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Mais isso supõe, em primeiro lugar, que toda coisa é uma sociedade, que todo fenômeno é um fato social (TARDE, [1895] 2007b, p. 81, itálicos no original).

[...] tudo em economia é irracional [...]. E isso porque ela é feita por paixões [...] (LATOUR; LÉPINAY, 2009, p. 24, itálicos no original / tradução nossa).

No capítulo anterior, debatemos alguns elementos constitutivos dos artefatos que podemos classificar como a verdadeira razão de ser da comunidade Oásis. Como vimos, as sementes digitais (entendidas enquanto preciosos presentes compartilhados entre pares) se apresentam enquanto valiosas relíquias que podem ser pensadas enquanto um fator de unificação que englobam específicas práticas de socialidades entre cyberagricultores online. E é a partir deste papel centralizador e unificador que as sementes digitais assumem um centro de relevância política que se interpõe na criação de uma complexa e específica economia. Denominamos nesta tese tal processo de economia do compartilhamento.

Assim, neste capítulo pretendemos lançar um olhar mais apurado a respeito dos modos de funcionamento e de existência de tal economia, principalmente ao escolhermos como ponto fulcral de análise a natureza prodigiosa que emana das práticas e das vivências cotidianas exercidas por aquelas pessoas que fazem tal economia de fato acontecer. Dito de outro modo, as questões centrais que nortearão este capítulo serão as seguintes: Como podemos compreender a economia do compartilhamento de sementes digitais através da internet? Quais os principais modi

operandi que alicerçam as práticas e definem o substrato essencial das ações que

demarcam os modos de fazer da semeação online? E como podemos compreender os princípios éticos e normativos que fundamentam tal economia?

Como veremos ao longo deste capítulo, a nossa intenção de compreendermos tais ações a partir do disputado e abrangente termo economia possue um efeito teórico expressamente denso nesta ficção antropológica. E antes de avançarmos, consideramos válido demarcarmos nossa posição teórica que pretende esclarecer alguns pontos importantes que servirão para evitar desentendimentos a

respeito do modo como compreendemos tal conceito. Em primeiro lugar, as bases da teoria da economia política aqui engendradas estão alicerçadas na “mudança que [Gabriel] Tarde propôs à teoria da economia política” (LATOUR; LÉPINAY, 2009, p. 4, tradução nossa). Nesse sentido, muitos dos termos e classificações teóricas que utilizaremos ao longo deste capítulo (por exemplo, valor, trabalho, capital, acumulação etc.) necessitam de específicas análises descritivas, já que tais conceitos podem assumir dentro dos princípios da economia política proposta por Tarde significados totalmente diferentes dos modos usuais de percepção de tais conceitos na sociologia, ou mesmo na economia72. Em segundo lugar, tal acepção nos impele a buscar um

quadro analítico mais preciso de interconexões com a proposta desta pesquisa, isso devido ao fato de Gabriel Tarde conceber em sua obra seminal Psychologie

économique (1902) a existência de vinculações expressivas entre economia e ecologia, especialmente ao conceber a existência do capital-semente como o

principal modelo analítico de compreensão de propagação dos mercados e das trocas entre indivíduos.

Durante todo esse capítulo, discutiremos conceitos da antropologia

econômica referentes a essa abordagem específica do conhecimento proposta por

Tarde e por ele denominada de “ciência dos interesses apaixonados”. De todo modo, tal discussão será alicerçada a partir de alguns importantes textos de comentadores que se propuseram resgatar a antropologia econômica quase esquecida proposta por Tarde há mais de um século, especialmente o texto de Bruno Latour e Antonin Lépinay denominado (em nossa tradução) “A ciência dos interesses apaixonados: uma introdução à antropologia econômica de Gabriel Tarde” (LATOUR; LÉPINAY, 2009). Como não nos aventuramos nos textos originais (em francês)73, quase todo o

72 Maurizio Lazzarato (2002) interpõe em sua obra “Poderes da invenção” (tradução livre) que os princípios da “psicologia econômica” proposta por Tarde podem ser compreendidos como uma forma de contrapor a hegemonia e os equívocos da economia política tradicional. Debateremos alguns elementos desta crítica ao longo deste capítulo.

73 O livro Psychologie économique é um grande compêndio dividido em dois volumes lançado na originalmente na França em 1902. Tal livro nunca foi traduzido para nenhuma outra língua e sua última reimprensão aconteceu em 1925 (WÄRNERYD, 2008). Apenas no início do século XXI, tal obra foi escaneada e publicada online em um repositório digital. Em 2007, um número especial do periódico

Economy and Society publicou pela primeira vez em inglês trechos traduzidos deste livro (TARDE,

2007a). De todo modo, vale destacar que as dificuldades de acesso ao conteúdo desta obra ainda não foram completamente sanadas. Tais dificuldades impossibilitaram o nosso acesso ao conteúdo original de tal documento. No que concerne às dificuldades de acesso a tal obra, talvez a implicação mais nefasta de tal cenário tenha sido a omissão e o silêncio de economistas e cientistas sociais que por quase um século optaram por simplesmente silenciar ou mesmo fingir que tal livro nunca tenha sido escrito ou mesmo existido.

