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Dworkin explicita essa constatação na

Aborto: problema legal ou moral?

4 Dworkin explicita essa constatação na

seguinte passagem: “A revisão judicial pode muito bem ser menos necessária em países onde a maioria estável tem um forte histórico de proteção da legitimidade de seu governo por identificar corretamente e respeitar os direitos dos indivíduos e das minorias. Infelizmente, a história revela poucas dessas nações, mesmo entre as democracias maduras” (DWORKIN, 2011, p. 398).

tais ou não governamentais devem ser organizadas, para via- bilizar, da maneira mais justa possível, o exercício da cidada- nia moral em igualdade de condições (RAWLS, 2005, p. 338).

A Suprema Corte dos países democráticos pode de- senvolver melhores estratégias argumentativas para es- capar ao domínio das maiorias, que se mostram mais arti- culadas no avanço de suas posições na esfera da delibera- ção coletiva. Nesse contexto, a atuação da Suprema Corte na garantia dos direitos individuais tem conotação demo- crática no sentido da inclusão dos interesses das minorias (RAWLS, 2000, p. 182 e 284). Se a Suprema Corte define a moldura do direito ao aborto, a partir da aplicação de cláu- sulas constitucionais, em um país cuja legislação repudia sua admissibilidade moral, está, em realidade, incorpo- rando direitos minoritários ao esquema constitucional de proteção igual da liberdade de consciência. Ninguém há de negar que os direitos das maiorias contrárias à práti- ca do aborto estão suficientemente protegidos pelas deci- sões legislativas. Por isso, a revisão judicial atende à ne- cessidade de proteção das minorias que defendem a liber- dade de escolha da gestante, e, efetivamente, a proteção das mulheres que desejam realizar o aborto.

Rawls defende a atuação da Suprema Corte como sen- do o principal exemplar de efetivação do modelo de uma razão pública, considerando o apelo e o comprometimento dos juízes com as restrições estabelecidas na carta de di- reitos fundamentais. Nessa medida, a democracia, na pers- pectiva constitucionalista, caracteriza-se por um dualismo sistêmico. De um lado, o poder legislativo ordinário, e de outro, o poder constitucional, de maior hierarquia norma- tiva. Ao aplicar os pressupostos da razão pública, a Cor- te impede que os preceitos constitucionais sejam violados pelas leis ordinárias. O padrão da razão pública impõe, ain- da, que os juízes deixem de invocar seus valores pessoais ou quaisquer visões morais particulares enquanto funda- mentos de suas decisões. Ao afirmar, aqui, o protagonismo da Suprema Corte, Rawls solidifica a ideia de que a razão pública tem por conteúdo uma concepção política de justi- ça que atribui caráter prioritário a determinadas liberdades básicas, expressamente ou implicitamente consignadas na Constituição (RAWLS, 2005, p. 223, 232-3 e 236).

No tocante ao aborto, Rawls explica que a questão deve ser solucionada à luz de três valores políticos: o “de-

vido respeito” (“due respect”) pela vida humana, a ne- cessidade da reprodução da sociedade política, inclusive da instituição familiar, e a igual consideração da cidada- nia das mulheres. O esquema traçado por Rawls sustenta que qualquer doutrina compreensiva do bem que exclua o direito das mulheres ao aborto, no primeiro trimestre da gestação, não é razoável, porque, nesse estágio, o va- lor político da igualdade das mulheres sobrepõe-se aos outros valores. Negar-lhes esse direito seria incompatível com a ideia de razão pública. Afirma, ainda, que um racio- cínio razoável pode conceder esse direito à mulher, mes- mo após tal estágio, em determinadas hipóteses (RAWLS, 2005, p. 243-4, nota 32).

