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3 SOBRE AS SEMENTES DIGITAIS: TRAÇADOS E PERSPECTIVAS NA

3.1 Abrindo a caixa-preta das sementes digitais

Incerteza, trabalho, decisões, concorrência, controvérsias, é isso o que vemos quando fazemos um flashback das caixas-pretas certinhas, frias, indubitáveis para o seu passado recente (LATOUR, 2000, p. 16).

Ao pensarmos a respeito da vasta e complexa história da internet45,

podemos imaginar a evolução do processo de constituição dos diversos métodos de “trocas de arquivos” como um capítulo bem especial dentro dessas narrativas. E se ainda nos debruçarmos sobre um subcapítulo desta história, podemos perceber que um dos momentos mais singulares destes acontecimentos irrompeu (em meados de 2001) durante o desenvolvimento e lançamento do protocolo BitTorrent, o primeiro

software lançado na internet em código aberto com o “sistema cyberagrícola

torrente”46 – denominação proposta por nós, mas próximo da ideia original concebida

pelo seu criador, o norte-americano Bram Cohen47 – capaz de transformar qualquer

arquivo de computador em sementes que poderão ser compartilhadas online. Como veremos ao longo deste capítulo, a criação da tecnologia torrente não apenas permitiu a criação de um dos sistemas mais eficientes de transferência de dados através da internet, como também foi responsável por desencandear a criação daquilo que Kent (2012, p. 88, tradução e grifos nossos) denominou de inúmeras “comunidades transitórias”.

Muitas palavras descrevem “comunidade”. Uma delas é compartilhamento. [...] Eu estou interessado em como pessoas letradas digitalmente usam a internet para compartilhar informação online. Muitas das informações

45 Consultar Banks (2008) e Ryan (2010) para um bom apanhado a respeito deste tema específico,

principalmente cronologias e personagens centrais. Um bom entendimento a respeito da história da internet no Brasil pode ser observado em Carvalho (2006).

46 Em inglês denomina-se torrent. Pedimos atenção para uma pequena observação a respeito da tradução destes termos que poderiam vir a provocar uma dificuldade de entendimento. Nesta tese, optamos pela tradução do termo “torrent” (daqui em diante, apenas “torrente”) quando nos referirmos à tecnologia, ao sistema ou ao método de realização dos downloads e uploads (por mais que tenhamos a certeza de que a opção por esta tradução não seja muito comum na comunidade Oásis, ou fora dela). Entretanto, quando nos referirmos aos aplicativos (ou às empresas) que fornecem os softwares necessários para a realização destas transferências usaremos sempre seus nomes reais, sem tradução. Isso precisa ser explicitado pelo fato de muitas empresas que oferecem os aplicativos que permitem o acesso às redes P2P possuírem a palavra torrent em seus nomes, por exemplo: BitTorrent, µTorrent, qBittorrent, WeTorrent etc.

47 Nascido em outubro de 1975, Bram Cohen aprendeu a programar aos cinco anos de idade. Filho de

pais professores em Manhattan (Nova Iorque), Cohen largou a faculdade para se dedicar à escrita de códigos para pequenas empresas e em meados de 2001 lançou em uma conferência denominada “CodeCon” aquilo que mais tarde ficaria conhecido como “protocolo BitTorrent”. Ainda hoje a conferência de Cohen é classificada com a “apresentação mais famosa” do evento. Mais informações: https://en.wikipedia.org/wiki/Bram_Cohen (Acesso em 25 de maio de 2016).

trocadas são violações de propriedade intelectual. Devido ao fato dos piratas online terem se tornado mais perseguidos pelos controladores da propriedade intelectual da indústria musical e das produtoras de cinema, o processo de compartilhamento de informação online evoluiu de uma forma que culminou na criação de uma identidade minimalista dentro de uma comunidade transitória. Enquanto sites e serviços que facilitaram o compartilhamento de arquivos estavam sendo fechados (como o Napster), outros com uma relação mais complexa e mediada com a transferência de informação através do uso do compartilhamento de arquivos Bit Torrent se levantaram em seu lugar.

O BitTorrent é um dos softwares mais conhecidos para a realização dos semeios de arquivos online – talvez por ter sido o primeiro e por ter apresentado uma novidade um tanto radical –, mas rapidamente diversos outros programas apareceram e ajudaram a difundir ainda mais essa nova invenção. Em linhas gerais, tais softwares se encarregam de realizar um mesmo objetivo, que consiste em permitir uma comunicação direta entre duas ou mais pessoas que possuam arquivos para compartilhar. Assim, a grande importância desta tecnologia talvez possa ser expressa no fato de que, pela primeira vez na história da informática, “arquivos” (denominados agora “sementes”) podiam ser compartilhados através da internet de forma descentralizada. As trocas agora se davam diretamente através dos computadores dos próprios usuários, de um risco rígido a outro, parceiro à parceiro (P2P).