conteúdo referente a essa “estranha ideia de ciência e de política” (LATOUR; LÉPINAY, 2009, p. 4, tradução nossa) que será debatida nesta tese perpassará os entendimentos propostos especialmente por Latour e Lépinay. Nesse sentido, logo nas primeiras páginas do livro introdutório desses autores podemos notar uma longa e precisa justificativa que deixa claro as razões da importância de prestarmos mais atenção à economia dos interesses apaixonados. Vejamos como tais autores concebem a economia política proposta por Tarde:

À primeira vista, parece difícil levar a sério as divagações deste sociólogo que não tinha discípulos; que trata conversas entre ociosos como "fator de produção"; que nega o papel central atribuído ao pobre e velho trabalho; que distingue, no noção de capital, a "semente" ou "germe" (o software) do "cotilédone" (o hardware), para a vantagem do primeiro; que segue, com igual atenção, flutuações no preço do pão e variações no prestígio de figuras políticas, utilizando instrumentos na qual ele nomeou “medidores de glória” ["glorimeters"]; que não utiliza como um exemplo típico de produção, como todo mundo faz, uma fábrica de agulhas, mas a indústria do livro, prestando atenção não só para a divulgação dos livros em si, mas também para a difusão das idéias contidas em suas páginas; que aborda a questão do biopoder, como se economia e ecologia já estivessem interligadas; que se move sem problemas de Darwin a Marx e de Adam Smith a Antoine-Augustin Cournot, mas sem por nenhum momento acreditar nas divisões habituais da ciência econômica; que está interessado em luxo, moda, consumo, qualidade, rótulos e recreação tanto quanto na indústria militar e na colonização; que continuamente usa exemplos encontrados no mercado de arte, na difusão de idéias filosóficas, na ética, e na lei, como se tudo isso tivesse igual importância na produção de riqueza; que pensa ciência, inovação, inovadores, e até mesmo a ociosidade como a base da atividade econômica; que gasta um tempo considerável seguindo linhas de trem, cabos de telégrafo, imprensa de publicidade, crescimento do turismo; que, acima de tudo, não acredita na existência do capitalismo, e não vê no século 19 o aumento aterrorizante dos cálculos frios e do reino da mercadoria, mas, pelo contrário, que define o crescimento dos mercados como paixões; que felicita os socialistas por terem criado um nova febre de associação e organização (LATOUR; LÉPINAY, 2009, p. 2-3, tradução nossa)

Como podemos observar, são diversos os caminhos e as implicações expressas pelas rotas possíveis advindas da antropologia econômica proposta por Gabriel Tarde. Tais “divagações” resultam em questões teóricas e epistemológicas complexas, na qual seria impossível (no contexto desta tese) dar enfoque a todas elas sem cairmos em abstrações vazias de conteúdo. Nesse sentido, optamos por debatermos tais princípios tendo como ponto de partida a seguinte questão: De que modo a economia dos interesses apaixonados proposta por Tarde nos ajuda a compreendermos a economia do compartilhamento de sementes digitais através da internet? Diante de tal cenário, o que está em perspectiva é exatamente nossa recusa

em debatermos tal conjunto de proposições distante do corpo empírico que baliza esta ficção antropológica. Será através dos traçados erráticos e esquizo desta economia e de seus agentes em processo que seguiremos as possibilidades de conexões dos fluxos, agenciamentos e mecanismos de produções de diferenças. Como nos lembra Barry e Thrift (2007, p. 511, tradução nossa): “Para Tarde, a pesquisa de experimentação científica demanda uma extraordinária atenção ao detalhe e à singularidade do exemplo”.

A antropologia econômica de Gabriel Tarde perpassa diversas questões, e em nosso olhar alguns elementos desta teoria foram fundamentais para a produção de efeitos de conhecimento sobre o universo dos cyberagricultores online. A partir deste arrazoado inicial, elegemos duas perspectivas presentes na antropologia econômica de Tarde que foram extremamente relevantes para a compreensão dos

universos possíveis dos compartilhadores de sementes digitais que frequentam a

comunidade Oásis: primeiro, a interconexão entre economia e ecologia, especialmente através da compreensão do caráter germinal da economia e de seus elementos constitutivos; segundo, a compreensão da importância do papel das

paixões enquanto um mecanismo fundamental na produção de agenciamentos nos

modos particulares de vivências daquilo que denominamos de economia do compartilhamento através da internet.

4.1 A vida germinal das economias: o capital-semente, o capital-germe e o capital- cotilédone

Sejamos exagerados com o risco de passar por extravagantes. Nessa matéria em particular, o temor do ridículo seria o mais antifilosófico dos sentimentos (TARDE, [1895] 2007b, p. 90, grifos nossos).

Uma peculiar imagem de pensamento chama atenção no modo como Gabriel Tarde concebe a economia política. Tal perspectiva em quase nada se assemelha aos modos de retenção dos conteúdos e das abordagens usuais referentes a esse “domínio do conhecimento” (seja em suas abordagens clássicas liberais ou marxistas). Antecipadamente devemos esclarecer que Tarde nem ao menos concebe o “fenômeno econômico” como um domínio em si mesmo. Entretanto,

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