Observe-se que Rawls situa a análise do tema na pers- pectiva de um modelo de interpretação constitucional, construído por meio da utilização das categorias da liber- dade e da igualdade na qualidade de padrões originários da garantia das liberdades básicas. O autor, mais adiante, no mesmo texto, acrescenta que a regulamentação do di- reito ao aborto envolve a definição do âmbito central de proteção da independência ética, no sentido de determi- nar o que está ou não incluído nesse espaço individual de formação de valores morais. A liberdade de consciência é, assim, uma dimensão que integra o valor político da igual cidadania das mulheres. Isso é o mesmo que dizer que a conversão do direito ao aborto de um direito puramente moral em um direito legal tem por fundamento a garantia institucional da “igual liberdade de consciência”, seja ma- joritária ou minoritária no cenário politico (RAWLS, 2000, p. 351 e 366-7).

A validade da lei que proíbe ou restringe o aborto de- pende de uma interpretação moral da Constituição, haja vista que seus preceitos não garantem o reconhecimento da totalidade dos direitos morais, e sequer explicam o que são esses direitos perante a lei (DWORKIN, 1978, p. 186). Pode-se situar o direito ao aborto na qualidade de um di- reito à liberdade de consciência, na medida em que o re- gime democrático exige que a sociedade organizada con- ceda um espaço privativo para a adoção de convicções éticas na solução de diversos problemas afetos ao plane- jamento da vida. Para Dworkin, essa concessão é a base normativa da liberdade religiosa, que tem por matriz a li- berdade de consciência (DWORKIN, 2006, p. 134).

Os tribunais superiores precisam aperfeiçoar uma in- terpretação convincente do significado material dessas cláusulas fundamentais. Trata-se de uma atuação herme- nêutica que deve refletir, em primeiro lugar, o que repre- senta a “fidelidade” (“fidelity”) das leis ordinárias à Cons- tituição. Essa questão antecede a pergunta relativa ao melhor arranjo institucional a ser estabelecido para tornar efetivos os dispositivos constitucionais. Não importa tan- to colocar em tensão o Poder Legislativo e o Poder Judi- ciário, como se fosse a essência do debate determinar a qual desses poderes atribuir a autoridade para dar a últi- ma palavra sobre um assunto ou outro (DWORKIN, 2006, p. 120 e 122-3).

O sistema jurídico deve enfrentar a demanda pelo re- conhecimento do direito ao aborto, buscando delimitar em que grau tal direito é fundamental o bastante para en- quadrar-se na lista das liberdades básicas (DWORIN, 2006, p. 123). É oportuno perguntar: qual espécie de legislação é compatível com as cláusulas da igual proteção perante a lei e da liberdade de consciência? Essa compatibilida- de está preservada, mais adequadamente, na legislação que proíbe o aborto, na lei que o restringe ou na lei que o permite de forma mais liberal? Parece que a posição inter- mediária, que legitima determinadas restrições à prática do aborto, sem proibi-lo, ao menos nos estágios iniciais da gestação, é mais equilibrada e baliza todos os interes- ses envolvidos, os da mulher, os do feto e os interesses interventivos do Estado. Nesse caso, quais são as restri- ções que apresentam consistência com aquelas cláusulas constitucionais? Depois de empreender essa reflexão, aí sim, em um segundo momento, é necessário analisar se o governo está implementando, através de seus legisla- dores, o compromisso com a supremacia da Constituição, em relação à autonomia procriativa, e qual o nível de ati- vismo judicial é necessário para compensar o descompas- so legislativo no trato da matéria.

A regulamentação do aborto por intermédio da “adjudi- cação constitucional” (“constitutional adjudication”) é tam- bém defendida por Reva Siegel, levando-se em considera- ção que as Cortes, normalmente, buscam uma integração entre o conteúdo dos princípios constitucionais, a fim de evitar a alegação de estarem atuando de forma discricio- nária. Assim, as Cortes não estão impondo valores desco-

nectados do sistema de princípios e regras, pois utilizam técnicas e testes sustentados em diretivas interpretativas, com o intuito de introduzir, na política, as exigências vei- culadas pelas normas constitucionais. Saliente-se que essa proposição é endossada pela doutrina da força normativa da Constituição, que postula a positividade do direito cons- titucional. Daí se extrai a vinculação do legislador aos prin- cípios constitucionais e, ainda, o padrão de sua aplicabilida- de imediata aos casos concretos, que, por sua vez, sustenta o decreto de inconstitucionalidade das leis incompatíveis com os direitos fundamentais (SIEGEL, 2014, p. 14-15).