Deste momento em diante, o compartilhamento de arquivos pela internet poderia ser realizado através de um método com grandes inspirações ecológicas que consiste na dispersão (através do semeio) de sementes digitais (qualquer arquivo de computador que fosse deliberadamente plantado na plataforma “torrente”). Tudo isso acontecia diretamente entre os próprios usuários, sem intermediários nas relações, através de um sistema que ficou conhecido como peer-to-peer (parceiro à parceiro) ou P2P. Dito de outro modo, o método consiste na transferência dos arquivos através de uma comunicação direta entre os usuários destas redes especificas, na qual todos as pessoas desempenham ao mesmo tempo o papel de downloader (qualquer pessoa que esteja baixando uma semente) e de uploader (qualquer pessoa que possua uma semente completa, ou alguma parte dela baixada na plataforma). Nesse sentido, o que temos que reter na mente neste momento é a ideia de que neste sistema todas

as pessoas são semeadoras, e que o ato de semear significa transferir ou “upar” as

A grande novidade do “sistema torrente” reside no fato de que os arquivos não mais são transferidos através de uma única fonte (por exemplo, o servidor central de uma empresa de banco de dados online que realmente hospeda as informações de seus clientes em seus servidores). Após virarem sementes, os arquivos digitais podem ser transferidos através de um sistema descentralizado, na qual os computadores domésticos de cada usuário passam a atuar como “servidores centrais” de distribuição desses arquivos. Entretanto, é neste momento que temos que atentar para um detalhe crucial nesta complexa rede sócio-técnica. Já que os computadores pessoais de cada uma dessas pessoas interligados por uma ou mais sementes digitais atuam como servidores domésticos de distribuição das unidades informacionais desses arquivos, será preciso que esses servidores disponibilizem capacidade de transmissão (ou seja, largura de banda48) suficientes para permitir a transferência dos

dados.

Nesse sentido, quando pensamos sobre a importância da largura de banda nas transferências online de sementes digitais, não podemos supor que isso caracteriza um mero detalhe técnico. De fato, quanto maior for a capacidade de largura de banda de um servidor, maior será sua capacidade de transmissão ou de recebimento das sementes. Assim, altos índices de largura de banda podem permitir que pessoas dispersem e recebam sementes em altíssimas velocidades. Ao pensarmos juntos com Gilder (2000, p. 2, tradução e grifos nossos), podemos inferir que largura de banda também pode ser entendida como “poder de comunicação”, mais importante ainda do que o poder dos próprios computadores.

A era do computador está decaindo diante daquela força tecnológica que poderia ultrapassar em impacto a habilidade do computador de processar e criar informação. Essa seria a comunicação, que chega a ser mais importante para a nossa humanidade do que a informática. [...] Na indústria, a palavra mais comumente usada para o poder das comunicações é largura de banda [bandwidth]. Na nova economia, a largura de banda substitui o poder do computador como a força impulsionadora do avanço tecnológico.

Diante destes elementos, nós temos um fascinante e complexo cenário tecno-político de difícil apreensão. Mas o desafio se torna paulatinamente mais solucionável na medida em que esclarecemos que o objetivo deste tópico se resume

48 O termo laugura de banda aqui é entendido como a capacidade de transmissão de dados entre os

à elaboração de uma breve reflexão – à luz daquilo que Latour (2000) denominou de

flashback – da gênese do conceito das “sementes digitais”. Além disso, tentaremos

compor uma abertura da caixa-preta desta tecnologia, tendo em vista os limites e as possibilidades de construção de uma breve narrativa a respeito de um grande problema. Diante destas observações, não nos arriscamos a dizer que estamos diante de uma “descrição sócio-histórica” desta tecnologia de distribuição de arquivos online. O que estamos mais interessados em fazer é tentar delimitar o exato momento em que os agenciamentos das tecnologias que compõem as sementes digitais convergiram e possibilitaram a difusão deste novo modelo bem particular de transferência de dados através da internet.

Ao refletir sobre a marcação de fases no processo de desenvolvimento de uma ideia, inovação ou invenção, Latour (2000, p. 176) postula que “o primeiro lampejo de intuição poderia não estar com uma mente apenas, mas em muitas.” Tal pensamento se confirma quando refletimos a respeito do surgimento das tecnologias de semeio através da internet. Entretanto, a primeira pessoa a de fato configurar esse entendimento e transcrever isso em uma linguagem informática – no caso, de que arquivos de computadores podem ser dispersos de forma mais eficiente se transformados em “sementes” – foi Bram Cohem, o criador do protocolo ou software BitTorrent.

