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O debate em torno da concepção de vida e de existência coloca no centro da discussão a noção de acontecimento [Ereignis], a partir do qual se abre um mundo para                                                                                                                

86 “ Este “acontecimento” não o é à maneira histórica processual de Geshehnis [...] Ereignen sich ereignen significa acontecer, no sentido mais próprio e singular do que, assim acontece: o singulare tantum do “copertencer-se de homem e ser”, da sua “conjunção essencial” [...] Ereignis é, pois, o

repentino dar-se ou propiciar-se do próprio e da apropriação recíproca do ser e do seu aí, no instante propício e próprio, na ocasião, na ocasião apropriada e singular desse acontecer em que o aí-ser acontece como tal.” Irene BORGES-DUARTE “ Prólogo à Edição Portuguesa ” in Caminhos de floresta, op.cit., pp. XVII-XVIII.

87 “ Ereignis, c’est l’événement-avènement du propre. Ce qui est en cause et en acte dans l’existence et dans une histoire proprement existentielle, c’est un pouvoir-être, le pouvoir être soi.” PHF, p. 76.

88 Cf. Mafalda BLANC, Introdução à ontologia, Lisboa, Instituto Piaget, 1998, p.42.

89 “ Exister, au sens non trivial, c’est avoir sa tenue hors de soi, extatiquement, sans avoir eu à sortir d’une situation préalable de pure immanence.” AE, p. 7.

90 “ Or l’apparaître commence au sentir, lequel diffère – et avec lui le contact – au regard du vivant et de l’existant.” PHF, p. 148.

o existente, que difere da “abertura” e do “mundo” próprios do vivente. Apesar disso, Maldiney considera possível estabelecer-se uma analogia entre o modo como o ente humano se constitui “essência em exercício”91 e o modo como é engendrada a dimensão espácio-temporal do vivente.

“As transformações constitutivas da forma biológica têm um análogo nas transformações constitutivas da existência como ser no mundo. Do mesmo modo que é a partir do Aqui e do Agora constituídos em Presente que é engendrado o espaço-tempo do vivente, do mesmo modo é a partir do acontecimento que é engendrado o mundo de um existente. O acontecimento não se produz no mundo. O mundo abre-se no acontecimento. E isto começa no sentir.”92

Assim como as renovadas configurações espácio-temporais do vivente se originam no “aqui” e “agora” irrepetíveis e incoativos, o acontecimento a partir do qual se abre um mundo para o existente, implica analogamente a espontaneidade de um presente-origem, criador, cujo aparecer envolve a dimensão pré-predicativa e inobjectiva do pático da existência. 93 As transformações constitutivas da existência

como ser no mundo são acontecimento, pressupõem transcendência, mas é já ao nível

                                                                                                               

91 O essencialismo, tal como progrediu nas suas formas mais radicais do racionalismo e do idealismo, é combatido tanto por Heidegger como por Maldiney. Neste contexto, ambos os autores recuperam o sentido verbal de wesen (sinónimo de sein “ser”), de modo a sublinhar o carácter activo-transitivo

daquele que está a ser ou a fazer-se. Seja substantivo ou verbo, an-wesen diz da “essência em exercício”, “ [...] a essência é o que “ está a ser” e o que “está a ser” é o ser na sua “essência.” no seu

“essenciar-se”. Irene BORGES-DUARTE, “ Prólogo à Edição Portuguesa ” in Caminhos de floresta, op.cit., p. XVI.

92 “ Les transformations constitutives de la forme biologique ont un analogue dans les transformations constitutives de l’existence comme être au monde. De même que c’est à partir du Ici et du Maintenant constitués en Présent qu’est engendré l’espace-temps du vivant, de même c’est à partir de l’événement qu’est engendré le monde d’un existant. L’événement ne se produit pas dans le monde. Le monde s’ouvre dans l’événement. Et cela commence au sentir.” PHF, p. 206.

93 “ Ce qui est vrai du vivant l’est de l’existant. La genèse du présent ne fait qu’une avec la transformation de l’existence qui, de soi, constitue l’événement.” Ibidem.

da experiência sensível que o existente se sente si com o mundo, segundo o seu ser. 94 Dito de outro modo, é já no âmbito da coexistência [Mitsein] que o existente se sente a ser e a ter de ser. Em Heidegger, esta é uma condição existencial solidária da facticidade do aí-ser. Em E. Straus, ser-com é trabalhado nas esfera das vivências na forma do

ressentir.

