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O ritmo é a essência da arte e a sua existência.603 A obra de arte é existência

porquanto é essência em exercício, potência instauradora de espaço, ritmo. Mas a questão que se coloca à obra de arte, a mesma que se coloca a toda a existência, dirige-se também à razão que a faz ser o que é, poder instaurador de espaço, ritmo... e Vazio.

Na forma estética-artística, Maldiney distingue duas dimensões. A primeira diz respeito ao seu “quociente de profundidade”, na proporção do qual a massa se interioriza e “se informa espaço” - no sentido já referido de “dar forma”, não no de transmitir conhecimentos. A segunda dimensão respeita ao seu “gradiente de abertura”, no qual o quociente de profundidade é assumido, significando que a articulação do profundo exige “um horizonte aberto para o espaço livre”. 604 “Plenitude e vacuidade são duas condições requeridas conjuntamente para que uma obra exista.”605

                                                                                                               

603 Ainsi – et sera conclure – le rythme est l’essence de l’art et il est son existence, étant l’acte du style.”

Ibidem, p.172.

604 “ Le quotient de profondeur, à proportion duquel la masse s'intériorise et s'informe en espace, donnant ainsi lieu d'être aux parties cachées, est assumé dans le gradient d'ouverture de la même forme. En effet, les variations de courbure et d'éclat de la surface sont autant de tensions d'une lumière radiante, qui exigent un horizon ouvert à l'espace libre. Ici, la forme est bien le lieu de la rencontre de la profondeur et de l'ouvert, rendus visibles en elle. Elle est existence.” AE, p. 16.

A análise existencial de Maldiney está de tal modo presente na sua reflexão sobre a arte que, por vezes, perdemos o foco do nosso estudo. Falar de arte é problematizar a existência e questionar a existência é interrogarmo-nos sobre a arte. O humano e a arte habitam o mesmo universo de sentido, partilham os mesmos existenciais e a ambos assiste a capacidade de criar um mundo. Mas, precisamente, a força requerida para criar um mundo é brutal, exige espaço, todo o espaço, um horizonte que se expanda para lá da linha do que é esperado. A criação exige o Aberto.

Assim,

“ Também na arte o sentir surge, de nada [...] Na realidade é com a arte que começa a revelação do Nada, porque só com ela começa o Aberto. A entrada em presença de um acontecimento sensível sobre a abertura da obra não faz senão um com o advento da sua essência.” 606

A obra de arte é o aí de toda a revelação, lugar de encontro da profundidade e do aberto porque abre o Nada. Ao manter-se na “clareira do Nada”,ela abre-se ao ser e é abertura do ser.607 Do Nada origina-se o ritmo, por isso, o Nada é, para o sensível,

origem e condição da sua potência de ser. Mas como se explicita o existencial do Nada na arte? Como se revela o Nada na obra?

Na pintura, abrir o Nada não significa incrustar brancos na tela.“ Se um ou outro branco de uma pintura ou de um desenho é uma faixa intervalar cercada num conjunto de partes (visivelmente) pintadas ou desenhadas, é impropriamente que designaríamos Vazio ou Nada.”608 A questão do Vazio é, na pintura, a do sopro, que se infiltra nas                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    

605 “ Plénitude et vacuité sont les deux conditions requises ensemble pour qu’une œuvre existe.” ORAN, p. 81.

606 “ Dans l’art aussi le sentir surgit, de rien […] En réalité c'est avec l'art que commence la révélation du Rien, parce qu'avec lui seulement commence l'Ouvert. L’entrée en présence d’un événement sensible à même l’ouverture de l’œuvre ne fait qu’un avec l’avènement de son essence.” Ibidem, p. 446.

607 “ L’oeuvre d’art est identiquement ouverture à l’être et ouverture de l’être. Elle est existence. Et nous existons à l’exister, comme elle existe: en nous tenant dans l’éclaircie du Rien.” AE, p. 210.