A “distribuição colaborativa de conteúdos” é examinada de um modo um pouco mais detalhada na “Encyclopedia of Algorithms” (MALKHI, 2008, p. 614, tradução nossa; grifos no original). Neste momento, o que nos interessa é perceber como as categorias nativas que compõem a particular linguagem dos códigos do sistema torrente constroem sutis e versáteis alianças (ou associações) com aquilo que denominamos de “filosofia ecológica”. Assim, como podemos ver abaixo, as redes BitTorrent introduzem no campo da informática uma complexa “linguagem da floresta”, na qual imiscui-se com um entendimento extremamente original sobre como o modus

operandi da economia do compartilhamento na era na internet pode funcionar a partir

de então. E isso se dá principalmente pela introdução do conceito “sementes”.

Uma rede de distribuição de arquivos muito popular é o sistema BitTorrent. Os nós [nodes] em BitTorrent são divididos em nós semente [seed] e clientes [clients]. Os nós de sementes contêm o conteúdo desejado por completo (seja por ser o provedor original, ou por ter completado um download recente do conteúdo). Já os nós de clientes se conectam com um ou vários nós de sementes, assim como com os nós do tracker [tracker node], no qual o

objetivo é direcionar os clientes que estão atualmente baixando. Cada cliente seleciona um grupo de outros clientes que ainda estão baixando, e trocam entre si pedaços do dado [data] obtido da(s) semente(s).

Como podemos notar, a ideia da “semente” nas tecnologias colaborativas de distribuição de conteúdo online surge a partir de uma referência ecológica que perpassa um novo entendimento sobre o que consiste um arquivo ou um dado de computador. E nas “redes torrente” de distribuição, uma semente nada mais é do que um arquivo completo disponível em algum “nó”. Vale observar que em redes de comunicação (ou na linguagem da ciência da informática), “nó” significa um ponto de conexão, mas ele “também pode representar um elemento de uma árvore de busca binária ou um vértice de um grafo”49. Desto modo, os “nós de sementes” são conexões

realizadas com qualquer dispositivo que possua o conteúdo desejado pelos “clientes” (ou “semeadores”, se preferirmos uma linguagem mais adequada); enquanto que os “nós de clientes” são conexões realizadas com qualquer dispositivo que busca realizar as transfências dos dados. Analisemos mais detidamente alguns conceitos da tecnologia BitTorrent, tais como eles se expressam entre especialistas em tecnologias de rede. (MARIN; MONNET; THOMAS, 2011, p. 61, tradução nossa):

BitTorrent introduz uma específica terminologia para descrever a arquitetura de rede:

– a multidão [swarm]: o conjunto que todos os pares [peers] que estão baixando ou compartilhando um arquivo;

– a parte: uma parte do arquivo;

– o tracker: um servidor centralizado que possui um conhecimento bruto sobre a multidão. Ele conhece os pares e as partes que cada um possue, na qual é usado apenas para propósitos estatísticos;

– o cliente: um par que não possui todas as partes de um arquivo. Um cliente é portanto todas os pares que estão tentando baixar todas as partes de um arquivo;

– o semeador [seeder]: um par que possui todas as partes de um arquivo. Quando um cliente completa um download, ele se torna um semeador; – o sanguessuga [leecher]: o cliente que está apenas baixando. Na maior parte do tempo, um sanguessuga é simplesmente um cliente que não possui nenhum pedaço para compartilhar. Assim como um sanguessuga pode ser simplesmente um cliente egoísta.

A complexa terminologia das “redes torrentes” não pode ser entendida apenas como exercícios retóricos ou a partir de suas associações meramente técnicas. A partir deste debate, nós queremos demonstrar de que modo a linguagem do software conjugada a uma complexa arquitetura de rede permitiu um entendimento alargado do que significa um arquivo ou um dado de computador. Debater essas questões é forçar a abertura da caixa-preta que compõe esta tecnologia. Com isso, nós queremos tentar descrever o surgimento e a consolidação destes novos artefatos, tendo em vista a “regra metodológica” expressa por Latour (2000, p. 14), que consiste em procurar abrir as caixas-pretas das tecnologias, antes que elas se tornem asserções indiscutíveis.

