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embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana

E NIO C ABRAL E SEUS DETRATORES

As provas materiais não seriam suficientes, com certeza, para garantir a prisão de Enio; por esse motivo foram arroladas algumas testemunhas que teriam a função de comprovar sua atuação comunista na cidade, sobretudo na organização dos trabalhadores e no incitamento dos mesmos contra a ordem vigente. Um testemunho-chave no processo foi o do diretor do Ginásio Estadual Candido Mariano, onde ele atuava como professor de história e sofreu várias advertências por parte dos colegas, dos alunos e do próprio diretor em função de sua maneira peculiar de ensinar história. Por se tratar de um depoimento que pode nos esclarecer sobre sua atuação docente, que se chocava com a visão daquela sociedade, apresentamos um trecho abaixo:

(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 25)

Nesse trecho, o diretor confirma as acusações contra o réu e procura se eximir da responsabilidade de ter contratado um comunista; ao mesmo tempo demonstra sua aversão a tais ideias e imputa a seu antecessor a responsabilidade de ter contratado o professor. Seu depoimento também é esclarecedor sobre as práticas docentes de Enio, que, provavelmente em face de sua concepção de mundo partilhada por outros membros do extinto PCB, utilizava as aulas para conscientizar seus alunos da possibilidade de uma transformação

social. No entanto, a leitura que a sociedade e os militares fizeram dessa prática foi a de que ele subvertia a ordem e, portanto, deveria ser silenciado. Como afirmei anteriormente, a abordagem de alguns pontos cruciais na conjuntura social brasileira, tais como a reforma agrária, a exploração dos trabalhadores, a possibilidade uma transformação social no país, acabou por levar os alunos de Enio a denunciá-lo para o diretor. Tal ato pode ser facilmente explicado se pensarmos que o Colégio Cândido Mariano foi à época e durante toda a década de 1960 considerado o melhor da cidade e, consequentemente, o reduto de uma elite ruralista e conservadora.

(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 25)

Aparece nesse trecho do depoimento do diretor uma questão importante acerca das concepções divergentes de educação e de história que Enio e ele possuíam. Na sua fala aparece implicitamente a noção de que a educação deveria servir para ajustar os alunos à realidade e à ordem capitalista vigente, já que fica claro que o mesmo concorda com as palavras dos militares quando afirmavam que o professor fugia dos temas previamente definidos pelo programa da escola para discorrer sobre “assuntos esquerdistas”, a saber: reforma agrária, revoluções sociais e comunismo. Assim, ao que parece o diretor e os militares partilhavam de uma concepção positivista de mundo, educação e ensino, o que os levava a entender as reflexões sobre temas da conjuntura brasileira e suas contradições como nocivas àquela sociedade. No entanto, se analisarmos as leituras feitas por Enio e sua ligação com o PCB, inferimos que em sua concepção de mundo, o ponto de partida para se

pensar educação e ensino se volta para o marxismo, que preconiza uma educação capaz de transformar a realidade. Assim, as reflexões sobre aspectos contemporâneos da sociedade em que viviam era algo inerente à sua práxis como educador marxista, que via na educação um espaço primordial para a conscientização dos alunos/cidadãos com os quais convivia. A perspectiva de se pensar a educação articulada com a realidade social dos indivíduos e como espaço de disputas contraditórias em torno de concepções de mundo já foi apontada por José Claudinei Lombardi:

No meu entendimento, para o marxismo, não faz o menor sentido analisar abstrata e a-historicamente a educação, pois esta é uma dimensão da vida dos homens que, como qualquer outro aspecto da vida e do mundo existente, se transforma historicamente, acompanhando e articulando-se às transformações do modo como os homens produzem a sua existência. A educação (e nela todo o aparato escolar) não pode ser entendida como uma dimensão estanque e separada da vida social. Como qualquer outro aspecto e dimensão da sociedade, a educação está profundamente inserida no contexto em que surge e se desenvolve, também vivenciando e expressando os movimentos contraditórios que emergem do processo das lutas entre classes e frações de classe (LOMBARDI, 2011, 348).

Outro traço assinalado no depoimento do diretor dizia respeito ao fato de não ter impedido Enio de divulgar suas ideias durante as aulas. Segundo ele, não era possível fazer nada a respeito pelo fato de o mesmo ser professor catedrático, só podendo ser demitido por meio de processo administrativo. Esse aspecto nos parece importante, pois leva a compreender como certos intelectuais têm a perspicácia de se infiltrar em espaços institucionais, conservadores e atuar nas brechas possíveis para empreender uma mudança a partir de dentro. Como aponta Lombardi,

(...) o educador precisa romper com as pedagogias escolares articuladoras dos interesses da burguesia e vincular sua concepção e sua prática a uma perspectiva revolucionária de homem e de mundo. Não se trata simplesmente de aderir a uma concepção científica de mundo e seu poder desvelador da realidade, mas em assumir na teoria e na prática, isto é, na práxis, uma concepção transformadora da vida, do homem e do mundo (LOMBARDI, 2011, p. 364).