608 “ Si l’un ou l’autre blanc d’une peinture ou d’un dessin est une plage intervallaire enclose dans l’ensemble des parties (visiblement) peintes ou dessinées, c’est improprement que nous appellerions Vide ou Rien.” Ibidem, p.174.

formas sensíveis e as dinamiza, problematizando o momento em que o traço de pincel torna-se o que é: o rasgo luminoso da criação.609

O Vazio não figura na tela de um quadro, ele manifesta-se na forma de “energias brancas” que são como veias por onde circula toda a energética da obra. “ Os traços negros não comunicam entre si e cada um consigo senão pelo sopro rítmico de que a passagem é um com a articulação dos brancos que os envolve e os trespassa.”610 Em virtude de a obra abrir o Nada, mostra-se eficaz o encontro entre tensões contrárias. As formas permaneceriam estáticas, improdutivas se o sopro do vazio não as envolvesse e as trespassasse. Assim como o vazio do átomo está para o núcleo atómico parece estar o vazio da forma para o seu ponto de energia espacializante. O vazio da forma intervém em cada mutação que nela se produz. “ O vazio é realmente “o lugar funcional onde se

opera a transformação”. 611

O vazio das formas ganha por isso toda a acuidade na pintura. O vazio torna eficaz o trabalho do ritmo, expressando-se esta relação na articulação entre o nada e o ser, o vazio e o pleno, que a noção chinesa “Forma e Sem-forma” traduz.

Há vazio no pleno e pleno no vazio612 ou, na sua origem, como defende François Julien, “a grande imagem não tem forma.”613 A pintura de paisagem na China (shan-sui:

Montanha – Água) mostra a relevância do vazio e a proficuidade da sua articulação com o pleno. As suas imagens flutuam umas atrás das outras, sem qualquer distância entre elas, estendendo-se numa “atmosfera infinita” envolvente, imperceptível, umas vezes emergindo outras ausentando-se. O que estas imagens mostram, não é o mundo percebido mas o sopro vital [Ch’i], a energética das formas que, para a pintura chinesa, é o que está primeiro ou é condição para que as formas se formem.

                                                                                                               

609 Cf. Ibidem.

610 “ Les traits noirs ne communiquent entre eux et chacun avec soi que par le souffle rythmique dont le passage est un avec l’articulation des blancs qui les enveloppent et les traverse. ” Ibidem.

611 “ Le Vide est bien « le lieu fonctionnel où s’opère la transformation ».” AEE, p.247.

612 “ Il y avait du vide dans le plein et du plein dans le vide. Chaque forme créait un déséquilibre qui instaurait l’espace de son absence.” ORAN, p.349.

613 François JULIEN, La grande image n’a pas de forme. Ou du non-objet par la peinture” Paris, Seuil, 2003, passim.

Maldiney analisa a arte dos Sung do Sul, nomeadamente a pintura Ch’an,614 e denomina-a uma “arte do desaparecer.” 615 Suspensas na sua luz radiante, as pinturas dos Sung estão “Prestes a esvair-se na inacessível proximidade [...] elas têm a evidência inalterável do que não tem lugar senão uma vez, no seu desaparecer.”616 As formas da pintura de paisagem da China aparecem na sua espontaneidade difusa numa ambiência de névoa, onde as montanhas estão em suspenso como ilhas a emergir, a flutuar no vazio brumoso e radiante. Mas o que é que desaparece? O limite determinativo da forma. “Uma tal forma, exacta, dá o sentido do objecto mas não a sua “glória interior”, a sua “totalidade indeterminada”, “o infinito imanente” da sua espontaneidade difusa, não a sua realidade, o seu ritmo que rege o Tao.”617 Retoma-se assim a problemática do

negativo da forma, a aniquilação de toda a sua positividade, o desfazer-se da geometria e dos contornos, porém, como diz Maldiney, “ É tornar caduco o apelo à potência do negativo, a qual para além disso não pode atingir o Nada.”618 Na articulação “Forma e Sem-forma”, o espaço de ausência da forma não significa um retorno ao nada da impossibilidade [Béance], pois este é aniquilado no Nada da obra de arte.