A noção strausiana de ressentir acentua a continuidade da dinâmica da comunicação que se gera no sentir, indicando simultaneamente sentir-se a si e ao mundo e com o mundo.95 Mas ressentir não designa nem uma reflexão nem uma reduplicação.

O prefixo re- não indica aqui retorno mas antes re-forço, re-lação, (re)ssonância. Ressentir comporta um momento pático que exprime não o quê da experiência mas o

como de um encontro. Por um lado, “A essência desta manifestação é irredutível ao

conceito”96, por outro, ela consiste num “despertar do eu” 97, no acontecimento de tornarmo-nos nós próprios.

A constituição do Eu não é um processo solipsista mas antes procede da forma como o vivente ressente o mundo, depende do modo como ele se sente com os outros. Ora este constituir-se da ipseidade não está longe do significado atribuído por Heidegger ao des-cobrir-se dos entes. Aparecer não se dissocia da forma como o aí-ser

se sente com os entes aos quais está junto. Assim, a dimensão pática que tanto E. Straus

como V. Weizsacker trabalham na esfera dos viventes, é análoga ou já está reflectida no existencial heideggeriano da afectividade [Befindlichkeit].98 Como Maldiney sublinha,                                                                                                                

94 “ La notion d’événement y a même plus de prégnance puisque l’existant, même au niveau du sentir, s’il se sent soi avec le monde, les ressente tous deux selon leur être, l’un comme existant et l’autre comme étant.” Ibidem.

95 “ Ressentir n’est pas l’après-coup ou le contrecoup d’un sentir, car sentir ce n’est pas recueillir des sensations: c’est sentir soi et le monde, soi avec le monde. Cet avec signifie une rencontre.” Ibidem, p. 80. 96 “ L’essence de cette manifestation est irréductible au concept.” Ibidem, p. 54.

97 “Ce ressentir ne consiste ni dans une réflexion ni dans un redoublement: il est éveil du moi. L’événement nous advient en que nous devenons nous-mêmes.” Ibidem, p.235.

98 Traduzimos o termo alemão Befindlichkeit por “afectividade”, dado que na etimologia desta palavra, do latim afficere, afectum, affectivus sobressai o sentido de uma predisposição natural para experimentar emoções ou emocionar-se, não se referindo porém a nenhuma emoção em particular. Outras são as possibilidades de tradução do termo Befindlichkeit: “disposição”, “disposição afectiva”, “sentimento de situação” ou “estar-situado”. Na nossa tradução, a palavra alemã Befindlichkeit manter-se-á entre parênteses rectos.

“Von Weizsacker fala do “pático” da vida. A Befindlichkeit é a dimensão pática do

Dasein, a capacidade que ele tem dimensionalmente de estar sempre em consonância

com um tom.”99

Na analítica existenciária de Heidegger, a afectividade [Befindlichkeit] refere-se à primeira das três estruturas existenciais do aí-ser, a qual a par da compreensão [Verstehen] e do discurso [Rede] é originariamente constitutiva. A determinação fundamental do aí-ser é a de compreender o ser mas, aqui, a compreensão [Verstehen] enraíza-se sempre numa determinada afectividade [Befindlichkeit]. A estrutura desta dimensão é ontológica, mas aquilo que é indicado sob a sua denominação é a coisa do mundo mais conhecida e a mais quotidiana onticamente.100 A saber, a tonalidade

[Stimmung]. 101

As tonalidades [Stimmung] são formas determinadas do modo como a presença

se sente e assim se descobre quando remetida à facticidade do seu existir. Estas poder-se-ão definir como um ressoar do mundo dos outros no ser-no-mundo, em virtude de ele deixar-se tocar, afectar pelas coisas e pelos entes do seu mundo ambiente.102 A ressonância da afectividade [Befindlichkeit] reenvia a um espaço de encontro, onde a tonalidade [Stimmung] com a qual o aí-ser sintoniza, é uma forma de ele revelar-se a si próprio como já estando a acontecer, isto é, como já estando aberto ao seu poder-ser. Assim, a afectividade [Befindlichkeit] é “[...] uma forma de abertura a si na qual ele se

                                                                                                               

99 “ Von Weizsacker parle du « pathique » de la vie. La Befindlichkeit est la dimension pathique du

Dasein, la capacité qu’il a dimensionnellement d’être toujours accordé à un ton.” PHF, p. 281.

