramitam no Congresso Nacional requerendo a suspensão da norma técnica do Ministério da Saúde ou propondo ou- tras medidas que obstaculizem ou impeçam o acesso das mulheres ao aborto legal e seguro. Longe da coincidência, quase todas essas propostas partem de deputados da cha- mada “bancada religiosa” (DREZETT, 2013).

Outro exemplo recente dessa resistência ocorreu com a Lei nº 12.845, sancionada em 2013, que estabelece o dever dos hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) de pres- tar atendimento emergencial, integral e interdisciplinar para pessoas que sofrem violência sexual. A Lei nº 12.845 garante a assistência em saúde qualificada e humanizada que previna ou reduza os danos decorrentes da violência sexual. Define ações, como o tratamento de lesões físicas, amparo médico, psicológico e social; apoio para registrar a ocorrência junto às autoridades, a prevenção da gestação forçada e indesejada, e a profilaxia das DST. Além disso, estabelece o dever de oferecer suficiente informação para a mulher sobre seus direitos e orientação sobre serviços e formas de assistência disponíveis (BRASIL, 2013).

Apesar do sentido essencialmente humanitário, vários grupos religiosos exigiram veto para vários pontos da Lei nº 12.845. Criticaram duramente a anticoncepção de emer- gência por considerá-la abortiva, mesmo sem qualquer evidência científica desse suposto efeito, propondo que se negasse o medicamento, o que obrigaria as mulheres a engravidar do agressor (DREZETT, 2013). Embora a ques- tão da interrupção da gestação decorrente do estupro se- quer seja mencionada no texto da Lei, fundamentalistas religiosos alardearam que se estaria estimulando e facili- tando o aborto no país.

Os mesmos setores conservadores requereram que os serviços de saúde fossem impedidos de orientar as mulhe-

res sobre o direito ao aborto legal, com a retórica de que isso caberia exclusivamente à polícia. Essa lógica, no entan- to, oculta o misógino entendimento de que mulheres fazem falsa alegação de crime sexual e, portanto, precisam ser in- vestigadas e interrogadas pela polícia como suspeitas ou criminosas (DREZETT, 2013). Entretanto, não há violação da ética ou do ordenamento jurídico em orientar essas mulhe- res sobre suas alternativas frente à situação. A medida é cla- ramente posta na normativa técnica do Ministério da Saúde (BRASIL, 2011). Além disso, o Comitê de Ética em Reprodu- ção Humana e Saúde da Mulher da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) entende como dever do médico informar à mulher sobre todas as opções disponí- veis, incluindo-se aquelas que eventualmente o médico se negue a praticar por objeção de consciência (FIGO, 2009).

Apesar dos avanços, o legítimo direito de interromper a gestação que decorre do estupro ainda não está, na prá- tica, garantido pelo Estado para todas as mulheres bra- sileiras. Essa situação viola acordos e tratados interna- cionais que protegem os direitos humanos e os direitos reprodutivos das mulheres, na medida em que o Brasil é signatário desses documentos. O abortamento clandesti- no e inseguro persiste como uma das principais causas de mortalidade materna no país que, indiferente à gravidade do problema, se mostra incapaz de alcançar o quinto Ob- jetivo de Desenvolvimento do Milênio29.

referências bibliográficas

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