Diferentemente do ente de Schelling, em Maldiney, a forma não aparece no abismo [Béance], mas na plenitude do Aberto [Patence].619 A aniquilação do positivo só

se justifica num primeiro momento necessário à desobstrução das vias de circulação do sopro rítmico. Um ritmo nasce do Nada e é coextensivo a toda a obra, elevando as formas parciais à unidade formal rítmica do todo, ao mesmo tempo que desce dessas formas parciais até aos elementos formadores, recolhendo-se no acto inaugural do fazer- obra. É aí que a falha equivale ao abismo do caos e a obra se suspende sob a ameaça do                                                                                                                

614 O Ch’an é na China do Sul uma ramificação do budismo. A pintura dos Sung é taoista. As duas espiritualidades reclamam-se do legado de Lao Tse.

615 Cf. AE, pp. 105-122.

616 “ Prêtes à s’évanouir dans l’inapprochable proximité [...] elles ont l’évidence inaltérable de ce qui n’a lieu qu’une fois, dans son disparaître.” Ibidem, pp. 107-108.

617 “ Une telle forme, exacte, donne le sens de l’objet mais non sa « gloire intérieure », sa « totalité indéterminée », « l’infini immanent » de sa spontanéité diffuse, non sa réalité, son rythme que règle le Tao.” Ibidem, p.108.

618 “ C’est rendre caduc l’appel à la puissance du négative, laquelle d’ailleurs ne peut atteindre au Rien.”

ORAN, p. 172.

mesmo. Mas é também aí que a função primacial do ritmo se evidencia. “ O ritmo não é nem continuidade nem disparidade, mas unidade sui-integrativa de acontecimentos descontínuos.”620 O ritmo integra e articula todas as falhas e os momentos críticos, dá forma ao informe e, por essa via, ele anula o imenso nada do abismo primitivo de que falam Cézanne e Paul Klee e que Maldiney associa ao espaço da vertigem. O tempo do rimo (presente da decisão) é incoativo. A sua força nasce do Nada e é instantaneidade fundadora do tempo, começo do auto-movimento do espaço.

A fórmula taoista “Forma e Sem-forma” pretende justamente traduzir, na arte, essa dinâmica geradora de mundos. “O Nada e o ser são entre si como, no apólogo de Chuang Tse, Sem-forma e Forma que em conjunto gerem no caos o Aberto que põe um termo ao caos.”621 No Aberto não há caos, ele é o rasgo luminoso dentre o caos

nocturno. Sem-forma e Forma gerem o horizonte desse Aberto, no sentido em que o “ Sem-forma” refere-se ao aberto do ritmo e a “ Forma” dirige-se ao fenómeno de uma plenitude que, mantendo-se na clareira do Nada, se mostra em plena articulação das potências e das resistências de um espaço potencial, isto é, mostra-se no exercício da sua potência de ser.

“ Quer se trate de cada mutação ou da própria obra, o ser funda o possível, porque precisamente ele não é ente. Ele afirma-se como Não para o ente. É comportando-se para o ser a partir do Nada, onde ela se mantém, livre para o Aberto, que a obra de arte - antítese da angústia -, ou que o ritmo - antítese da vertigem - conclui o que Heidegger chama “o milagre dos milagres” : a saber que o ente é.”622

                                                                                                               

620 “ Le rythme n’est ni continuité ni disparate, mais unité sui-intégrative d’avènements discontinus.”

Ibidem, p.92.

621 “ Le Rien et l’être sont entre eux comme, dans l’apologue de Chuang-tzu, Sans-forme et Forme qui ensemble ménagent dans le chaos l’Ouvert qui met fin au chaos.” ORAN, p.299.

622 “ Qu’il s’agisse de chaque mutation ou de l’oeuvre elle-même, l´être fonde le possible, parce que précisément il n’est pas étant. Il s’affirme Non à l’étant. C’est en se comportant à l’être a partir du Rien, où elle se tient, libre pour l’Ouvert, que l’oeuvre d’art – antithèse de l’angoisse -, ou que le rythme - antithèse du vertige – accomplit ce que Heidegger appelle « le miracle des miracles »: à savoir que l’étant