As palavras de Lombardi expressam, provavelmente, a visão que Enio tinha de sua profissão, ou seja, a partir dos relatos de suas práticas, consideradas insubordinadas na escola e na sociedade, demonstrava seu compromisso com uma educação transformadora.

Nesse sentido, o fato de ser ocupante de um cargo de professor catedrático vitalício lhe garantia a possiblidade de resistir à visão burguesa de educação, pelo menos até que os militares tomassem o poder e instituíssem um novo aparato legal que feria direitos anteriormente adquiridos. Essa certa autonomia que Enio possuía também foi lembrada como negativa pelo diretor da escola, que se queixava do fato de não poder puni-lo de forma mais rigorosa em função da legislação existente até aquele momento, conforme transcrevemos abaixo:

(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 25)

Não foi só o diretor da escola que depôs contra Enio; alguns alunos foram convocados pelos militares para prestar informações sobre a conduta do mesmo como professor, bem como sobre os possíveis desvios cometidos. Dentre eles destaca-se o depoimento de um aluno, José Carlos Nery, de 20 anos de idade, que compareceu ao quartel na ocasião do IPM. Perguntado se teria sido aluno do referido professor, afirmou:

(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 26)

Incitado pelos interrogadores, ele passa a esclarecer a prática do professor, que possuía abordagens didáticas pouco convencionais para aquela época ao desafiar seus alunos a se questionarem sobre temas que perpassavam suas vidas, mas que geralmente não eram discutidos pela maioria dos professores. Buscava expor seu ponto de vista para conscientizá-los, inclusive solicitando que estendessem tais discussões a seus pais, mas não obteve grande êxito, pois acabou denunciado por seus próprios alunos. Quando perguntado sobre quais outros assuntos Enio abordava durante as aulas, o jovem respondeu que ele sempre defendia a reforma agrária, tendo até mesmo solicitado alguns trabalhos sobre o tema, conforme o trecho que apresentamos a seguir:

(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 30)

Em outro trecho da redação do aluno Adão Flores, podemos perceber que Enio Cabral conseguia exercer certa influência sobre os alunos, já que apesar de assumir, em parte, o discurso do vazio demográfico, conseguia fazer algumas críticas ao sistema de distribuição de terras no Brasil, que segundo ele era dominado pelos grandes latifúndios improdutivos.

(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 30)

Adão Flores conclui seu texto afirmando que a reforma agrária era necessária no Brasil, pois o tornaria um país mais rico e digno de seus filhos.

(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 31)

Nery não foi o único aluno a entrar em confronto com o professor; outros também entravam em debate com ele, principalmente as moças, quando o mesmo questionava a

existência de Deus. Suas palavras escandalizavam e prejudicavam o desenvolvimento da classe, afirmava Nery.

Os pais de alguns de seus alunos também foram chamados a depor sobre a atuação do professor. Um deles foi Eustorgio de Andrade Brito, criador de gado em Aquidauana, que afirmou que suas filhas faziam constantes reclamações sobre os assuntos tratados em sala de aula:

(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 28)

Novamente nota-se no trecho acima o descontentamento do pai e dos alunos com os temas abordados, que extrapolavam a dimensão programática da disciplina e apontavam para sua postura social. Enio acreditava numa educação transformadora que se projetasse para fora dos muros escolares e pudesse atingir também os pais e demais sujeitos de uma determinada sociedade no despertar de uma consciência revolucionária. Por outro lado, o pai em questão possuía uma visão sobre a educação segundo a qual ela deveria manter a estabilidade social sem grandes transformações, além de permanecer distante de temas como o comunismo, a reforma agrária e as teorias revolucionárias. No pensamento do pai encontramos uma mentalidade fatalista, que entendia o capitalismo como a única e

definitiva saída para a resolução dos problemas da humanidade. Dessa forma, a educação teria a função apenas de transmitir os espólios dos vencedores e não permitir a transformação do homem. Mészaros expõe com clareza essa perspectiva da educação:

A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu – no seu todo – ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alternativa à gestação da sociedade, seja na forma “internalizada” (isto é, pelos indivíduos devidamente “educados” e aceitos) ou através de uma dominação estrutural e uma subordinação hierárquica e implacavelmente impostas (MÉSZAROS, 2008, p. 35).

Era precisamente contra essa ordem instituída pela ótica capitalista que o professor Enio se insurgia através de sua prática pedagógica, que buscava a construção do conhecimento por meio da análise da realidade concreta que circundava seus alunos. Talvez seja esse o motivo de sua prática educacional ser tão contestada pela sociedade mato- grossense, uma vez que esta, em virtude de sua tradição coronelista e mandonista, certamente acreditava numa educação positivista que levasse à conservação dos valores tradicionais da ordem vigente naquele contexto de autoritarismo.