100 “Was wir ontologisch mit dem Titel Befindlichkeit anzeigen, ist ontisch das Bekannteste und Alltäglichste: die Stimmung, das Gestimmtsein.” Martin HEIDEGGER, Sein und Zeit, op.cit, § 29, p.134. “ Ce que nous indiquons ontologiquement sous le titre d’affection est la chose du monde la mieux connue et la plus quotidienne ontiquement: c’est la tonalité, le fait d’être disposé.” Martin HEIDEGGER, Être et

Temps, op.cit., § 29, p.120.

101 Traduzimos Stimmung por “tonalidade ”, mas dado que na língua portuguesa há outras traduções possíveis, como “sintonia”, “disposição”, “afinação” ou “emoção”, manteremos na nossa tradução o termo Stimmung entre parênteses rectos.

102 Enquanto as tonalidades [Stimmung] são modalidades da afectividade [Befindlichkeit], o contexto emocional aqui pressuposto nada tem a ver com uma autoconsciência teórica, despindo-se por isso do carácter intencional e subjectivo.

descobre.”103 Como aí se sente, a presença experiencia-se na singularidade do seu ex-istir.

A tese que atravessa as temáticas do ressentir e da afectividade [Befindlichkeit] será então a de que a existência não se cumpre isolando-se, pois só relacionando-se com os outros, ela é passível de relacionar-se consigo própria, descobrir-se poder-ser. Mas, na analogia entre o ressentir e a afectividade [Befindlichkeit], fundamental é também o facto de a receptividade em questão não denotar a percepção. Tanto o ressentir como a afectividade [Befindlichkeit] não são formas do ente se percepcionar a si e aos outros,104 elas dizem respeito a um modo da presença descobrir-se de acordo com um “saber” que o conhecimento teórico não oferece.

Todavia, não há, em Heidegger, análise do sentir. 105 E. Straus avaliou-o, mas

não o trabalhou na especificidade de um ente que não é desprovido de aí.106No debate com E. Straus, Maldiney dirá: “Esta tonalidade pática é no sentido próprio um existencial. Ela não é um dado prévio caracterizando um ente ainda privado de aí. Nem uma sobredeterminação ulterior deste.” 107 E no debate com Heidegger? A dimensão extática da existência tem o mesmo significado para ambos os filósofos?

                                                                                                               

103 “ […] une forme d’ouverture à soi dans laquelle il se trouve .” PHF, p. 281.

104 “ In der Befindlichkeit ist das Dasein immer schon vor es selbst gebracht, es hat sich immer schon gefunden, nicht als Wahrnehmendes Sich-vor-finden, sondern als gestimmtes Sichbefinden.” Martin HEIDEGGER, Sein und Zeit, op.cit., § 29, p.135. “ Dans l’affection, le Dasein est toujours déjà transporté devant lui-même, il s’est toujours déjà trouvé-non pas en se « trouvant » là-devant par la perception, mais en « se -trouvant » en une tonalité.” Martin HEIDEGGER,Être et Temps, op.cit.,§ 29, p.121.

105 “ Il n’y a pas dans Heidegger d’analyse du sentir. Dans Sein und Zeit, il parle une fois pourtant de l’aisthésis.” AEE, p. 236.

106 “ Mais le sentir d’un existant n’est pas celui d’un simple vivant, il se sent être et le monde être. Le pli dans lequel soi et monde sont originairement impliqués est celui d’un y être. Y être signifie pour l’existant qu’il est capable de l’étant, en ce qu’il est le là de tout ce qui a lieu.” Ibidem, p. 91.

107 “Cette tonalité pathique est au sens propre un existential. Elle n’est pas une donnée préalable caractérisant un étant encore privé de là. Ni une surdétermination ultérieur de celui-ci.” PHF, p. 284.