A expressão caixa-preta é usada em cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, é desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber nada, senão o que nela entra e o que dela sai. [...] Ou seja, por mais controvertida que seja sua história, por mais complexo que seja seu funcionamento interno, por maior que seja a rede comercial ou acadêmica para a sua implementacão, a única coisa que conta é o que se põe nela e o que dela se tira.

A partir desses elementos, fica claro para nós a importância desta grande lição metodológica proposta por Latour. A melhor forma de refletirmos sobre “fatos e máquinas” é abrindo suas caixa-pretas, ou seja, temos que adentrar em suas controvérsias. Deste modo, ao invés de procurarmos o gênio inventor ou os “verdadeiros iniciadores” desta nova ideia, nós nos reservamos a pensar sobre as controvérsias que essa nova tecnologia suscitara. Em resumo, ela pode ser apresentada através do desafio de garantir a forma mais eficiente para a realização de transferências de arquivos de computador através da internet. E, como já pontuamos anteriormente, em meados de 2001, foi exatamente Bram Cohen (então com 26 anos de idade)50, que lança o primeiro app da história da internet a conceber

esse entendimento sócio-técnico: isto é, a ideia que arquivos de computador podem ser melhor compartilhados ao serem transformados em sementes, e seus usuários em semeadores. Em termos gerais, isso significa dizer que foi Cohen o responsável por plantar e semear a primeira semente digital. O que nos leva a pensar que talvez

50 Em sua página pessoal na internet, Cohen autodenomina-se (em um banner no topo da página, ao

lado de uma fotografia sua) o “inventor do BitTorrent”. Fonte: http://bramcohen.com/ (Acesso em 26 de maio de 2016).

ele tenha sido o primeiro cyberagricultor da história da internet. De todo modo, vale destacar que tais observações possuem apenas efeitos retóricos.

Tendo como base estas observações, nós acreditamos que chegamos no ponto fulcral desta grande controvérsia, e para isso tivemos que (ainda seguindo a orientação metodológica proposta por Bruno Latour) esvaziar a caixa-preta das sementes digitais e nos indagarmos sobre a única coisa que importa, ou seja, “o que se põe nela e o que dela se tira”. Neste caso específico, é a própria concepção do conceito “semente” que ganha um visível destaque na resolução das controvérsias que perpassam a economia do compartilhamento através da internet. E abrir esta caixa-preta significa tentar traçar as associações a partir dos agentes e artefatos mobilizados nesta rede sócio-técnica.

Assim, nossa tentativa de refletir sobre a história do surgimento do conceito “sementes” no mundo da informática segue modelos e caminhos bem particulares, já que projetamos essa discussão não apenas a partir de uma linha cronológica, mas tendo como base os usos e as práticas de mobilizações desses novos e estranhos artefatos. Quinze anos após o lançamento do primeiro aplicativo baseado no sistema torrente, algo nos autoriza a pensar que tal método cumpriu o prometido e continua oferecendo um modo seguro, anônimo, descentralizado, colaborativo e eficiente de dispersão de dados através da internet51. Para tanto, não apenas aplicativos tiveram

de ser inventados, mas também (e talvez principalmente) novas formas de solidariedades, de economias, de capitais, de sujeitos, de artefatos e de sociedades. E como observa Latour (2000, p. 209, itálicos no original), “[...] a única questão que realmente importa é: esta associação é mais fraca ou mais forte que aquela?”.

Postos diante de tais correspondentes, podemos notar que as sementes emergiram diante de uma complexa controvérsia sócio-técnica, que pode ser observada quando pensamos a respeito dos desafios que as pessoas enfrentavam para compartilhar e trocar dados, informações ou arquivos através da internet. Até meados de 2001, grandes experimentos realizados por diversos agentes já haviam sido testados, e todos eles (de uma forma ou de outra) haviam fracassado em algum

51 Como destacamos anteriormente, as estatísticas de uso de tais plaformas nos autorizam a pensar

que os milhões de usuários mensais destas tecnologias e o extenso volume de dados transferidos entre os usuários através destes sistemas comprovam a eficiência e robustez deste método de compartilhamento.

sentido52. Mas foi o sistema torrente o método mais eficiente, especialmente pela sua

capacidade de criar novos grupos e novos objetivos que culminaram na emergência de um novo tipo de solidariedade. E no centro desta controvérsia sócio-técnica encontra-se desenvolvido o germe da ideia que nesta tese denominamos “semente digital” – um novo e estranho artefato (ou capital, como veremos mais à frente) que pode ser bem melhor explicitado através de suas características e formas de uso, do que através da explicitação de seus conteúdos meramente retóricos, técnicos, metafóricos ou narrativos.

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