Pelo que pudemos apurar de seu comportamento como docente, percebemos que Enio transformava a própria realidade e suas contradições em matéria para suas reflexões sobre o processo histórico, recorrendo, portanto, a temas como a reforma agrária, o comunismo e possibilidade de uma revolução no país. Isso nos leva a crer que muito provavelmente a inspiração para sua práxis pedagógica vinha da orientação do partido comunista, sintetizada por Favoreto:

Em síntese, o PCB, em seu período inaugural, não atribuiu nenhuma tarefa exclusiva à escola, mas se designava a ele mesmo poderes superiores, tanto na divulgação da idéia comunista, na doutrinação das massas como na condução do processo histórico. Com essa concepção de educação partidária, apesar de não encorajar seus militantes ao debate sobre o ensino, diante da demanda escolar, não deixou de defender a escola como direito, como uma possibilidade de formação adequada ao desenvolvimento da industrialização e da democracia brasileira. No conjunto do movimento reformador pedagógico, os militantes comunistas incorporaram a concepção de educação laica, científica e ativa e, semelhantemente aos escolanovistas, criticaram o método repetitivo e a

cultura literária, livresca e religiosa que acreditavam ser predominante no período (FAVORETO, 2008, p. 220).

Como afirma a autora, o PCB não possuía uma política educacional clara, mas fornecia algumas diretrizes para se pensar a educação como um fator de transformação social. A documentação por nós analisada demonstra que a concepção defendida por Enio vai ao encontro da perspectiva do partido, uma vez que sempre fugia das aulas tradicionais e repetitivas, instigando seus alunos ao debate sobre os problemas contemporâneos que afetavam não só o país, mas também a conjuntura internacional. Além disso, buscava afirmar uma educação laica capaz de permitir a transformação social e promover a igualdade entre os indivíduos. Muito provavelmente foi sua capacidade de orador hábil no convencimento de estudantes e operários que chamou a atenção dos militares e dos coronéis de Aquidauana, mesmo antes da deflagração do golpe. Isso se torna claro quando observamos que Enio foi preso no dia 04 de abril de 1964, quatro dias após o golpe, juntamente como outros militantes que o ajudavam na organização/sindicalização dos trabalhadores da região. O que mais nos impressionou na leitura do processo foi o fato de ele, ao contrário de outros militantes, não ter capitulado e ter se mantido firme em sua condição de militante comunista e defensor da revolução.

A influência do pensamento do PCB era bastante forte na leitura de mundo e de educação que o professor possuía. Isso fica esclarecido quando de seu interrogatório, em que foi perguntado se discutia com as crianças assuntos como a reforma agrária e as reformas de base, e ele respondeu sim, afirmando que isso estava totalmente dentro do programa da disciplina de História. Enio também demonstrava ser bastante hábil para escapar de situações que pudessem incriminá-lo perante os militares. Exemplo disso ocorreu quando os interrogadores lhe perguntaram sobre sua prática na sala de aula. Questionado se admitia que não deveria tratar de assuntos que ainda estavam em discussão no Congresso, ele admitiu que sim, mas justificou que fazia isso com o objetivo de atualizar os conhecimentos históricos a serem repassados a seus alunos. E ainda argumentou que tratava desses temas para desviar a atenção de leituras prejudiciais a formação moral, “tais como: Gibi, Meia Noite, X-9 etc.”(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 42).

Em nenhum momento o professor negou suas ações perante os militares; quando lhe perguntaram se determinava que seus alunos fizessem trabalhos escritos e debates sobre a reforma agrária, respondeu que sim, fazia isso desde o ano de 1963 para os alunos da primeira e da segunda série ginasial e que não via nenhum problema em tais atos, pois eram problemas pertinentes à conjuntura brasileira e, como professor de história, ele teria de abordá-lo e o fazia de forma imparcial, demonstrando certo humor, mesmo numa situação de grande pressão.

O interrogatório também objetivava investigar as práticas de leitura de Enio, que revelou ser um leitor de obras sobre o comunismo e a conjuntura da União Soviética. Sobre isso há um detalhe interessante que revela que, apesar de viver numa cidade distante dos grandes centros, nos quais tanto a ditadura quanto o comunismo tiveram maior repercussão, ele demonstrava acompanhar os debates internos do PCB. Isso se torna claro quanto observamos que Enio era leitor da revista Novos Rumos e, provavelmente por este motivo, dava declarações muito parecidas com as do comitê central do PCB no que se referia aos rumos de uma possível revolução socialista no Brasil, como esta, retirada de seu depoimento dados aos militares em abril de 1964:

(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 42)

Como chamei a atenção anteriormente, Enio se mostrava bastante convicto sobre sua condição comunista. Em seu depoimento, afirmou que passou a trabalhar para o partido comunista em 1953 e que naquele período, juntamente com outros companheiros, liderava o comitê dirigente de Aquidauana. Ao final de seu depoimento, quando inquirido se possuía provas de sua inocência, respondeu que possuía apenas sua palavra como prova e o desejo de melhorar as condições de vida do povo brasileiro.

capítulo II

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