Os juízes precisam testar a interpretação que repu- tem a mais correta, para um dado caso, relacionando-a às decisões precedentes da comunidade política. Não bas- ta computar quais as decisões corroboram uma ou ou- tra possível interpretação da regra jurídica; é primordial averiguar, sobretudo, quais as decisões se apoiam, com maior importância, nos princípios constitucionais, cuja precedência é passível de ser afirmada com suporte em uma teoria política coerente, apta a justificar o sistema de justiça como um todo. Pode-se chegar à conclusão de que as decisões políticas devem ser respeitadas, em grande parte dos casos e, ao mesmo tempo, admitir que tal pre- sunção perde sua consistência, chegando até mesmo a ser eliminada, em algumas circunstâncias, quando “sérios direitos constitucionais estão em questão” (DWORKIN, 1986, p. 245-9 e 257).

Entende-se que o conceito de direito fixado pelo cons- titucionalismo democrático se distingue do conceito deri- vável da democracia majoritária exatamente pela centra- lidade reflexiva no método analítico acima esboçado. O poder atribuído aos juízes de, em sede de revisão judicial, modificar os julgamentos de “moralidade política” endos- sados pelos legisladores não é, por definição, “antidemo- crático” (“antidemocratic”) (DWORKIN, 2006, p. 133). Essa autoridade tem seus limites, e deve circunscrever-se em uma interpretação da lei que não importe necessariamen- te em sua reversão integral.

No caso do aborto, não há como pacificar a controvér- sia sobre os interesses da vida pré-natal sem assumir uma concepção particular no tocante aos limites de sua prote- ção legal. A lei que criminaliza o aborto contém em si uma visão moral sobre a tutela do embrião, determinada pela

opinião da maioria, que é igualmente uma visão particu- lar. A interpretação dessa lei envolve exatamente a análise do acerto ou desacerto da compreensão do valor da vida por ela endossado, do ponto de vista das premissas da de- mocracia coparticipativa, que leva em conta os direitos das pessoas que adotam visões de bem minoritárias. Ampliar a proteção do direito ao aborto, para alcançar outras hipóte- ses além das que são permitidas pela legislação, pode ser uma exigência da democracia quando se vislumbra a ne- cessidade da efetivação de um direito moral arguível contra o Estado. A perspectiva da extensão do direito ao aborto não se contrapõe à esfera da legalidade, ao contrário, refor- ça a importância da lei em sua intersecção com os princí- pios fundamentais (DWORKIN, 1978, p. 90, 124, 147 e 149).

Regra geral, a legalização do aborto, no âmbito do di- reito constitucional, se efetiva através do alargamento das hipóteses de sua admissibilidade. O decreto de rejeição da norma punitiva se operacionaliza em parâmetros rela- tivos. As restrições ao aborto podem ser consideradas in- constitucionais, mas não em sua integralidade. Imagine- se a hipótese em que o poder jurisdicional, ao analisar a validade de uma lei que proíbe o aborto, salvo em situa- ções muito excepcionais, proferisse uma decisão liberan- do sua realização durante todo o período gestacional. Se assim o fizesse, a Corte estaria ultrapassando os limites objetivos impostos pela lei à sua legítima atuação. Mas, se os juízes decidem, diferentemente, declarar que o aborto, por ser um direito fundamental derivável de determinados preceitos constitucionais, pode ser praticado desde que a mulher faça essa escolha até determinado estágio da gra- videz, estão, na realidade, preservando a estrutura da lei que o proíbe. A proibição permaneceria válida durante o período gestacional mais avançado, em face do estágio da evolução da vida nascitura.

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